sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Soldado Milhões

Aníbal Augusto Milhais

A lenha crepitava no lume aceso daquele serão transmontano. O silêncio era interrompido pelos bocejos dos mais velhos e pelas brincadeiras do gato de trazer lá por casa.

- Avô, conta-me histórias da tua guerra.

O velho Milhões dormitava. Acordando, lamentava-se da chuva que não deixava fazer nada no campo.

- Já parava esta chuva, atrasa-se-me tudo…

O neto insistia:

- Conta, conta daquela vez que tu, sozinho, lutaste com mil alemães…

Aníbal Augusto Milhais dificilmente falava da guerra. Dizia que aquele tempo foi um tempo de tristeza e o que lhe valeu foi a fé que sempre teve na Nossa Senhora do Vale de Veigas. Quando alguém puxava o assunto da guerra, ele mudava de conversa. Acedendo, lamentava muito a morte do camarada “ Malha-vacas” que viu morrer ao seu lado, despedaçado por um morteiro:

- No dia 8, saí eu das linhas e sonhei com a Santa da minha terra. Disse aos meus amigos que estava contente com o sonho que tivera. Sonhara com a Santa que me sorrira muito. Estava eu a tomar o café quando rebentou o combate. Lá fomos para a frente. Pus a metralhadora às costas e fiz-me ao caminho. Só o “Malha-vacas” me acompanhou. Disse-lhe que o nosso Batalhão já tinha ido todo embora. Que ele também tinha de ir. Em Lacouture, escondemo-nos atrás de uma casa que estava a arder. Estava tudo a arder. Preparou-se o “Malha-vacas” para fugir… Coitadito, pouco correu. Correu para aí uns dez metros. Veio uma granada, bateu nele, esmigalhou-o. Eu nem vi nada dele. Mesmo na minha frente, mas eu não vi nada dele. Eu corri sempre…

As memórias do cenário de guerra embaciavam-lhe os olhos, rasos de lágrimas, mantinha no entanto a lucidez necessária para relatar como tudo começou:

- Os alemães progrediam rapidamente. Os primeiros combates do Batalhão de Infantaria 15, ocorreram na zona de Haute Maison. Perante a pressão alemã, um misto de tropas portuguesas e escocesas, retirou para La Fosse. Eu e o “Malha-vacas” ficamos para trás para dar apoio à retirada dos portugueses. Fiquei sozinho depois da morte do meu camarada…

Aníbal fixava os olhos no lume que ardia lentamente e pausava a memória. Triste.

- E depois avô? O que aconteceu?

- Entrei para um abrigo. Não vi ninguém. Só via fogo em roda de mim. Caíram granadas em cima do abrigo, voavam por todo o lado. Mais tarde, os alemães começaram então a avançar no campo de Lacouture. Vi esse campo coberto de gente. Os da fila da frente, vinham vestidos à portuguesa. Pouco depois, percebi que eram alemães que tinham tirado as fardas aos nossos mortos e prisioneiros. Avançavam em cima de motociclos, com capacetes altos. Foi então que vi que eram alemães. Abri fogo e essa invasão caiu toda. Passado algum tempo veio outra invasão. Tombou também. Uma metralhadora faz muito fogo. A última invasão já não era tamanha mas eu… “cortei-a” também. Não tornei a ver alemães. 

Do alto de Lacouture, o praça Milhais, sozinho, metralhou três invasões de soldados alemães. 

Apesar dos feitos heróicos, sofrido e quase ausente, continuava:

- No regresso, em direção a Saint Venant, “cortei” mais uns tantos. Punham-se de pé e logo caiam. Libertei soldados portugueses e escoceses, aflitos, cercados pelos alemães…

Naquele serão, não disse mais nada. Levantou-se e foi-se à cama. Já deitado, ouviu os morteiros e as granadas rebentar, viu corpos despedaçados, fogos, trincheiras e morte. Muita morte.

