segunda-feira, 28 de dezembro de 2015
sexta-feira, 18 de dezembro de 2015
O mergulho no Poço do Inferno e a afronta aos espanhóis
A vida quando quer pode ser bem prazenteira. Quando os maus pensamentos nos assolam devemos pensar naquilo que nos dá real prazer, funciona sempre. Há um punhado de pensamentos que me reconstroem o estado de espírito.
Comecemos lá atrás, nos meus 8 ou 9 anos. Nessa altura, eu e mais uma dezena de gandins, lá no Alto Minho, mais propriamente em Melgaço, nos dias de calor de Julho, rumávamos até às margens do Rio Minho para nos refrescarmos nas suas águas torrentes e caudalosas. Para lá chegar era necessário percorrer um longo caminho. Passávamos por pequenos cursos de água que devido ao relevo acidentado formavam regatos. Havia um, o Poço do Inferno, que pela nomenclatura e profundidade nos atraía mais do que os outros. Era um ligeiro abismo entre dois grandes penedos, de águas cristalinas e geladas. Fazíamos concursos de mergulho, o que não era nada fácil porque tínhamos de, em pleno voo, fazer uma ligeira curvatura para não abraçar as rochas polidas pelas águas libertadoras. Era uma verdadeira aventura e um grito de liberdade genuína. Depois das carnes enrijecidas pela água fria, temperávamos o corpo na do Rio Minho, mais aprazível. E aí, não poucas vezes, protagonizávamos uma cena Felliniana: do outro lado do rio, já em território espanhol, passava o comboio expresso com rumo a Vigo. Ao aproximar-se do local, o gigante ferroviário fazia-se ouvir pelo seu silvo sonoro e prolongado. Alertados pela aproximação corríamos todos para a margem do rio e alinhavamo-nos com o traseiro virado para Espanha. Mal o comboio passava, baixávamos os calções e mostrávamos o lado B aos espanhóis. O Maquinista, não sei se em forma de defesa ou de protesto, apitava incessantemente até o perdermos de vista. Zangava-se o espanhol. Estava vingada a ocupação Filipina.
O relato trivial da infância faz-nos perceber que a vida vale a pena ser vivida. Mas há mais. Outro prazer que muito prezo é o cheiro da terra molhada depois de uma quarentena de calor. Ou o riso de um bebé. Ou o olhar expectante da minha cadela tipo “ o que queres que faça agora?”. Ou a brisa que nos varre a face ao fim da tarde. Ou o sumo de laranjas acabadas de espremer que nos desperta olfato e paladar e que nos purifica o corpo. O som das nozes a quebrar. O pardal que no beiral da janela nos visita e nos desafia para o acompanharmos nos voos sem destino partilhando connosco os dias de sol. O correr do leopardo, elegante e poderoso. O atleta vitorioso que chora quando ouve o hino. A lágrima que nos escorre ao ouvirmos aquela música… O beijo que damos àqueles que amamos. O reconforto, o abrigo nos seios daquela com quem partilhamos o ar do quarto. O canto lírico que nos arrepia a epiderme. A guitarra elétrica que sola um grito de desespero. O silêncio entre as notas musicais. A estrada sinuosa que nos leva de passeio. A elegância do cavalo de Dressage. As letras que se conjugam em palavras que nos soam certo, em harmonia. O sorriso dos nossos ou dos que desconhecemos. O livro que nos faz esquecer que amanhã é dia de trabalho. O crepitar na lareira da casca do pinheiro. A mão que nos acaricia o corpo. O sofá lá de casa. O cheiro da casca dos citrinos. A água que nos mata a sede. A música que nos embala num dia de chuva. A tecnologia que nos completa. O cão que nos olha e nos lambe a mão. As memórias das férias de praia. O doce que subtraímos à escapula da mesa posta de Natal. O ruído bom de uma conversa de amigos. A gargalhada à roda de uma mesa de memórias. O filho, que cresce mas continua nosso… O prazer solitário, motorizado ao conquistar km no asfalto. A viagem que nos alarga o horizonte. O silêncio, ah o silêncio, cada vez mais difícil de ouvir. E também as ideias despojadas da Maria Filomena Mónica. As memórias breves e possíveis de Saramago. O Pessoa pulverizado. O Lobo Antunes e as suas fadigas pós traumáticas mais as estranhas vidas das personagens do José Luís Peixoto.
Tanta coisa boa nestas nossas vidinhas. Tudo bem, admito, também há os comentadores faroleiros, os saltos altos da vizinha a pisarem-nos o cérebro, as tardes das derrotas do Benfica, as dores nas cruzes, a conta bancária que encolhe e o estômago que dilata, o cabelo que escasseia, o valor alterado das análises…
Pois escutai: O mergulho no Poço do Inferno e a afronta aos espanhóis ninguém me tira.
Rui Machado
sábado, 12 de dezembro de 2015
Matéria e outros elementos ou talvez o monólogo que queria ser diálogo
Fogo
Água
Terra
Fruto
Flor
Não há um dia que não me lembre de ti. Um único dia. Se à noite acordo, penso em ti. No banho penso em ti. Quando olho, mesmo não vendo, penso em ti. Quando rio, penso em ti. Em ti, sempre em ti. Tenho saudades de quando me chamavas vagabundo porque chegava tarde à noite. Tenho saudades de quando me pedias beijos e eu, furtivo, fingia que não queria. Tenho saudades de quando me punhas a mão na testa e me dizias que tinha febre. Tenho saudades de quando me penteavas e me chamavas nomes bonitos. Tenho saudades do teu comer, aldrabado como dizias. Tenho saudades de quando me chamavas troulas porque andava descamisado. Tenho saudades de te sentir por perto, existente, matéria.
Ar
Aprecio esse teu lado sonhador, crente na boa vontade dos homens. Identifico-me com essa tua necessidade de atenção, mesmo dando ideia de que tens toda a força, mesmo quando não tens. Gosto de te ouvir, de te ler, mesmo que te pareça distante. Eu estou lá, contigo. Não me esqueço de quando me pegavas ao colo nas ruas íngremes. Vejo-te ainda na praia lendo o jornal no meio dos penedos, deitando um olho para quem passava e o outro para as letras do mundo, nem sempre boas de ler. Sigo o teu lado otimista, de que melhores dias virão e que tudo tem solução. Inspiro-me na tua resiliência, no teu já longo caminho. Reinventas-te e eu sigo-te.
