Desorientado, percorria o corredor da ala de Medicina-Homens parando em cada porta. Com toda a calma, trocava os óculos de ver ao longe pelos de ver ao perto e lia os letreiros, sem pressa, no vagar próprio de quem já há muito encontrou o ritmo certo dos seus dias. O segurança pediu-lhe que seguisse, que não interrompesse o corredor. Tomeno, imperturbável, continuava a sua procura. Tinha ideia que era do lado direito, sim, era, via-se até o heliporto e a azáfama das chegadas e partidas dos doentes urgentes.
BALCÃO DE ATENDIMENTO
Era ali! Feliz com a descoberta, dirigiu-se ao balcão onde uma senhora com ar enfadado, espreitava por cima dos óculos, lamentando-se do sistema informático que estava outra vez em baixo e dos calores inesperados, próprios de transições a que ninguém escapa. Indiferente ao mal-estar da senhora, Tomeno preparava-se para falar quando, bruscamente, foi impedido. Que esperasse pela sua vez. Que já lá tinha estado de manhã. Qual era a dúvida?
- É para combinar as coisas bem combinadinhas… São dois ou três dias? Hoje de manhã, ao chegar a casa fiquei com essa dúvida.
Que esperasse, que tinha gente à frente, que isto e mais aquilo. O Tomeno só queria saber quanto tempo ia ficar internado. Dois, três dias? Estaria preocupado com o seu estado de saúde? Andava com uma pontada ali, no lado esquerdo. E outros sinais que nem queria valorizar. Também andava esquecido, não punha sentido nas coisas, não ouvia bem, as digestões sobressaltavam-lhe as tardes, andava com dores de cabeça, cegavam-no as cataratas, fraquejavam-lhe as pernas, tinha dificuldades em respirar… Tudo a desandar! Um corpo que falia lentamente.
Seria de esperar que andasse preocupado com a sua saúde. Naturalmente, lamentava a vida que lhe fugia. Interiormente, queixava-se da sua condição fragilizada. Mas quase inexplicavelmente, a sua urgência era outra. A sua angústia não se devia à lenta falência do seu velho corpo. A sua preocupação não passava pelo seu bem estar…
Quando finalmente pôde falar, pausadamente foi dizendo que precisava saber quantos dias seriam de internamento. Tinha de ser tudo muito bem combinadinho. Tinha de ter certezas. Não podiam restar dúvidas. Dois dias seria diferente do que se fossem três. A Matilde aguentava uma semana se fosse necessário, olha logo essa que não lhe ligava nenhuma. Quando andava na vida dela, não passava cartão a ninguém. Às vezes descuidava-se e lá vinha ninhada para o Tomeno cuidar e era um problema minha senhora, ninguém queria gatos. O problema era outro, e bem mais grave. Estava muito ralado com aquilo. O melhor era adiar a cirurgia, talvez falando com o Sr. Dr., nem era urgente, até já estava a sentir-se melhor.
- A Belinha não aguenta mais que três dias…
A Sr.ª dos óculos na ponta do nariz, atrapalhada com os calores das tais transições, fartinha de mas mas e ses e ses, atirou:
- Mas que diz você homem de Deus, quem é a Matilde?
- É uma gata.
- E a Belinha?
Endireitando as costas, corrigindo a postura, salivou a boca e do mais fundo da sua gratidão, disse enternecido:
- É uma cadelinha que lá tenho.
Rui Machado
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