sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O Vasconcelos

Aos finais de tarde, saído da escola, corria em direção à Livraria. Não sem antes atirar umas fisgadas aos pobres dos pardais da mata do Seminário, jogar à bola com os parceiros do Patronato ou ainda, ir espreitar o grande buraco da Estacada, local enigmático que no inverno se enchia de água, formando um pequeno lago, que eu gostava de explorar, até ao dia em que levei uma pedrada vinda do outro lado, oposto ao Colégio. Depois de feitas as asneiras aceitáveis a crianças de sete ou oito anos, lá ia para a Livraria. Às vezes, ao chegar, ou porque estava corado e transpirado ou porque tinha rompido as calças na jogatana atrás da Escola da Estacada, levava uma reprimenda ligeira que acabava sempre num beijo e no inevitável pentear dos cabelos. O andar penteado era uma verdadeira obsessão para a minha mãe. Lembro-me na minha infância, quando íamos visitar a minha avó minhota, antes de chegar, parávamos num fontenário onde a minha mãe “lambia” as crias com um velho pente que trazia na carteira. Só depois destes preparos é que estávamos prontos para visitar a avó velhinha.

Entrava na Livraria e já lá estavam. Sempre. Nunca falhavam. Todos os dias. Um deles era o Vasconcelos. O Vasconcelos… Para mim, Sr. Vasconcelos.

Não me custava nada cumprimentar o Vasconcelos, mesmo eu que não era dado a cumprimentos. Mas a ele não. Era fácil, agradável. Habituei-me à sua presença e estranhava se não o via. Às vezes, ao sábado, atrasava-se e aparecia muito afogueado ao final da manhã: “Estive a ouvir as Zarzuelas na Rádio Nacional de Espanha, não dei pelo tempo passar…”.

O Vasconcelos conhecia todos os recantos da Livraria, lá passou horas intermináveis a relacionar-se com os livros. Ver o cuidado com que os tratava, quase voluptuoso, como limpava o pó aos que tombados, jaziam em locais inacessíveis, era uma pintura de aguarela, esbatida mas muito presente. Imagem que até hoje povoa o meu imaginário. E a calma com que falava, com que expunha os seus pontos de vista, a educação inatacável com que se dirigia aos demais, o comentário mais atrevido, mas adequado, sobre uma qualquer beldade que por ali entrasse, ou a argumentação serena, quando eu, desprovido do que faz falta para crescer, tentava juntar umas ideias sobre este ou aquele político, sobre uma qualquer personagem histórica ou sobre a atualidade, a espuma efémera dos dias, ele dizia simplesmente: “sim, mas não é bem assim…” ou “isso é verdade mas é preciso ter em conta…”. E eu ouvia-o. E entendia-o. E respeitava-o.

Era um homem duma cultura sem fim. Um amante de todas as formas de Arte. Um leitor compulsivo. Penso mesmo que se deixou vencer pelos livros que leu. Tinha-os aos milhares em casa. Nada mais importava. Esse era o seu mundo.

O tempo foi envelhecendo tudo e todos. A Livraria fechou. Eu deixei de poder andar às pedradas (embora às vezes me apeteça) e o Vasconcelos foi chamado para funções mais nobres. Hoje, talvez mate o tempo a arrumar e a folhear as bibliotecas dos Deuses e a ouvir Zarzuelas celestiais.

Fernando Fausto Machado de Meneses Vasconcelos. Para mim, Sr. Vasconcelos. Com ele aprendi que o Livro é muito mais que um objeto. O Livro é saber, cultura, lazer, mas sobretudo, o Livro é amor. E não há vida sem amor. Não há vida sem livros.



Rui Machado

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