Água
Gosto de te chamar mãe coragem. Tanto caminho trilhado, tantas vezes sozinha. Como te entregas aos teus e cuidas dos dos outros. Como tornas a diferença em igualdade. Como te manténs jovem e enérgica. Como te despes toda para que nada falte aos frutos do teu ventre. Lembras-te quando me levavas ( que remédio tinhas ) aos encontros com o teu namorado e eu dizia: Não gosto dele! Lembras-te? Por onde passas, as flores ficam mais belas.
Terra
Não me lembro ao certo da primeira vez que te vi. Sei que foi há muitos anos e no entanto foi há pouco, há poucochinho. Foi agora mesmo. Mas lembro-me da fragilidade que aparentavas e que cedo me nomeaste o teu fiel escudeiro. Ainda hoje, por graça, me chamas o teu segurança. E sou. Há muitos anos que seguro a tua mão no nosso destino comum. Desde o teu primeiro olhar que deixei de me sentir estranho, que os teus olhos me veem e não me sinto observado. Na verdade, sofro sempre que me não vês. Foi nessa tal fragilidade que captei o teu encanto e construi este amor antigo. E quem resiste ao teu sorriso? Viciado que estou em ti, ressaco sempre que não te tenho. Choro sempre que tu choras. Carrego-me nessa força que me empurra. Conforto-me em ti, na tua pele, no teu calor. Foste, és e serás sempre luz, fonte e alimento.
Fruto
Sabes, eu sempre quis ser pai. Tinha essa ideia, essa vontade. Para que serve a semente se não germinar um dia? Lembras-te do primeiro banho que te dei? Consegues ter memória desse momento? Mais do que memória, és a minha carne, a minha pele e não caibo em mim quando dizem que és meu, que não enganas. Lembras-te das nossas insónias? Quando juntos preenchíamos as noites más tornando-as mais suportáveis. Recordas o super-herói que um dia te dei? Para o infinito e mais além! Muito mais além, num lugar onde estaremos sempre juntos, aconteça o que acontecer. Talvez não tenha o direito mas quero que saibas que em ti, vejo-me em mim, em versão melhorada.
Escuta minha princesa, eu sei que às vezes sou um elefante e que tu és uma porcelana. Eu sei que nem sempre caibo no teu mundo de fantasia e sensibilidade. Que nem sempre estou presente e que não pareço atento. Quero que saibas que estou sempre a ver-te, que olho em todas as direções e que protejo o teu castelo encantado. Compenso-te em abraços, os meus, são os melhores do mundo.
Rui Machado
domingo, 6 de dezembro de 2015
Que força é esta?
Acordam as manhãs geladas, chegou finalmente o frio. Metemos os corpos quentes na roupa fria, um arrepio e estamos prontos para mais um dia. São 7 da manhã. No limite 7 horas e 9 segundos, o segundo tem de ser ímpar, sempre. Empurramos o corpo pela casa que ainda dorme, indiferente aos horários dos homens. Saímos. Outrora, os percursos até ao Liceu feitos a pé davam outro sentido às manhãs. O frio dos invernos de antanho envergonhava os sentidos que, um após o outro, despertavam lentamente. Agora, os caminhos são outros. Mais distantes e difíceis de alcançar. Mais solitários também.
Eu amo estes montes, estas invernias transmontanas. O cheiro das lareiras. Será carvalho, freixo, talvez carrasco, nobre lenha que nos aquece o corpo e ainda mais a alma. Mas a vida é difícil. Haverá vidas fáceis? O que será melhor, percorrer estradas geladas ou atravessar o rio para a outra margem na grande metrópole, lá onde tudo fica longe e as pessoas não se olham nos olhos? Mas lá, onde os carros invadiram os espaços das árvores e das pessoas, dizem-me que há muitas oportunidades. Que há cinema. Teatro. Muita gente. Talvez haja tudo isso. Mas não há horizonte. Não há alimento para os sentidos. Que seria de mim sem os horizontes curvilíneos dos montes onde o Sol se encaixa para dormir e depois, com tempo, se mostra devagar, vaidoso? Aqui, por detrás dos montes, o Sol lança a sua melhor energia para ajudar os homens no amanho da terra, tantas vezes ingrata e rude. Vida marcada nas rugas vincadas dos rostos parados no tempo a olhá-lo, ele que corre quieto, dia após dia ao ritmo das estações, ao ritmo das tarefas do campo.
Que horizonte é esse que me enraíza e me imobiliza? Que linguajar é esse, tão emocional e sentido? Que lindas as nossas mulheres! As nossas crianças! Que genuínas, que verdadeiras! Que força é esta que trago no peito e não quero sentir esmorecer? Força que me impede da procura da cidade que acorda quando o Sol ainda dorme deitado em pedaços de cartão debaixo de um qualquer viaduto. Mas essa força fraqueja. Devagarinho, qual doença invisível, impercetível nos meios de diagnóstico. Mas a Terra geme baixinho, nós não a queremos ouvir, ela lamenta-se… Onde estão as crianças que corriam alegremente para a escola? O que é feito das pessoas que enchiam os adros das igrejas? Onde param as tertúlias dos amenos fins de tarde que à soleira do café resolviam os problemas do mundo? Alguém viu o amolador de facas e tesouras? Aquele que arranjava os guarda chuvas estragados pelas inclemências do tempo. Ainda ouço aquele chamamento… Onde está o vendedor da banha da cobra? Aquele que dizia nos dias de feira “ chá sul africano para todas as maleitas, acorda de manhã…”, repetindo até à exaustão os benefícios da infusão milagrosa de proveniência duvidosa. O que é feito das pessoas que enchiam os comércios? As drogarias. As retrosarias. Os alfaiates e modistas. Os barbeiros. O chapeleiro. O armazém de vinhos finos. Os sapateiros. Os Tem-Tudo, desde as tripas de porco para o fumeiro até às sementes da couve penca. O armazém da Cooperativa na Rua Direita onde comprávamos o bacalhau de cura amarela onde um velho (sempre velho) embrulhava a peça inteira numa bela e forte folha de papel ferro. E os caixeiros viajantes que municiavam os comércios. Traziam malas muito grandes, muito bem arrumadas, alinhadas nas carrinhas Peujeot e tapadas com mantas. Quando abriam os mostruários era todo um novo mundo que se mostrava. As novidades que saíam das malas arregalavam as meninas dos olhos dos compradores: “ ponha-me uma dúzia destes, aqueles não que se vendem mal”.
