A vida quando quer pode ser bem prazenteira. Quando os maus pensamentos nos assolam devemos pensar naquilo que nos dá real prazer, funciona sempre. Há um punhado de pensamentos que me reconstroem o estado de espírito.
Comecemos lá atrás, nos meus 8 ou 9 anos. Nessa altura, eu e mais uma dezena de gandins, lá no Alto Minho, mais propriamente em Melgaço, nos dias de calor de Julho, rumávamos até às margens do Rio Minho para nos refrescarmos nas suas águas torrentes e caudalosas. Para lá chegar era necessário percorrer um longo caminho. Passávamos por pequenos cursos de água que devido ao relevo acidentado formavam regatos. Havia um, o Poço do Inferno, que pela nomenclatura e profundidade nos atraía mais do que os outros. Era um ligeiro abismo entre dois grandes penedos, de águas cristalinas e geladas. Fazíamos concursos de mergulho, o que não era nada fácil porque tínhamos de, em pleno voo, fazer uma ligeira curvatura para não abraçar as rochas polidas pelas águas libertadoras. Era uma verdadeira aventura e um grito de liberdade genuína. Depois das carnes enrijecidas pela água fria, temperávamos o corpo na do Rio Minho, mais aprazível. E aí, não poucas vezes, protagonizávamos uma cena Felliniana: do outro lado do rio, já em território espanhol, passava o comboio expresso com rumo a Vigo. Ao aproximar-se do local, o gigante ferroviário fazia-se ouvir pelo seu silvo sonoro e prolongado. Alertados pela aproximação corríamos todos para a margem do rio e alinhavamo-nos com o traseiro virado para Espanha. Mal o comboio passava, baixávamos os calções e mostrávamos o lado B aos espanhóis. O Maquinista, não sei se em forma de defesa ou de protesto, apitava incessantemente até o perdermos de vista. Zangava-se o espanhol. Estava vingada a ocupação Filipina.
O relato trivial da infância faz-nos perceber que a vida vale a pena ser vivida. Mas há mais. Outro prazer que muito prezo é o cheiro da terra molhada depois de uma quarentena de calor. Ou o riso de um bebé. Ou o olhar expectante da minha cadela tipo “ o que queres que faça agora?”. Ou a brisa que nos varre a face ao fim da tarde. Ou o sumo de laranjas acabadas de espremer que nos desperta olfato e paladar e que nos purifica o corpo. O som das nozes a quebrar. O pardal que no beiral da janela nos visita e nos desafia para o acompanharmos nos voos sem destino partilhando connosco os dias de sol. O correr do leopardo, elegante e poderoso. O atleta vitorioso que chora quando ouve o hino. A lágrima que nos escorre ao ouvirmos aquela música… O beijo que damos àqueles que amamos. O reconforto, o abrigo nos seios daquela com quem partilhamos o ar do quarto. O canto lírico que nos arrepia a epiderme. A guitarra elétrica que sola um grito de desespero. O silêncio entre as notas musicais. A estrada sinuosa que nos leva de passeio. A elegância do cavalo de Dressage. As letras que se conjugam em palavras que nos soam certo, em harmonia. O sorriso dos nossos ou dos que desconhecemos. O livro que nos faz esquecer que amanhã é dia de trabalho. O crepitar na lareira da casca do pinheiro. A mão que nos acaricia o corpo. O sofá lá de casa. O cheiro da casca dos citrinos. A água que nos mata a sede. A música que nos embala num dia de chuva. A tecnologia que nos completa. O cão que nos olha e nos lambe a mão. As memórias das férias de praia. O doce que subtraímos à escapula da mesa posta de Natal. O ruído bom de uma conversa de amigos. A gargalhada à roda de uma mesa de memórias. O filho, que cresce mas continua nosso… O prazer solitário, motorizado ao conquistar km no asfalto. A viagem que nos alarga o horizonte. O silêncio, ah o silêncio, cada vez mais difícil de ouvir. E também as ideias despojadas da Maria Filomena Mónica. As memórias breves e possíveis de Saramago. O Pessoa pulverizado. O Lobo Antunes e as suas fadigas pós traumáticas mais as estranhas vidas das personagens do José Luís Peixoto.
Tanta coisa boa nestas nossas vidinhas. Tudo bem, admito, também há os comentadores faroleiros, os saltos altos da vizinha a pisarem-nos o cérebro, as tardes das derrotas do Benfica, as dores nas cruzes, a conta bancária que encolhe e o estômago que dilata, o cabelo que escasseia, o valor alterado das análises…
Pois escutai: O mergulho no Poço do Inferno e a afronta aos espanhóis ninguém me tira.
Rui Machado
Sem comentários:
Enviar um comentário
A sua opinião é importante.
Fale comigo.