No escano, em frente à lareira, um dos filhos completava a história. Faltava dizer que antes de reencontrar os camaradas do Corpo Expedicionário Português, o avô, o soldado Milhais, ainda teve tempo de salvar uma criança abandonada ao seu destino e um oficial escocês que lutava contra a morte, prestes a afogar-se num pântano. Foi esse oficial que relatou as façanhas do valente soldado, escrevendo uma longa carta que deu origem ao relatório pormenorizado sobre as suas ações na batalha de La Lys, no dia 9 de Abril de 1918. Pelos seus atos, recebeu a Ordem Militar de Torre e Espada, Lealdade e Mérito. Foi depois de receber a condecoração que o seu nome mudou de Milhais para Milhões. No dia da condecoração, perante quinze mil soldados portugueses, o Marechal Gomes da Costa bateu-lhe a continência. À noite, ao jantar, Ferreira do Amaral, seu comandante no BI 15, questionou-o acerca do seu verdadeiro nome, respondeu:

- Aníbal Augusto Milhais.

- És Milhais, mas vales Milhões!

E Milhões ficou para o que resta de História.

Soldado Milhões



NOTA: Ficção baseada em factos reais retirados do testemunho na primeira pessoa do Soldado Milhões, em gravação áudio. 

A madrugada de 9 de Abril de 1918, nas trincheiras da Grande Guerra, no Norte de França, marcou um dos maiores desastres da história militar portuguesa. Atacada por forças alemãs muito superiores em número, a 2.ª divisão do Corpo Expedicionário Português (CEP), com 20 000 homens, foi facilmente derrotada. O desastre ficou, porém, marcado por uma história heróica: o soldado transmontano Aníbal Augusto Milhais, natural do Concelho de Murça, sozinho com a sua metralhadora, continuou a disparar, travando o avanço alemão, passando à História como o “ Soldado Milhões”.

in Almanaque Republicano, arepublicano.blogspot.pt

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Balcão de Agradecimento


Desorientado, percorria o corredor da ala de Medicina-Homens parando em cada porta. Com toda a calma, trocava os óculos de ver ao longe pelos de ver ao perto e lia os letreiros, sem pressa, no vagar próprio de quem já há muito encontrou o ritmo certo dos seus dias. O segurança pediu-lhe que seguisse, que não interrompesse o corredor. Tomeno, imperturbável, continuava a sua procura. Tinha ideia que era do lado direito, sim, era, via-se até o heliporto e a azáfama das chegadas e partidas dos doentes urgentes.

BALCÃO DE ATENDIMENTO

Era ali! Feliz com a descoberta, dirigiu-se ao balcão onde uma senhora com ar enfadado, espreitava por cima dos óculos, lamentando-se do sistema informático que estava outra vez em baixo e dos calores inesperados, próprios de transições a que ninguém escapa. Indiferente ao mal-estar da senhora, Tomeno preparava-se para falar quando, bruscamente, foi impedido. Que esperasse pela sua vez. Que já lá tinha estado de manhã. Qual era a dúvida?

- É para combinar as coisas bem combinadinhas… São dois ou três dias? Hoje de manhã, ao chegar a casa fiquei com essa dúvida.

Que esperasse, que tinha gente à frente, que isto e mais aquilo. O Tomeno só queria saber quanto tempo ia ficar internado. Dois, três dias? Estaria preocupado com o seu estado de saúde? Andava com uma pontada ali, no lado esquerdo. E outros sinais que nem queria valorizar. Também andava esquecido, não punha sentido nas coisas, não ouvia bem, as digestões sobressaltavam-lhe as tardes, andava com dores de cabeça, cegavam-no as cataratas, fraquejavam-lhe as pernas, tinha dificuldades em respirar… Tudo a desandar! Um corpo que falia lentamente.