As cidades e aldeias que morrem aos poucos. Tantas janelas fechados nas ruas que nos levam ao castelo. Triste, muito triste. Muitas perguntas para as quais nós sabemos a resposta: foram--se embora, fecharam, demoliram-se, morreram…
Mas talvez, haja uma esperança. Por estes dias, as ruas enchem-se de vozes, ainda que saídas de pequenas colunas espalhadas pela cidade. Talvez outras vozes se juntem, saiam de casa, regressem, acordem dum sono profundo e interminável. Talvez as crianças se multipliquem e alegremente, deslizem no gelo, indiferentes aos horários e obrigações. Talvez os presépios induzam uma fertilidade nas gentes desiludidas e conformadas.
Talvez. Talvez sim. Eu gostava. Eu gostava que aqueles que partiram, voltassem. Estamos prontos para os receber.
Rui Machado
sábado, 28 de novembro de 2015
Somos todos tão bonitos!
Somos todos tão bonitos, tão cheirosos, tão bem vestidos, tão elegantes, tão fitness e running que até chateia. O culto da imagem é uma verdadeira obsessão. A imagem estereotipada dos modelos da publicidade, belos e musculados torna-se o exemplo invejado que coloca a nossa imagem no topo das preocupações. Talvez por isso, um grupo de crianças de 7 ou 8 anos faça o seguinte autorretrato: “ Somos muito bonitas, vestimo-nos muito bem, somos elegantes, temos cabelos espetaculares e somos muito bem dispostas.” E de facto são. Cada vez mais são só isso. Nesta constatação, incluo as vozes irritantes das adolescentes das séries da TV, sempre muito bem sucedidas, bonitas, sacanas quanto baste, irónicas e egocêntricas que mal cabem na caixa mágica. Nesta tendente superficialidade de carácter, incluo também as novas tendências musicais de grupos de meninos imberbes a debitarem frases soltas em harmonias orelhudas sobre muito amor para dar, se tu queres eu quero, há um caminho para nós os dois, vem ser feliz comigo e olha para mim tão lindo aqui. E elas e eles parecem gostar. Mesmo que sibiladas por alguém que usa artefactos indígenas nas orelhas ou um arganel no nariz. Diz que são os novos tempos, que temos de nos habituar. Faço um esforço e lá vou conseguindo encarar com naturalidade estes desvios estéticos, valorizando nomeadamente a liberdade individual de quem exterioriza a sua diferença. Apesar de tudo reconheço que a vaidade e uma dose certa de auto estima fazem muito bem à saúde mas também tenho a certeza de que só isso não chega.
As evidências parecem apontar para uma crise de valores comummente aceites como universais. Um destes dias, num programa de opinião pública, um senhor dizia que se mandasse acabava com os partidos de esquerda e com… o Benfica. E aquele outro que perguntava “ já indigitaram o preto?”. E ainda a imprensa que fala em governantes ciganos e cegos. De que vale o embrulho quando a essência é ódio, rancor, agressividade e xenofobia.
Mas a pergunta que se impõe, o que podemos nós fazer? Sem elencar um receituário infalível, deixo aqui umas ideias:
Há quanto tempo não fala com o seu filho sobre a beleza do Outono? Há quanto tempo não lhe diz que o ama? Tivemos o cuidado, nós adultos, de explicar o que aconteceu em Paris? Tivemos o cuidado de fazer sobressair o lado humanista dos gestos, das palavras que contam? Ou deixamos os nossos filhos expostos às imagens nuas, às palavras soltas e às interpretações académicas dos adultos? As crianças contam connosco. Não as abandone a si mesmas. Ouça as suas inquietações, mesmo as não verbalizadas, explique-lhes de que fogem os refugiados. Tente não ser parcial. Explique-lhes que uma criança tem as mesmas necessidades em todas as latitudes. Não politize tudo, a vida é muito mais que realidades polarizadas. Lembre-se que enquanto vocifera contra este ou aquele, o seu filho escuta-o, absorve tudo o que diz, ele precisa das suas palavras. Deixe os seus ódios de estimação para si próprio. Mostre-lhe a diferença, seja tolerante com aquilo que não concorda. Defenda os seus pontos de vista sem menosprezar as ideias contrárias às suas. Trabalhe o carácter do seu filho. Diga-lhe que sim, que ele é lindo por fora mas foi feio quando insultou o colega gordo, cigano, cego ou pobre. Que não esteve bem quando não teve paciência para as perguntas do avô. Que devia ter entendido as razões porque não lhe comprou os ténis de 120 €. Que pode desligar a televisão para que possa conversar consigo. Que pode ler um livro. Que pode ter uma ideia. Que pode fazer um desenho. Que pode brincar com o vizinho.
Estranha crónica esta. Talvez esteja a precisar de um jantar de amigos. Talvez tenha saudades dos meus irmãos e sobrinhos. Da gente a quem quero bem. Das pessoas de bem que passaram pela minha vida e que não sei por onde andam. Talvez seja isso. Ou talvez não. Talvez também precise que alguém me explique o que se está a passar no mundo.
Para terminar, desanuviemos. Estudos científicos recentes confirmam que os nossos amigos canídeos gostam mesmo de nós. Foi possível estudar o cérebro dos nossos amigos patudos e confirmar que eles nos veem como pertencentes à sua família, que reagem não só aos nossos cheiros mas também às nossas angústias e frustrações. Nada que quem tem cães não soubesse já. A ciência só confirmou.
