quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O pai do rock ou a banda sonora das nossas vidas?

“sei de uma camponesa

que dança à noite na eira

perfumada de avenca e feno

enfeitada de tomilho

e canta com a expressão

de quem vai ter um filho

mesmo pelo coração”


Sei de uma camponesa de Rui Veloso / Carlos Tê

Não sendo muito dado a efemérides, reconheço que servem para nos recentrarmos em aspectos importantes, personalidades marcantes e evocações necessárias e pertinentes. Serve o introito para lançar as palavras sobre alguém que compôs a banda sonora da minha vida e talvez da vida de muita gente da minha geração: Rui Veloso e Carlos Tê.
Comemoram-se os trinta e cinco anos de carreira daquele que, erradamente, nos disseram desde sempre, tratar-se do pai do rock português. O próprio não se sente muito confortável com a paternidade e tem as suas razões. Os pais são outros: Paulo de Carvalho e Carlos Mendes dos Sheiks; Tozé Brito e José Cid do Quarteto 1111; Rui Brazão e Carlos Alberto do Conjunto Académico João Paulo não esquecendo Os Conchas de Daniel Bacelar que em 1960 gravaram os dois primeiros originais de rock editados em português, vinte anos antes da edição do primeiro disco de Rui Veloso. 
A correção histórica não tira a importância ímpar da dupla Rui Veloso e Carlos Tê na história do rock português. A referência aos dois torna-se obrigatória porque não me parece que possam existir separados enquanto criadores. As palavras do Tê não parecem fazer sentido quando não cantadas por Rui Veloso e também os temas perdem a singularidade sem as palavras do Tê.
No Natal de 1980, recebi das mãos da minha irmã o álbum “ Ar de Rock”. Aí começou esta relação de admiração pela música produzida por um jovem portuense de 22 anos, com um ar banalíssimo, de calças de ganga, sapatilhas, óculos Ray-Ban, sotaque à Porto, com uma postura de antivedeta. No gira discos lá de casa, o vinil negro, quase inquebrável e revestido a “ emitex que preserva este disco protegendo-o da poeira” tocava vezes sem conta. Nas primeiras audições, cativavam as melodias simples, o som da guitarra elétrica, a viola baixo do Zé Nabo e a bateria do Ramon Galarza. Pelo meio, surgia uma harmónica carpidente e sofredora. Mais adiante, lia com uma atenção imperturbável as letras do Tê:
Em Saiu para a rua “ Tantos anos tantas noites / sem nunca sentir a paixão / foram já as bodas de prata / comemoradas em solidão “;
Em Miúda (fora de mim) “ Primeiro deste-me sorte / saímos os dois por aí / cinemas uns bares e dançámos / perdemos sul e norte / ficámos partimos daqui / quisemos achar e achámos / depois tu de repente já diferente / percebi que alguma coisa se passava / procurei-te e miúda achei-te ausente / e era a primeira vez que assim te achava”;
Em Bairro do Oriente “ Tenho à janela / uma velha cornucópia / cheia de alfazema / e orquídeas da Etiópia”;
Em Afurada “ Murmura a maré no casco / os pescadores conversam / à porta do tasco / fumando um cigarro forte “.
Eram palavras simples, diretas, palavras com sentido que retratavam vidas de pessoas reais, nossas vizinhas, connosco. Muitas vezes, palavras que faziam eco dos nossos pensamentos, dos beijos roubados às namoradas, das vítimas, das vidas difíceis dos pescadores, dos desencontros entre o eu e os outros, das ausências em mim, em nós, dos ambientes a oriente, das vidas perdidas “ depois de mais um shoot nas retretes / curtindo uma trip de heroína “…
Falamos de um disco datado, dum contexto confuso num Portugal pós PREC onde tudo estava para acontecer. Não sendo o pai do rock, Rui Veloso deu continuidade aos acordes elétricos dos primeiros passos da década de 60. Funde o Soul e Blues americano com uma portugalidade reconhecível por todos. Ilustra, com música, as nossas interrogações, os nossos dilemas. Para mim, crescer a ouvir os seus originais, serviu de terapia. As letras que não percebia de início, fui-as descodificando ao longo da vida. “ Vem vem à minha casa / rebolar na cama e no jardim / acender a ignomínia / e a má língua do código pasquim / que nos condena numa alínea / a ter sexo de querubim “ ou “ Há um jovem pescador / a trincar dedos cortados / pela sediela fina / segura na mão a amarra / e despede-se da mulher varina / que lhe abotoa a samarra” são enquadramentos cinematográficos que ficam bem em qualquer sonho.

Rui Machado


NOTA: Recomendo o documentário que a RTP está a passar sobre o Rock Português, A arte elétrica em Portugal.

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