Seria de esperar que andasse preocupado com a sua saúde. Naturalmente, lamentava a vida que lhe fugia. Interiormente, queixava-se da sua condição fragilizada. Mas quase inexplicavelmente, a sua urgência era outra. A sua angústia não se devia à lenta falência do seu velho corpo. A sua preocupação não passava pelo seu bem estar…

Quando finalmente pôde falar, pausadamente foi dizendo que precisava saber quantos dias seriam de internamento. Tinha de ser tudo muito bem combinadinho. Tinha de ter certezas. Não podiam restar dúvidas. Dois dias seria diferente do que se fossem três. A Matilde aguentava uma semana se fosse necessário, olha logo essa que não lhe ligava nenhuma. Quando andava na vida dela, não passava cartão a ninguém. Às vezes descuidava-se e lá vinha ninhada para o Tomeno cuidar e era um problema minha senhora, ninguém queria gatos. O problema era outro, e bem mais grave. Estava muito ralado com aquilo. O melhor era adiar a cirurgia, talvez falando com o Sr. Dr., nem era urgente, até já estava a sentir-se melhor.

- A Belinha não aguenta mais que três dias…

A Sr.ª dos óculos na ponta do nariz, atrapalhada com os calores das tais transições, fartinha de mas mas e ses e ses, atirou:

- Mas que diz você homem de Deus, quem é a Matilde?

- É uma gata.

- E a Belinha?

Endireitando as costas, corrigindo a postura, salivou a boca e do mais fundo da sua gratidão, disse enternecido: 

- É uma cadelinha que lá tenho.


Rui Machado


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Sai dessa noite fria




Pela noite dentro, envolta no nevoeiro, a Lua já ia alta. As folhas velhas de outono estalavam sob o corpo arrastado de Sebastião. Num andar dez e dez à Charlie Chaplin, arrastava os pés um depois do outro. As solas dos sapatos já gastas, mostravam um andar cansado e insinuavam umas meias encardidas pelo tempo que tudo leva, gasta e cansa. Sebastião regressava a casa. Gastara a noite na sala de espera da estação rodoviária. Sentia-se bem por lá, varrendo o chão com o seu andar arrastado, de um lado para o outro, vigiando as chegadas e as partidas dos autocarros.

Na vida de Sebastião houve muitas chegadas e partidas. Queimara as forças da juventude carregando mercadorias nos vagões da CP. Em 75 regressara de Angola onde fizera uma guerra que diziam também ser sua, lutando pela soberania duma metrópole que ele não conhecia. Lembrava-se das lições dos livros da escola primária e das palmatoadas da professora Perpétua. Ensinamentos que duram até hoje, gravados nas palmas das mãos. Só conheceu Lisboa quando foi para a guerra e quando dela voltou. No regresso, andou uns dias perdido em Belém, junto ao Tejo, em labirintos de caixotes de madeira. Procurava uma vida que tinha deixado em África, terra de todos os cheiros e de mulheres de pele de ébano, de curvas generosas, submissas e de sorrisos autênticos. Passou uns meses numa pensão paga pelo IARN, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais. Não resolveu a vida pela capital. Regressou à terra, ele e mais 16 000 almas que regressados a Bragança, constituíam 10% da população residente desse distrito longínquo e esquecido.

Passaram quarenta anos, corria novembro dum outono interminável. A noite continuava fria e as poucas folhas das árvores anunciavam a proximidade do inverno e das noites longas. Regressava a casa deixando o quente da sala de espera da rodoviária. Chegando a casa, a rotina diária: como sempre, penduraria no bengaleiro da entrada o casaco de lã, têxtil grosso n.º 2, azul petróleo. Descalçaria os sapatos, conferiria a evolução dos joanetes e calçaria os chinelos de chambre comprados em Calabor. Não gostava das noites passadas em casa. Noutros tempos, seria altura de provar o vinho novo e comer castanhas numa qualquer taberna da cidade, dando sempre primazia à do João Francês, na Rua do Norte. Sempre que o Francês se altercava com a mulher ou abusava das provas com os fregueses, a taberna não abria. Nessas noites, Sebastião rumava às tabernas da Estação de Caminhos de Ferro. Não gostava. A Estação dos Comboios trazia-lhe memórias de outros tempos que não gostava de revisitar. 

