sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Olhares que se emprestam



Da janela de minha casa vejo tudo. Vejo os carros que passam cruzando as ruas. Vejo pessoas que carregam vidas. Vejo cães a farejar os dias. Vejo uma pega, nervosa, das matas arredia, pousando nos arbustos urbanos pulverizados pelos tubos de escape. Vejo casas. Muitas casas. Com vidas dentro delas e com histórias de alegrias e tristezas, comemorando o passar dos anos mas também chorando as despedidas. Tudo acontece dentro das casas que vejo da minha janela. Não que eu as espreite mas porque as sinto próximas, como se estivesse no seu interior. Como se testemunhasse a sua construção. Como se lamentasse o seu declínio que o devir do tempo, tirano, vais esculpindo devagar.

Em pequeno, gostava de ver construir casas, acompanhar todo o processo, desde as fundações para os alicerces até aos acabamentos. Da janela da minha infância vivia o quotidiano das construções. O martelar compassado, o rodar engenhoso das betoneiras, o sobe e desce das gruas que tornam leves as cargas, o trabalho articulado, conjunto, hierarquizado mas harmonioso, a operacionalidade, o saber fazer a obra que nascia e crescia pouco a pouco. Adorava assistir ao frenesim ocupado dos dias em se “botavam” as placas e a mobilização dos homens que, unindo força e engenho, acrescentava, esculpia a obra. Nesses dias, enredava-me no trabalho das betoneiras que não paravam. Areia, cimento e água nas medidas certas. Mãos calejadas, certeiras, arremessavam a areia, depois o cimento e por fim a água. Os olhos fixavam-se no movimento hipnotizador, circular da boca da betoneira que girava, girava…

Transportava-me para a vida que estava por vir, tentando entender o fascínio que a evolução das construções exercia em mim. Não, não sou engenheiro. Ensinaram-me a construir conhecimento. Uso muitas ferramentas porque as obras que levo a cabo são muito exigentes. Exigem que me adapte, que me recicle e que contorne as contingências. Exigem que me organize. Que conheça as medidas certas da pedagogia e do conhecimento. Que saiba lidar com todos, respeitando os seus espaços e sabedoria. Ajudo a construir pessoas. Ensino-as a ler e dou-lhe uma ferramenta para toda a vida. Ensino-as a observar, a mexer, a partilhar, a respeitar e a ser. Com elas, construo-me. Juntos lemos, observamos, mexemos, partilhamos, respeitamos e somos. Juntos. Empresto-lhes o meu olhar. Aquele que via as casas crescer. Também vejo pelos olhos dos outros. É uma belíssima experiência usar o olhar alheio. Experimentar outras perspetivas. Por vezes, basta ver diferente para que a obra evolua. 

Há também o lado triste das casas que se desmoronam. As paredes que se empalidecem. Os muros que se fragilizam, desnudando os alicerces, debilitados também. Os telhados que ruem destapando interiores e segredos, expondo vícios privados. E quanto orgulho nas construções que se reclassificam! Estoicamente hirtas. Vigorosas. Renovadas. Aquelas que enganam o tempo. Dignas por tempo indeterminado! Sentimentos construídos de antagonismos. 

As longas horas que passei a ver construir casas, foram afinal a projeção do que viria mais à frente. Deve haver algum ramo do conhecimento que explique isto. Para mim são somente metáforas de vida. E já não é pouco.

RM

sábado, 3 de dezembro de 2016

O Presépio de lata


A cidade engalanou-se para mais uma quadra natalícia. Eu e o Perdido deixamos o velhinho 240 D estacionado no sítio de sempre e fomos ver as luzes de Natal. Diziam que estavam muito bonitas. Descemos a Almirante Reis. Havia muito gente. Na drogaria Luso não se cabia. Os pais juntavam os parcos tostões e compravam os brinquedos anunciados na televisão espanhola: carros, bonecas, naves espaciais, pistas de comboio…

Enquanto eu admirava a montra da Luso, o Perdido escapuliu-se para a porta do Talho Gino, a ver se lhe tocava um ossito. Atravessei a rua e vi a senhora velhinha que mora no 13. Tinha escrito os bilhetes-postais para toda a família desejando Um Santo Natal e um Próspero Ano Novo. Que bonitos eram! Comprara os postais aos balcões dos Correios, à Maria Cândida que parece que ainda era sua parenta. Perguntei-lhe se precisava de ajuda e ela percebendo que a minha intenção era outra, disse-me para passar lá por casa, tinha uma coisa para mim.