Rui Machado
sexta-feira, 20 de novembro de 2015
O futebol que eu gosto nem é futebol, é jogar à bola
Citando Eduardo Galeano: “Un periodista pregunto a la teóloga alemana Dorothee Solle: --¿Como explicaría usted a un niño lo que es la felicidad? -- No se lo explicaría -- respondió -- le tiraría una pelota para que jugara.”
Esta não resposta sintetiza a essência do futebol. Existem duas dimensões do fenómeno: o jogo jogado pelas crianças na rua, nos campos improvisados e também nos clubes vocacionados para a formação e o negócio em que se transformou a indústria de milhões liderada pelos petrodólares e por agentes mediadores de grandes negócios, com tal envergadura que nos questionamos sobre a sua origem e porque razão não faltam interessados em investir. Há hoje um futebol sujo, a cheirar a petróleo, cativo das transmissões televisivas à escala mundial, uma indústria que não para de crescer e de gerar riqueza. Este enquadramento torna cada vez mais difícil encontrar a felicidade que a teóloga alemã dizia observar no jogo jogado das crianças. Apesar de tudo, de quando em vez, aparece um intérprete, um criador que num egoísmo egocêntrico, corre com a bola, acariciando-a, tocando-a, gerando essa relação estranha já que depois das carícias enlevadas, livra-se dela a pontapé. E ela, obediente, vai esvoaçante, sobrevoando cabeças que tentam alcançá-la mas ela leva pressa, quer chegar às redes que pretende beijar dando assim um prazer supremo ao pé criador que a projetou pelo campo fora.
O futebol, esse jogo estranho de vinte e dois obreiros, uns mais do que outros, de pouquíssimos artistas mais os apelidados especiais e doutores da bola, qual metáfora da sociedade.
O futebol como ciência é um verdadeiro frete, que me desculpem os entendidos que hoje preenchem os milhentos programas de análise, de debate e comentário.
O futebol que eu gosto nem é futebol, é jogar à bola. É a tal felicidade. É o movimento coletivo que aproxima as diferenças, que exterioriza a alegria saudável que existe em todos nós. É o correr para o campo da escola no intervalo apressado entre duas aulas. É o gerador de amizades momentâneas numa rua de diferenças. É o bailado, o tango argentino, o samba no pé e o fandango, tudo em uníssono. É tudo e todos. É cântico de orgulho na bandeira hasteada no pilar de um povo. É cor ao vento. É afonia, é o golo gritado na telefonia elevado ao expoente máximo da loucura. É a corrida ziguezagueada entre as traves adversárias. É o limite das forças. É o palco da glória dos improváveis e muitas vezes o calvário dos consagrados. É a onda sincronizada, apartidária e vibrante das multidões. É a angústia do guarda-redes perante o pelotão de fuzilamento. É o erro humano do juiz emparedado entre jogadores, assistência e a douta análise dos comentadores. É o cromo da bola que ao domingo aproveita para ser notado depois de mais uma semana a ser ignorado. É a tribuna dos poderosos, dos beneméritos bem vestidos e perfumados que, enfadados, se mostram às massas. É a desculpa forjada, a lavagem de capitais e atitudes. É a psicanálise regressiva que nos transforma em jovens de vinte com corpos de quarenta. É o fervor clubista, irracional e quase sempre inexplicável. É doutrina. É missa pagã. É êxtase e cólica emocional, tantas vezes grito e choro.
Para terminar, peço emprestadas as palavras de Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio no seu livro El fútbol a sol y sombra y otros escritos:
“ Al final del mundial del 94, todos los niños que nacieron en Brasil se llamaron Romario y el césped del estádio de Los Ángeles se vendió en pedazos, como una pizza, a veinte dólares la porción. Una locura digna de mejor causa? Un negocio vulgar y silvestre? Una fabrica de trucos manejada por sus dueños? Yo soy de los que creen que el fútbol puede ser eso, pêro es también mucho más que eso, como fiesta de los ojos que lo miran y como alegria del cuerpo que lo juega.”
Para mim, o futebol é isto, vai ser sempre isto. Como se fosse pouco.
Rui Machado
domingo, 15 de novembro de 2015
A teoria da burocracia de Max Weber ou como organizar a gaveta das meias
Um destes dias, numa tentativa de arrumar uns papéis que se vão acumulando ao longo do tempo, tropecei na Teoria da Burocracia de Max Weber. Tentava eu, em vão, colocar em prática os seus ensinamentos: ser organizado e eficiente. A tarefa não tem sido fácil já que não sou organizado. Trata-se de uma fraqueza com a qual lido muito bem. Talvez os que partilham os espaços comigo não sejam da mesma opinião. Tendo crescido numa casa com muita gente e ainda por cima com muitos homens (inevitável comentário sexista) a organização era a possível. Convivia bem com isso. Mais tarde, quando comecei a partilhar afetos e despesas tive alguma dificuldade em memorizar os “ sítios” das coisas. Desde a gaveta das meias, ao correio rececionado, aos jornais do dia anterior e acabando nos vários tipos de massa arrumados em caixinhas, a arrumação das roupas respeitando a estações do ano, tudo foi uma aprendizagem mais ou menos complicada.