Foi numa dessas noites que conheceu Batilde. A solidão de muitos anos e um corpo que de quando em vez, ainda pedia atenções, fizeram-no sorrir a Batilde. A vida tornara-o um homem amargo marcado pela guerra de África e pelo fim dos comboios. Era um solitário. Não se lhe conheciam amigos e de familiares não havia notícia. As portas da taberna do judeu já estavam fechadas. Sebastião e mais um par de bêbados, bebiam as últimas taças de tinto. O grau forte do tinto das Arcas dera-lhe a destreza necessária para sorrir a Batilde. Aparentemente, Sebastião não se importou com a condição de Batilde, mulher da vida que tentava enganar os ébrios atoleimados nas noites longas de desvario. Batilde era um resto de civilização. Pobre, feia e mal amanhada, sobrevivia prestando favores aos que, tal como ela, jaziam pelas cercanias da estação, esquecidos por todos e convenientemente ignorados pelas famílias. Ela não sabia contar a sua história de vida. Não conhecia as palavras necessárias para o relato. A sua destreza intelectual só dava para arranjar maneira de conseguir a malga de caldo que lhe aconchegava o estômago cansado de reclamar. O seu ciclo intelectual recomeçava na última colher de sopa, pensando de imediato quando comeria a próxima… Uns dizem que Batilde viera servir para a cidade em casa de gente rica mas que o patrão a tinha prenhado, desvario que a levou à expulsão da condição de criada de servir da fidalguia. Outros dizem que não resistiu aos avanços persistentes de um marçano que vendia tecidos na retrosaria Confiança. Dizia-se que durante dez dias, fugiram os dois para Espanha onde, em pouco tempo, sacrificaram as economias do marçano. Viveram de expedientes mas não tardaram a ser escorraçados de volta, devidamente escoltados pela Guardia. Duas noites dormidas no Governo Civil e uns favores a crédito ao oficial de justiça,devolveram Batilde à rua, donde não mais saiu.

Naquela noite, Batilde sorriu o seu melhor sorriso a Sebastião, apesar da dentição descuidada, fazia promessas de atenção e insinuava um iminente conforto nos seios abalados, desgraçados pelos ossos do ofício e pelo uso excessivo. Sebastião achou-a bonita. Apreciava a generosidade das carnes há muito curadas. Sem falar, dirigiu-se à mesa do canto e ofereceu um copo de tinto a Batilde. Ela não se fez rogada e de um só trago bebeu o vinho martelado, feito com as águas do ribeiro e com os pós para o vinho comprados no boticário da avenida. Ao beber, fez um esgar de desconforto, alisando a proeminência abdominal, reclamando a ausência de sustento. Percebendo a intenção, Sebastião pediu ao judeu um pedaço de carne gorda e já agora, porque era dia de festa, um cesto de pão e azeitonas. Enquanto Batilde comia, Sebastião olhava-a enternecido. Satisfeitas as necessidades alimentares, as horas tardias aconselhavam o regresso a casa. Sem dizer nada, Sebastião pegou na mão de Batilde e levou-a consigo. Ela não oferecera resistência nem dissera nada. Pelo caminho, dois seres errantes, varriam as folhas da rua, arrastando os pés, ela mancando, ele com os pés de lado. Quem apreciasse o quadro à distância, veria o vapor que saía das suas bocas ofegantes. No caminho, ele à frente, a dez metros atrás, ela. 

E foi assim que Sebastião conheceu Batilde. E foi assim que Batilde resolveu o problema da próxima malga de caldo. Naquela noite, chegados a casa, Sebastião mostrou o quarto a Batilde. Rotinada na sua função, preparava-se para atender as necessidades de Sebastião. Com um simples gesto de mão, o velho negou os preparos.

- Não é preciso, descansa e dorme. Primeiro temos de nos conhecer, de nos aproximar. 

