terça-feira, 6 de outubro de 2015

A Graziela

Corria o ano de 1997. O carro rasgava as encostas do Douro numa estrada sinuosa. Para trás ficara o Pinhão. A paisagem à margem do Douro era (é) de cortar a respiração. O setembro começara chuvoso interrompendo o verão interminável. Chovera nesse dia. A chuva potenciava os sentidos colocando-os alerta e recetivos. Na telefonia do automóvel, um intérprete, em desespero, bramava um tema do álbum dos Mão Morta “ Há já muito tempo que o ar desta latrina se tornou irrespirável”. Banda sonora pouco a propósito, pouco bucólica, ou talvez não. Na verdade, as dádivas da Mãe Natureza não afugentavam da cabeça do condutor as contrariedades duma vida itinerante. Deixara em casa a mulher grávida de 7 meses. Sozinha. Estava desconfortável, não queria partir. Mas partiu e dizem que ainda hoje é visto por essas estradas fora. Desconhece-se a banda sonora que o acompanha, mas também não é necessário saber tudo.
Chegou finalmente. Apresentou-se cumprindo as formalidades burocráticas. Alugou quarto e instalou-se.
Na manhã seguinte pôs-se de novo a caminho. Não tardaria avistar a Escola. Altaneira, lá estava. Um pouco desviada da aldeia, como sempre. Já estava habituado a orientar-se. As escolas do Estado Novo, as escolas de Salazar eram fáceis de encontrar. Sempre desviadas do povoado, ao cimo do Povo, ao fundo do Povo, na rua da Escola…
Abriu os portões ferrugentos e entrou naquelas paredes sagradas, de sabedoria. Sacudiu o pó da secretária e pousou a pasta. Pouco a pouco foram entrando, tímidos, envergonhados, sentando-se nos lugares costumeiros.
- Bom dia meninos, sou o vosso professor.
Estabelecidas as regras, os dias foram passando por entre mapas de Portugal e das Províncias Ultramarinas, ladeados pela Caixa Métrica, a Biblioteca Escolar (religiosamente fechada à chave) e as carteiras duplas com tampo inclinado e tinteiros de cerâmica. Serviam, eram funcionais. Ao centro, o quadro negro, só alcançado graças ao estrado em madeira que os elevava na estatura e na vida. Enfim, um ambiente pouco adequado para os puristas da pedagogia. Depois havia o olhar das crianças, olhos muito abertos, ávidos de saber ou simplesmente necessitados de alguma atenção, muitas vezes negada pelos pais, atarefados que estavam na procura do sustento.
Ao fim do segundo dia, no final da manhã, quando o Joel se trocava todo com os casos de leitura improvisados no flanelógrafo, bateram à porta. Era a Graziela:
-Sr. Professor, vivo aqui no cimo do Povo, o almoço é lá para a uma.
E foi. Nesse e em todos os outros dias de segunda a sexta. 
A Graziela era órfã de pai e mãe, tinha sido criada pela professora primária que toda a vida trabalhara na aldeia. Habilitara a Graziela como herdeira com uma única condição: servir o almoço a todos os professores que lecionassem na aldeia. E Graziela assim fazia. Escrupulosamente na sua pobre cozinha. Servia o seu caldo de couves colhidas na horta com o esmero e o carinho de quem fazia o bem a troco de coisa nenhuma. E não o fazia somente ao professor deslocado. Fazia-o ao primo desempregado, ao tio que regressara do Brasil de mãos vazias, aos “sobrinhos” que salvara na pocilga, abandonados pela vizinha e a todos os que lhe batessem à porta. Andrajosa mas muito limpa, não se importava com as vestes finas da cidade, a bata comprada na feira de Moimenta da Beira, servia muito bem.
Fazia-o da forma mais desinteressada, mais desprendida. Não queria nada em troca. À segunda-feira, à escapula, deixavam-se alguns víveres na banca da cozinha. Ela olhava e fingia que não via. Não se dizia nada. E assim é que estava bem.
Foi o melhor carácter que conheci em toda a minha vida.
Não a quero esquecer e espero que esteja bem. Estará com certeza. Merece.
Na bondade da Graziela, o ar, tornou-se mais respirável.

Rui Machado

Sem comentários:

Enviar um comentário

A sua opinião é importante.
Fale comigo.