Mas porquê Max Weber? Nas nossas ocupações profissionais estamos hoje naufragados numa burocracia asfixiante, não a burocracia preconizada pelo intelectual, jurista e economista alemão mas uma outra conceção pejorativa, uma disfunção do modelo organizacional. Para o comum dos mortais, burocracia é entendida como uma organização lenta e vagarosa na qual a acumulação de papelada se multiplica e se avoluma, impedindo soluções rápidas e eficientes. Como referido, a visão do senso comum sobre burocracia é uma disfunção do sistema burocrático mas não é o sistema em si mesmo. O Sr. Weber, falecido em 1920, queria um modelo autoritário, hierarquizado, com tarefas bem definidas, com comunicações e atos devidamente formais e com funcionários especializados e despersonalizados, características presentes nas organizações dos nossos dias. Refletindo um pouco, parece-me que o modelo se desvirtuou porque se colocou a tónica nos objetivos e não nos meios para melhorar o desempenho de todos. As organizações públicas são hoje escrutinadas em várias frentes. Sofrem pressões internas e externas que exigem respostas permanentes. Respondem verticalmente a modelos políticos cada vez mais voláteis, obedecem a doutrinas e ideologias nem sempre claras mas irrevogavelmente presentes. No meio deste turbilhão, tomam-se opções organizacionais que prejudicam a eficiência e sobretudo prejudicam a realização pessoal sempre preterida em prol da organização. Nas organizações dos nossos dias não há lugar à espontaneidade, as relações despersonalizaram-se, deixamos de ter colegas de trabalho pois as pessoas com quem lidamos profissionalmente são meros ocupantes de cargos hierarquizados. Perdemo-nos em normas, formulários e plataformas informáticas e outros maravilhosos trava eficiência. A informática, erradamente, tem servido para emperrar a engrenagem. Esta suposta ferramenta facilitadora tem servido para acumular registos e mais registos que nem sempre são analisados de forma adequada para, formalmente, melhorar procedimentos. Vulgarizou-se o “ manda-me por mail”, o upload, o registo electrónico, a base de dados… e ninguém contabiliza o tempo que isso nos consome. Será esta a eficiência pretendida? Não me parece que seja. As malditas evidências que constantemente nos pedem só terão a utilidade desejável se forem devidamente tratadas e analisadas e daí se extraírem os melhoramentos necessários.
Para terminar, dizer que nem todas as organizações são iguais. Costumo dizer que uma escola não pode ter os mesmos critérios organizacionais que uma fábrica de parafusos. Se o parafuso sai torto ou com a rosca defeituosa, não será difícil encontrar a causa do defeito mas na escola, os parafusos são outros e desenganem-se aqueles que acham que os podemos fabricar com recurso à comparação entre contextos análogos. Esta análise ficará para outra crónica.
Entretanto, façam o favor de se organizarem, de serem eficientes ou então façam como nas lojas comerciais, chamem o supervisor que ele passa o cartão e resolve tudo.
Rui Machado
quarta-feira, 4 de novembro de 2015
O pai do rock ou a banda sonora das nossas vidas?
“sei de uma camponesa
que dança à noite na eira
perfumada de avenca e feno
enfeitada de tomilho
e canta com a expressão
de quem vai ter um filho
mesmo pelo coração”
Sei de uma camponesa de Rui Veloso / Carlos Tê
que dança à noite na eira
perfumada de avenca e feno
enfeitada de tomilho
e canta com a expressão
de quem vai ter um filho
mesmo pelo coração”
Sei de uma camponesa de Rui Veloso / Carlos Tê
Não sendo muito dado a efemérides, reconheço que servem para nos recentrarmos em aspectos importantes, personalidades marcantes e evocações necessárias e pertinentes. Serve o introito para lançar as palavras sobre alguém que compôs a banda sonora da minha vida e talvez da vida de muita gente da minha geração: Rui Veloso e Carlos Tê.
Comemoram-se os trinta e cinco anos de carreira daquele que, erradamente, nos disseram desde sempre, tratar-se do pai do rock português. O próprio não se sente muito confortável com a paternidade e tem as suas razões. Os pais são outros: Paulo de Carvalho e Carlos Mendes dos Sheiks; Tozé Brito e José Cid do Quarteto 1111; Rui Brazão e Carlos Alberto do Conjunto Académico João Paulo não esquecendo Os Conchas de Daniel Bacelar que em 1960 gravaram os dois primeiros originais de rock editados em português, vinte anos antes da edição do primeiro disco de Rui Veloso.
A correção histórica não tira a importância ímpar da dupla Rui Veloso e Carlos Tê na história do rock português. A referência aos dois torna-se obrigatória porque não me parece que possam existir separados enquanto criadores. As palavras do Tê não parecem fazer sentido quando não cantadas por Rui Veloso e também os temas perdem a singularidade sem as palavras do Tê.
No Natal de 1980, recebi das mãos da minha irmã o álbum “ Ar de Rock”. Aí começou esta relação de admiração pela música produzida por um jovem portuense de 22 anos, com um ar banalíssimo, de calças de ganga, sapatilhas, óculos Ray-Ban, sotaque à Porto, com uma postura de antivedeta. No gira discos lá de casa, o vinil negro, quase inquebrável e revestido a “ emitex que preserva este disco protegendo-o da poeira” tocava vezes sem conta. Nas primeiras audições, cativavam as melodias simples, o som da guitarra elétrica, a viola baixo do Zé Nabo e a bateria do Ramon Galarza. Pelo meio, surgia uma harmónica carpidente e sofredora. Mais adiante, lia com uma atenção imperturbável as letras do Tê:
Em Saiu para a rua “ Tantos anos tantas noites / sem nunca sentir a paixão / foram já as bodas de prata / comemoradas em solidão “;
Em Miúda (fora de mim) “ Primeiro deste-me sorte / saímos os dois por aí / cinemas uns bares e dançámos / perdemos sul e norte / ficámos partimos daqui / quisemos achar e achámos / depois tu de repente já diferente / percebi que alguma coisa se passava / procurei-te e miúda achei-te ausente / e era a primeira vez que assim te achava”;
Em Bairro do Oriente “ Tenho à janela / uma velha cornucópia / cheia de alfazema / e orquídeas da Etiópia”;
Em Afurada “ Murmura a maré no casco / os pescadores conversam / à porta do tasco / fumando um cigarro forte “.