A mulher incrédula, aproveitou as tréguas e esticou o corpo na humilde enxerga. Depois de tantas privações, dias, anos de desconforto, pareceu-lhe um aposento Real. Batilde dormiu doze horas seguidas. Quando acordou não sabia bem onde estava. Passou a flanela dos lençóis pela face e julgou-se no paraíso. Abraçou a almofada de sumaúma e espreguiçou-se mais uma vez. Fora tão bom poder dormir numa cama só para ela sem ter de a partilhar com bêbados mal cheirosos ou outras colegas da vida. Tantas noites mal dormidas ao relento, nos bancos do jardim, sem dinheiro para pagar o quarto lúgubre e bafiento. Levantou-se, os ossos reclamaram mais descanso. Contrariados, lá se encaixaram e sustentaram um corpo abalado e dormente. Chinelando pelo quarto, deparou com a sua triste figura. Olhando para o espelho, vislumbrou a sua triste condição: velha, suja, um trapo, andrajosa, torpe. Feia. No silêncio do quarto, chorou. Sem rumo e sem forças, sentou-se de novo na cama, escondendo a face com ambas as mãos. Soluçando. Sofrendo com o seu destino. O conforto das horas bem dormidas, desapareceu num ápice. Esfumou-se. Por breves momentos, quase se sentiu normal. Com vida. Com objetivos. Com memórias. Com sonhos. Tudo efémero. A dureza dos traços da sua face devolveu-a à realidade. A crueldade que o espelho refletia não dava esperança. Pareceu-lhe durante a noite ter sonhado com uma vida ao lado de Sebastião. Parecia um bom homem. Meigo. Calmo. Podia, talvez, ter uma vida. Não pedia muito. Paz e um pouco de calor nas longas noites de frio. E uma côdea a horas certas. E poder tomar banho de água quente. Em poucos minutos pensou em tanta coisa, quase conseguiu arrumar algumas ideias. Não era habitual. Para não sofrer, desistira de pensar. Sobrevoava os dias com fome, miséria e solidão.

Sebastião bateu levemente na porta do quarto, entreabriu-a e deparou-se com Batilde a chorar, dobrada sobre si, reduzida, mínima.

- Anda! Vem! Não chores. Sai dessa noite fria. Está um dia bonito lá fora. Vamos passear. Preparei-te umas roupas e um banho quente.

No quarto de banho, Batilde desfez-se dos andrajos e mergulhou o corpo em água quente. Deixou-se estar por breves momentos. Estranhou aquele bem-estar repentino, suavemente o corpo foi relaxando. Recostada, fechou os olhos e percorreu o corpo com as suas mãos, radiografando as marcas de uma vida de sofrimento. Cada mazela tinha um nome, um momento… No seu corpo havia vestígios de muitos homens, restos de abusos, detritos de vidas desnorteadas. Massajou o pescoço e os ombros. Sentiu os seios intumescidos, resultado de prazeres há muito esquecidos. Tocou-se. As entranhas queixaram-se, retraindo-se, desabituadas que estavam de toques delicados. 

Naquela água suja, ficariam os resíduos de vidas passadas.

novembro de 2016

Rui Machado

O velho que dormia no carro




Pouco depois de ter escolhido este lugar para viver comecei a perceber as rotinas dos visitantes do cemitério. Há-os de vários tipos. Em maior número, as viúvas. Parece que nós homens, nos estragamos mais ao longo da vida. Morremos mais cedo. A julgar pelo número de viúvas que visita regularmente o meu cemitério, há mais viúvas que viúvos. Eu fujo à regra. Sou viúvo, parece-me. Não tenho ninguém comigo. Acho que sou viúvo não só de mulheres mas de mais coisas boas da vida. E também não venho visitar ninguém. Vivo aqui. Vivo no cemitério. Melhor, vivo à porta de cemitério da minha cidade. Quando cá cheguei, estacionei o meu velho 240 D de trinta anos e por aqui fui ficando. Vou mudando o carro de lugar para fugir ao sol. Só me ausento do parque para ir ali à associação comer uma sopa. Ao meio dia. Vou a pé. O carro fica a guardar o lugar. Aquele lugar é meu, ninguém mo tira. Os bancários que trabalham ali perto, reclamam muito. Alguém devia por termo a isto. Como é possível em pleno século XXI? Mas depressa vão embora, apressados nos seus fatos italianos tecidos nas garagens clandestinas de Guimarães.

