sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O velho que dormia no carro




Pouco depois de ter escolhido este lugar para viver comecei a perceber as rotinas dos visitantes do cemitério. Há-os de vários tipos. Em maior número, as viúvas. Parece que nós homens, nos estragamos mais ao longo da vida. Morremos mais cedo. A julgar pelo número de viúvas que visita regularmente o meu cemitério, há mais viúvas que viúvos. Eu fujo à regra. Sou viúvo, parece-me. Não tenho ninguém comigo. Acho que sou viúvo não só de mulheres mas de mais coisas boas da vida. E também não venho visitar ninguém. Vivo aqui. Vivo no cemitério. Melhor, vivo à porta de cemitério da minha cidade. Quando cá cheguei, estacionei o meu velho 240 D de trinta anos e por aqui fui ficando. Vou mudando o carro de lugar para fugir ao sol. Só me ausento do parque para ir ali à associação comer uma sopa. Ao meio dia. Vou a pé. O carro fica a guardar o lugar. Aquele lugar é meu, ninguém mo tira. Os bancários que trabalham ali perto, reclamam muito. Alguém devia por termo a isto. Como é possível em pleno século XXI? Mas depressa vão embora, apressados nos seus fatos italianos tecidos nas garagens clandestinas de Guimarães.

Eu não incomodo ninguém. Estou por ali. Não falo. Já nem me lembro do som da minha voz. Só da minha voz interior. Falo muito comigo. Tenho tanta coisa para falar comigo… Faço-me muitas perguntas. Eu acho que tenho uma vida para trás. Não consigo recordar. Todas as pessoas me parecem estranhas. Desconheço também a minha identidade. Não tenho papeis. Devem estar no porta luvas-luvas mas não quero abri-lo. Não quero saber do meu passado. Tenho medo do que possa descobrir. Uma noite destas, mais longa que o habitual, um ímpeto incontrolável quase que me desgraçava: abri o porta-luvas do velho 240 D. Foi só uma espreitadela! Juro! Fechei novamente. A curiosidade morreu. Ignorância bendita que faz de cada dia um dia novo. Todos os dias, um novo dia. Todos os dias sou uma pessoa diferente. Por exemplo, hoje sou escritor, estou a escrever um livro. Começo todos os dias um livro novo porque todos os dias, os dias e eu somos novos. Ontem ajudei o coveiro a abrir uma cova. Tenho força e não sabia. Ajudo os jardineiros a cortar a relva e eles, em troca, deixam-me tomar banho de mangueira, ali, por trás daquele cedro. Carrego as compras daquela senhora velhinha que vive ali no número 13. Ela dá-me uma maçã. No Natal deu-me uma chouriça e eu comi-a todo consolado. Eu e o Perdido, um patudo que me faz companhia. O Perdido é bom rapaz porque não faz perguntas. Trago-lhe pão seco lá da associação e fica todo contente. Parece gostar de ser meu amigo, o Perdido. Quando anda às cadelas, fico sem o ver um par de dias. Depois lá aparece, magro como aquilo que ele é, sarnento e dentado pela disputa das cadelas com cio. Às vezes, também me lembro de fêmeas. Andam ali umas ao pé da estação que já se meteram comigo, mas não gosto delas. São feias. Gosto duma que vem ao cemitério às Quartas. Chama-se Rosa. Sai sempre muito chorosa. Veste sempre de negro mas eu gosto dela. Roubo sempre uma rosa do jardim e quando a vejo sair, vou a correr e dou-lha. Nas primeiras vezes, teve medo de mim. Agora não. Estende a mão para recolher a flor e sorri. Sempre que sorri, fico quieto a olhar para ela. Ali de pé. Quieto. Eu e o Perdido. Os dois a olhar para ela, a vê-la ir-se embora. Se eu falasse dizia-lhe que se podia encostar no meu peito e chorar. Se lhe apetecesse. Ou então, convidava-a para ir comer uma sopa comigo, lá na associação. Mas o que me apetecia mesmo dizer-lhe, era que não chorasse mais, que não ficasse outra vez triste. E que viesse visitar-me mais vezes.

Gosto de todos os dias menos de um: o dia dos defuntos. Não gosto porque vem muita gente ao cemitério e desarrumam-me a casa toda. E acham que eu sou um pedinte e querem dar-me esmolas. As pessoas, nesse dia, estão muito caridosas. À maior parte, só os vejo nesse dia. 

Eu vou continuar por aqui. Eu e o Perdido. Perdidos os dois. Achados os dois.

setembro de 2016

Rui Machado

1 comentário:

  1. Não raras vezes já me perguntei se um homem com quem me cruzo repetidamente, não terá como residência o seu velho 240D de cor azul, tal é o "recheio" da viatura.
    Um belo texto!

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