Eram palavras simples, diretas, palavras com sentido que retratavam vidas de pessoas reais, nossas vizinhas, connosco. Muitas vezes, palavras que faziam eco dos nossos pensamentos, dos beijos roubados às namoradas, das vítimas, das vidas difíceis dos pescadores, dos desencontros entre o eu e os outros, das ausências em mim, em nós, dos ambientes a oriente, das vidas perdidas “ depois de mais um shoot nas retretes / curtindo uma trip de heroína “…
Falamos de um disco datado, dum contexto confuso num Portugal pós PREC onde tudo estava para acontecer. Não sendo o pai do rock, Rui Veloso deu continuidade aos acordes elétricos dos primeiros passos da década de 60. Funde o Soul e Blues americano com uma portugalidade reconhecível por todos. Ilustra, com música, as nossas interrogações, os nossos dilemas. Para mim, crescer a ouvir os seus originais, serviu de terapia. As letras que não percebia de início, fui-as descodificando ao longo da vida. “ Vem vem à minha casa / rebolar na cama e no jardim / acender a ignomínia / e a má língua do código pasquim / que nos condena numa alínea / a ter sexo de querubim “ ou “ Há um jovem pescador / a trincar dedos cortados / pela sediela fina / segura na mão a amarra / e despede-se da mulher varina / que lhe abotoa a samarra” são enquadramentos cinematográficos que ficam bem em qualquer sonho.
Rui Machado
NOTA: Recomendo o documentário que a RTP está a passar sobre o Rock Português, A arte elétrica em Portugal.
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
Paxaricos, Professor, Paxaricos
Será que os mercados sabem que o Joel se levantava às
seis da manhã para ir botar as canhonas ao lameiro antes de ir para a escola?
Será que os mercados sabem que o Alexandre, no
intervalo para almoço, voltava após cinco minutos porque, simplesmente, não
almoçava?
Será que os mercados sabem que a Inês, com seis anos
de idade, levantava-se sozinha porque a mãe, avinhada da noite anterior, não
tinha aparecido em casa ou não tinha saído da cama?
Será que os mercados sabem que o Martim cresceu sem
os valores dos pais, demasiado ocupados nas suas carreiras de sucesso?
Será que…
Podia continuar. A verdade é que aparecem cada vez
mais crianças nas salas de aula, desnorteadas, abandonadas a si mesmas por
razões diversas. Continuam as miseráveis, que sempre existiram, mas também
aquelas, outras, que os pais simplesmente não lhes dedicam qualquer tipo de
atenção ou atenção de qualidade. Crianças que não dormem o tempo necessário
para o seu crescimento saudável, não dormem nas condições mínimas de conforto,
higiene e sossego. É sabido que um dos estádios do sono serve precisamente para
assimilar as aquisições cognitivas do dia anterior, que de nada serve pensar na
implementação de estratégias de ensino adequadas a este ou àquele aluno, se ele
não dormir o tempo adequado à sua idade. Mas também crianças vítimas da
propaganda agressiva e altamente eficaz da indústria alimentar, viciadas em
açúcar, em corantes, em sódio…
Perdermo-nos amiúde em análises demoradas de
comportamentos desviantes e dificuldades de aprendizagem. A explicação pode ser
simples. O estilo de vida destes nossos novos dias está a criar crianças
desregradas, obsessivas, obesas, com uma atividade demasiado acelerada ( para
evitar o termo estafado da hiperatividade), egocêntricas e não poucas vezes,
criamos pequenos ditadores, impositores de vontades e regras.
Os pais de hoje não sabem dizer não. Como dizia
Daniel Sampaio, quem disse que pais e filhos devem ser amigos? Claro que devem
ser mas estão obrigados a dizer não quando necessário e a não dar porque não
podem ou mais importante, porque dando cedem a vontades supérfluas e criam nos
menores uma ideia falsa de vida fácil. É notório um grande défice em
competências parentais, mesmo salvaguardando que podemos ter ideias divergentes
sobre aquilo que queremos para os nossos filhos.
Apesar de tudo, as crianças continuam a ser a melhor
coisa do mundo. Estão cada vez mais despertas, mais conhecedoras, mais
extrovertidas e comunicativas mas estão sujeitas a demasiada oferta. Perdem-se.
Dispersam-se.
O Joel das canhonas não tinha tablet, ténis de marca
e canais por cabo. Não tinha instalações sanitárias em casa, dizia “ eu vou a
monte, professor”. Também ao Alexandre faltava o essencial:
- Alexandre, o que almoçaste?
- Paxaricos, professor, paxaricos.
- E mais?
- Besuntei o
pão na frigideira…
Curiosamente, a momentos, via nos olhos destas
crianças uma alegria momentânea, genuína que nem sempre vejo nos olhares das
crianças que têm tudo ou quase tudo. Tinham espaço para correr, subir às
árvores, nadar no ribeiro, conhecer os animais, podiam sujar-se, colher os
frutos da natureza, apanhar amoras.
As crianças de hoje não têm tempo para brincar,
brincar em liberdade, jogar à bola na rua do bairro ou andar de bicicleta pelas
ruas da cidade.
Em tempos, uma associação de pais questionava os seus
associados se estariam interessados em alargar o horário escolar até às
dezanove horas, organizando um prolongamento acompanhado. Um pai, cidadão
inglês, escreveu no papel do questionário: “ Não estou interessado, já há
escola a mais em Portugal”. Tratava-se de alguém com formação superior.
Paradigmático. Na verdade, este modelo de escola a tempo inteiro, serve a
necessidade dos pais, com horários de trabalho nada flexíveis, impedidos de
acompanhar os filhos. A pergunta que se impõe é se este modelo serve a
necessidade da criança em simplesmente, ser criança. Na minha opinião, não
serve.
Concentram-se às centenas, aos milhares em escolas
muito bem projetadas ou não ( sabiam que nas escolas modernas não se podem
abrir as janelas ???), em salas exíguas, ruidosas e com fracos materiais de
construção. Crescem em espaços muito bem qualificados mas impessoais. Muito bem
higienizados mas nada arejados.
Mas enfim, deve ser isto que faz bem aos mercados.
Encontremos uma solução intermédia onde o Joel não
tenha necessidade de ir a monte e o Martim possa estar mais tempo com os pais.