Eu não incomodo ninguém. Estou por ali. Não falo. Já nem me lembro do som da minha voz. Só da minha voz interior. Falo muito comigo. Tenho tanta coisa para falar comigo… Faço-me muitas perguntas. Eu acho que tenho uma vida para trás. Não consigo recordar. Todas as pessoas me parecem estranhas. Desconheço também a minha identidade. Não tenho papeis. Devem estar no porta luvas-luvas mas não quero abri-lo. Não quero saber do meu passado. Tenho medo do que possa descobrir. Uma noite destas, mais longa que o habitual, um ímpeto incontrolável quase que me desgraçava: abri o porta-luvas do velho 240 D. Foi só uma espreitadela! Juro! Fechei novamente. A curiosidade morreu. Ignorância bendita que faz de cada dia um dia novo. Todos os dias, um novo dia. Todos os dias sou uma pessoa diferente. Por exemplo, hoje sou escritor, estou a escrever um livro. Começo todos os dias um livro novo porque todos os dias, os dias e eu somos novos. Ontem ajudei o coveiro a abrir uma cova. Tenho força e não sabia. Ajudo os jardineiros a cortar a relva e eles, em troca, deixam-me tomar banho de mangueira, ali, por trás daquele cedro. Carrego as compras daquela senhora velhinha que vive ali no número 13. Ela dá-me uma maçã. No Natal deu-me uma chouriça e eu comi-a todo consolado. Eu e o Perdido, um patudo que me faz companhia. O Perdido é bom rapaz porque não faz perguntas. Trago-lhe pão seco lá da associação e fica todo contente. Parece gostar de ser meu amigo, o Perdido. Quando anda às cadelas, fico sem o ver um par de dias. Depois lá aparece, magro como aquilo que ele é, sarnento e dentado pela disputa das cadelas com cio. Às vezes, também me lembro de fêmeas. Andam ali umas ao pé da estação que já se meteram comigo, mas não gosto delas. São feias. Gosto duma que vem ao cemitério às Quartas. Chama-se Rosa. Sai sempre muito chorosa. Veste sempre de negro mas eu gosto dela. Roubo sempre uma rosa do jardim e quando a vejo sair, vou a correr e dou-lha. Nas primeiras vezes, teve medo de mim. Agora não. Estende a mão para recolher a flor e sorri. Sempre que sorri, fico quieto a olhar para ela. Ali de pé. Quieto. Eu e o Perdido. Os dois a olhar para ela, a vê-la ir-se embora. Se eu falasse dizia-lhe que se podia encostar no meu peito e chorar. Se lhe apetecesse. Ou então, convidava-a para ir comer uma sopa comigo, lá na associação. Mas o que me apetecia mesmo dizer-lhe, era que não chorasse mais, que não ficasse outra vez triste. E que viesse visitar-me mais vezes.

Gosto de todos os dias menos de um: o dia dos defuntos. Não gosto porque vem muita gente ao cemitério e desarrumam-me a casa toda. E acham que eu sou um pedinte e querem dar-me esmolas. As pessoas, nesse dia, estão muito caridosas. À maior parte, só os vejo nesse dia. 

Eu vou continuar por aqui. Eu e o Perdido. Perdidos os dois. Achados os dois.

setembro de 2016

Rui Machado

Sargaço, Sol e Fogo




Descanso. No ar sente-se o cheiro do sargaço. Os pulmões acomodados ao ar pesado das cidades estranham o cheiro forte. Um homem de face queimada e costas curvadas, junta pequenos montes de algas que o mar oferece à areia da praia. Em pequeno ouvia dizer que o sargaço servia para fazer medicamentos, cosmética e para fertilizar as terras. Dar vida. Mantê-la bela. Curá-la. 

Mergulho nas águas geladas deste mar a Norte. As algas agarram o meu corpo procurando um ponto fixo, qual metáfora de migrante à procura de terra firme. Ao meu lado, duas jovens repudiam a presença da flora marítima saindo da água a correr para o conforto das toalhas. Mantenho-me quieto, recordando os tempos em que falava com este Atlântico que agora, talvez pelos rigores da idade adulta, parece não me conhecer. Eu. Aquele que te visitava uma vez por ano. No tempo quente. Talvez não te lembres. Foi há muitos anos. Não me reconheces. Estou diferente. Estou velho e cansado. Disforme e triste. Não. O meu olhar está diferente? Já não te olho como naquele tempo em que sentado na areia, durante longas horas, tentava adivinhar os caprichos das ondas. Eu ainda gosto de olhar para o mar. Sim. Talvez nem sempre o veja. Tem razão o mar. Ainda há dias alguém se zangava comigo por ter olhado mas não ter visto. Desculpa. São estes meus mundos que se fecham e estranham a vida mundana.

Ainda na água, equacionei a possibilidade do banho libertador. Olhei em redor e percebi que não seria recomendável porque vida humana pululava por perto. Tirar os calções, ainda que na água, não me pareceu recomendável. Depois de mais umas braçadas redentoras, ouvi os ossos rangerem e as articulações estalarem. São longos os invernos. Demasiado longos. Estendido na toalha entrego-me ao Deus Sol. Estou nas suas mãos. Quase que levitando, ouço ao longe o pregão do vendedor de bolas de Berlim, uma família que joga às cartas e o barco a motor, em contraste com o ócio reinante, sai à procura do sustento.

Vou embora. No regresso, tempo ainda para olhar para as fileiras de barracas listadas, qual imagem parada no tempo, imutável. Ainda bem. Despeço-me do mar e peço-lhe desculpa pela indiferença do meu olhar e pela minha ausência de muitos anos. Pediu-me que seguisse. Rumo ao meu horizonte, como o barco a motor que partia à procura do sustento. E que fosse feliz. Assim será.

No ar, sente-se um cheiro a queimado e pequenas faúlhas invadiram a atmosfera. O fogo dos homens, mais uma vez, tudo consome.

agosto de 2016

Rui Machado



Nepente



Gosto do silêncio dos cemitérios. Aprecio a paz fresca das igrejas nestes dias caniculares. Fujo do bulício da cidade que se agita e alimenta de vidas inquietas. Silêncio. Preciso de silêncio. Ouvir-me. Escutar-me. Proteger-me. Anseio pelo marulhar das vagas que chegam e que logo partem. Procuro uma que me leve com ela na sua crista, amparado, aconchegado. Uma que me distancie para longe, muito longe, onde ninguém me possa ver. Talvez lá ficar. Ou não. Quiçá voltar no regresso dos que sempre voltam. Por mais que voe, navegue, caminhe, tenho sempre o regresso por certo. Garantia de sempre voltar ao ninho que me acolhe e protege.
- Voltas sempre?
- Sempre volto.
- Mas com quem falas nas madrugadas quentes?
- Falo com Nepente.
- Quem é Nepente?
- Não sei dizer. Nepente dissipa a dor. Ajuda-me a esquecer a tristeza e o sofrimento.
- Deve ser bom falar com Nepente…
- Nepente chama-me raio de Sol. Sara as minhas feridas e aquieta-me. Apazigua-me. Serena-me.
- E o que mais faz Nepente? Ela fala?
- Quase nunca. Ouve. Quando o faz, escolhe as palavras certas, no tom adequado, num ritmo pausado, na cadência do meu batimento cardíaco, nos intervalos das minhas muitas palavras.
- Eu gostava de beber Nepente…
- Porque não bebes? Nepente está em todo o lado. Procura. Encontrarás.
- Mas se a vires, falas-lhe de mim?
- Nunca a vou ver, não lhe posso falar de ti.
- Onde estará Nepente? Quero ir ter com ela. Falar com ela, ouvir as suas poucas palavras. Sossegar no seu sossego…
- Não é ela nem ele. É Nepente. Eu encontrei. Procura. Encontrarás.
No silêncio do meu quarto, o corpo dorido acorda aos poucos. Adormecera. Nepente tinha feito das suas. Tal como Helena de Troia fez a Telémaco. Poisei o livro na mesinha de cabeceira. Recostei-me. Adormeci de novo. Nessa noite, as sombras não apareceram.

Rui Machado

julho de 2016