NOTA: Os nomes das crianças foram alterados e a
crónica não se refere a nenhum contexto específico.
sexta-feira, 16 de outubro de 2015
O Zé Jardineiro
O Boeing 737 da Ryanair acabara de aterrar no pequeno aeroporto de Beauvais, França. A viagem correra sem sobressaltos. Nesse ano, as férias seriam diferentes. Em vez de praias e esplanadas, a família rumou à Normandia. Ainda mal refeitos dos abanões causados pelas nuvens habituais da Normandia, lá estava ele, acenando, mostrando o seu contentamento por ter, finalmente, a sua família na sua casa em França. Toda uma vida de trabalho, tantas canseiras, a distância, os Natais longe de casa, a saudade… mas agora estavam todos juntos. E estava feliz. Talvez como nunca esteve. Um amigo ajudara no transporte da comitiva. No percurso até casa, a conversa de circunstância de quem chega a novas terras: o tempo em geral, a chuva em particular, as casas, os campos, o preço dos combustíveis, os limites de velocidade, os hábitos locais, as gentes…
Chegaram. A casa não destoava da arquitetura local, com os seus telhados muitos inclinados, as cores terra, as portadas das janelas e o seu interior com as traves de madeira à vista, era confortável e funcional.
Nas traseiras da casa, ei-lo que surgia, o Jardim. Não se encontram as palavras adequadas para o descrever. O verde, a variedade das flores, dos arbustos, das árvores de fruto, a esplanada sobre o jardim, os carros que passavam na Nacional Paris-Rouen, ignorando a beleza que perdiam, as cores…as inebriantes cores. Magnólias, petúnias, malvas, dálias, cravelinas e outras, tantas, incógnitas, talvez ainda mais belas, mais enigmáticas, distintas. Era um jardim com vida: carros de mão trabalhados em madeira, arbustos a quem o jardineiro artista deu vida, transformando-os em cestas, cafeteiras e bules, cadeiras, chávenas, de tudo um pouco, simples mas belos projetos nascidos da criatividade das mãos poéticas do artista, conduzindo as tesouras num bucólico bailado. O jardineiro madrugador, com mestria, dava forma, dava vida aos arbustos do Jardim. O Jardim do Tio Zé da França. Já o conhecíamos das fotografias que o autor orgulhosamente ostentava nas visitas a Portugal, mas vivenciá-lo, conhecê-lo in loco tornava este jardim de autor uma experiência tocante. Já todos sabíamos que havia um poço no centro deste espaço, um poço a fingir, pois em vez de dar água, dava flores. Já todos sabíamos que na horta havia um pouco de tudo, não fosse transmontano o Tio Zé. Alfaces, feijões, tomates, batatas, couves, tudo. Horta e Jardim. Jardim e Horta num namoro cúmplice testemunhado pelo Zé Jardineiro. E os filhos desta relação não paravam de nascer. Um morango que corava debaixo do sol envergonhado da Normandia. Uma alface que estava quase mas não estava. Os tomates ainda verdes, esperavam pelos dias vindouros para amadurecerem mais um pouco. Os feijões verdes que ajudaram a avó a fazer uma sopa bem portuguesa. As dálias, que neste jardim ganhavam dimensões nunca vistas, quase épicas, exibindo cores exuberantes em todo o seu esplendor. Os arbustos, falando entre si, vaidosos, esperando pelo dia da poda, esperando pelos cuidados do mestre. O que nós não sabíamos era do projeto que o Zé congeminara na linha da usina. Aí tinha feito o esquisso da surpresa. Há quatro anos que andava com essa ideia na cabeça. Mas a vida não tinha permitido. Não havia vagar. Agora havia. Começava a haver. A prova estava à vista de todos: um moinho. O Zé tinha feito um moinho. No meio do Jardim. Um moinho. Não era um moinho da Holanda nem da França, nem do seu próprio país. Era o seu moinho. E funcionava. Não precisava de grande vento para que as suas pás girassem. E giravam e ao girar tinham um não sei quê de mágico porque a gente ficava a olhar para o moinho, para o seu movimento giratório e sentia-se levar pelo movimento ondulante.
A observação do moinho transportava-nos para longe, ao ponto, pareceu-me , de ter visto, ainda que de relance, D.Quixote de la Mancha, que perdido pelos caminhos, encontrou este moinho com quem intentava guerrear-se. E foi aí, amigo leitor, percebi a presença do cavaleiro andante. O jardim feito de sonhos, estava repleto de inimigos que o cavaleiro digladiava. No entanto, eram opositores com nomes amigáveis: flores, muitas, belas e perfumadas, plantas acarinhadas e moldadas, mas sobretudo…muitos sonhos e desejos.
E percebi. Pode demorar uma vida a perceber. Mas meus amigos, pelo sonho é que vamos. Pelo sonho gerador de criatividade, engenho e querer.
sexta-feira, 9 de outubro de 2015
O Vasconcelos
Aos finais de tarde, saído da escola, corria em direção à Livraria. Não sem antes atirar umas fisgadas aos pobres dos pardais da mata do Seminário, jogar à bola com os parceiros do Patronato ou ainda, ir espreitar o grande buraco da Estacada, local enigmático que no inverno se enchia de água, formando um pequeno lago, que eu gostava de explorar, até ao dia em que levei uma pedrada vinda do outro lado, oposto ao Colégio. Depois de feitas as asneiras aceitáveis a crianças de sete ou oito anos, lá ia para a Livraria. Às vezes, ao chegar, ou porque estava corado e transpirado ou porque tinha rompido as calças na jogatana atrás da Escola da Estacada, levava uma reprimenda ligeira que acabava sempre num beijo e no inevitável pentear dos cabelos. O andar penteado era uma verdadeira obsessão para a minha mãe. Lembro-me na minha infância, quando íamos visitar a minha avó minhota, antes de chegar, parávamos num fontenário onde a minha mãe “lambia” as crias com um velho pente que trazia na carteira. Só depois destes preparos é que estávamos prontos para visitar a avó velhinha.
Entrava na Livraria e já lá estavam. Sempre. Nunca falhavam. Todos os dias. Um deles era o Vasconcelos. O Vasconcelos… Para mim, Sr. Vasconcelos.
Não me custava nada cumprimentar o Vasconcelos, mesmo eu que não era dado a cumprimentos. Mas a ele não. Era fácil, agradável. Habituei-me à sua presença e estranhava se não o via. Às vezes, ao sábado, atrasava-se e aparecia muito afogueado ao final da manhã: “Estive a ouvir as Zarzuelas na Rádio Nacional de Espanha, não dei pelo tempo passar…”.
O Vasconcelos conhecia todos os recantos da Livraria, lá passou horas intermináveis a relacionar-se com os livros. Ver o cuidado com que os tratava, quase voluptuoso, como limpava o pó aos que tombados, jaziam em locais inacessíveis, era uma pintura de aguarela, esbatida mas muito presente. Imagem que até hoje povoa o meu imaginário. E a calma com que falava, com que expunha os seus pontos de vista, a educação inatacável com que se dirigia aos demais, o comentário mais atrevido, mas adequado, sobre uma qualquer beldade que por ali entrasse, ou a argumentação serena, quando eu, desprovido do que faz falta para crescer, tentava juntar umas ideias sobre este ou aquele político, sobre uma qualquer personagem histórica ou sobre a atualidade, a espuma efémera dos dias, ele dizia simplesmente: “sim, mas não é bem assim…” ou “isso é verdade mas é preciso ter em conta…”. E eu ouvia-o. E entendia-o. E respeitava-o.
Era um homem duma cultura sem fim. Um amante de todas as formas de Arte. Um leitor compulsivo. Penso mesmo que se deixou vencer pelos livros que leu. Tinha-os aos milhares em casa. Nada mais importava. Esse era o seu mundo.
O tempo foi envelhecendo tudo e todos. A Livraria fechou. Eu deixei de poder andar às pedradas (embora às vezes me apeteça) e o Vasconcelos foi chamado para funções mais nobres. Hoje, talvez mate o tempo a arrumar e a folhear as bibliotecas dos Deuses e a ouvir Zarzuelas celestiais.
Fernando Fausto Machado de Meneses Vasconcelos. Para mim, Sr. Vasconcelos. Com ele aprendi que o Livro é muito mais que um objeto. O Livro é saber, cultura, lazer, mas sobretudo, o Livro é amor. E não há vida sem amor. Não há vida sem livros.
terça-feira, 6 de outubro de 2015
A Graziela
Corria o ano de 1997. O carro rasgava as encostas do Douro numa estrada sinuosa. Para trás ficara o Pinhão. A paisagem à margem do Douro era (é) de cortar a respiração. O setembro começara chuvoso interrompendo o verão interminável. Chovera nesse dia. A chuva potenciava os sentidos colocando-os alerta e recetivos. Na telefonia do automóvel, um intérprete, em desespero, bramava um tema do álbum dos Mão Morta “ Há já muito tempo que o ar desta latrina se tornou irrespirável”. Banda sonora pouco a propósito, pouco bucólica, ou talvez não. Na verdade, as dádivas da Mãe Natureza não afugentavam da cabeça do condutor as contrariedades duma vida itinerante. Deixara em casa a mulher grávida de 7 meses. Sozinha. Estava desconfortável, não queria partir. Mas partiu e dizem que ainda hoje é visto por essas estradas fora. Desconhece-se a banda sonora que o acompanha, mas também não é necessário saber tudo.
Chegou finalmente. Apresentou-se cumprindo as formalidades burocráticas. Alugou quarto e instalou-se.
Na manhã seguinte pôs-se de novo a caminho. Não tardaria avistar a Escola. Altaneira, lá estava. Um pouco desviada da aldeia, como sempre. Já estava habituado a orientar-se. As escolas do Estado Novo, as escolas de Salazar eram fáceis de encontrar. Sempre desviadas do povoado, ao cimo do Povo, ao fundo do Povo, na rua da Escola…
Abriu os portões ferrugentos e entrou naquelas paredes sagradas, de sabedoria. Sacudiu o pó da secretária e pousou a pasta. Pouco a pouco foram entrando, tímidos, envergonhados, sentando-se nos lugares costumeiros.
- Bom dia meninos, sou o vosso professor.
Estabelecidas as regras, os dias foram passando por entre mapas de Portugal e das Províncias Ultramarinas, ladeados pela Caixa Métrica, a Biblioteca Escolar (religiosamente fechada à chave) e as carteiras duplas com tampo inclinado e tinteiros de cerâmica. Serviam, eram funcionais. Ao centro, o quadro negro, só alcançado graças ao estrado em madeira que os elevava na estatura e na vida. Enfim, um ambiente pouco adequado para os puristas da pedagogia. Depois havia o olhar das crianças, olhos muito abertos, ávidos de saber ou simplesmente necessitados de alguma atenção, muitas vezes negada pelos pais, atarefados que estavam na procura do sustento.
Ao fim do segundo dia, no final da manhã, quando o Joel se trocava todo com os casos de leitura improvisados no flanelógrafo, bateram à porta. Era a Graziela:
-Sr. Professor, vivo aqui no cimo do Povo, o almoço é lá para a uma.
E foi. Nesse e em todos os outros dias de segunda a sexta.
A Graziela era órfã de pai e mãe, tinha sido criada pela professora primária que toda a vida trabalhara na aldeia. Habilitara a Graziela como herdeira com uma única condição: servir o almoço a todos os professores que lecionassem na aldeia. E Graziela assim fazia. Escrupulosamente na sua pobre cozinha. Servia o seu caldo de couves colhidas na horta com o esmero e o carinho de quem fazia o bem a troco de coisa nenhuma. E não o fazia somente ao professor deslocado. Fazia-o ao primo desempregado, ao tio que regressara do Brasil de mãos vazias, aos “sobrinhos” que salvara na pocilga, abandonados pela vizinha e a todos os que lhe batessem à porta. Andrajosa mas muito limpa, não se importava com as vestes finas da cidade, a bata comprada na feira de Moimenta da Beira, servia muito bem.
Fazia-o da forma mais desinteressada, mais desprendida. Não queria nada em troca. À segunda-feira, à escapula, deixavam-se alguns víveres na banca da cozinha. Ela olhava e fingia que não via. Não se dizia nada. E assim é que estava bem.
Foi o melhor carácter que conheci em toda a minha vida.
Não a quero esquecer e espero que esteja bem. Estará com certeza. Merece.
Na bondade da Graziela, o ar, tornou-se mais respirável.
Rui Machado
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