Não sabia do Perdido, decerto estava enfiado nalgum canto, entretido a roer o osso que o Gino lhe dera. Continuei a descer a rua. Em frente à Perfumaria Transmontana, parei. Gostava de parar por ali e sentir as essências emanadas pelos frasquinhos de vidro. Queria dar um daqueles à Rosa mas eram caros. 

Era quarta-feira e não vi a minha Rosa. Não foi ao cemitério chorar na campa do marido. Esperei toda a tarde à porta do cemitério e nada. Nem lhe pude dar uma flor. Não lhe dei a flor. Coloquei-a na campa do marido da Rosa. Ali jazia Francisco Silveira, morto em combate. Devia ser bom homem pois a Rosa chorava tanto por ele. Nessa tarde de 24 de Dezembro de 1980, não vi a Rosa. E por não ver a Rosa, o dia não estava completo. Uma semana inteira à espera de a ver…

No outro lado da rua, na Pensão Internacional, nas vidraças das janelas viam-se umas luzinhas a piscar e uns sininhos dourados, recortados em papel metalizado comprado na Popular, logo ali abaixo. Desço um pouco mais e uma velhinha de cabelo branco apanhado num crutcho muito perfeitinho parecia esperar por alguém. Estava à porta da Pensão Rucha. Aproximei-me e a velhinha estendeu-me um farnel muito bem aconchegado num pano branco. Porque me oferecia a mim? Para partilhar com alguém especial, que merecesse. Agradeci à velhinha que envolta nas suas vestes negras, subiu as escadas e desapareceu. Cheirei o embrulho. Pareciam rabanadas ou seriam filhós?

Continuei pela Almirante Reis até à Praça da Sé. Na loja dos Coelhos vendia-se de tudo. No Ricardo tiravam-se retratos a meninos muito bem penteadinhos, com coletes aos losangos e calções pelo joelho. A Rosa D`Ouro vendia brinquedos, canetas Parker e outros agrados para o senhor e para a senhora. No relógio da Sé, batiam as dezanove, anunciando o encerramento do comércio. Sentei-me nas escadas que servem de base ao Pelourinho. O Perdido chegou com os beiços untados pelos restos do osso e sentou-se ao meu lado. Ficamos os dois a olhar para o Cruzeiro. Lá dentro, o lustre esforçava-se por brilhar. As pessoas foram saindo dos cafés e dos comércios. As ruas esvaziavam-se de gente que ainda há pouco corria apressada com sacos de compras distribuídos pelos dedos das mãos. As últimas compras. Um bolo-rei e uma garrafa de vinho fino comprados no Vítor Abreu. O Espanhol fechava as portadas e não se vendiam mais peças de pano. Ou botões. O Pinçlas fechava a charcutaria e desaparecia pela Travessa do Zé Machado. Na Rua Direita, a livraria de portas verdes exibia nas montras as novidades e atendia os últimos clientes. Faziam-se embrulhos em papel fantasia, enlaçados com lacinhos feitos de fitas de várias cores. Em frente, o Chico Romão, fechava a porta e apressava-se a beber um tintinho no Nazaré. E a rua morria. E a rua morreu. 

Regressamos ao 240 D estacionado à porta do cemitério. Abri o farnel que a velhinha Rucha me oferecera para “ partilhar com alguém muito especial”. As filhós douradas, moldadas por mãos experientes, estavam lindas e apetitosas. Parti uma ao meio e ofereci uma das metades ao Perdido. 

- Feliz Natal, amigo.

As outras guardei. Eram para a Rosa. Liguei o rádio velhinho que sem pedir licença, debitava versos tristes:

Três estrelas de alumínio
A luzir num céu de querosene
Um bêbedo julgando-se César
Faz um discurso solene

Sombras chinesas nas ruas
Esmeram-se aranhas nas teias
Impacientam-se gazuas
Corre o cavalo nas veias

Há uma luz na barraca
Lá dentro uma sagrada família
À porta um velho pneu com terra
Onde cresce uma buganvília

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,

Oiçam um choro de criança
Será branca negra ou mulata
Toquem as trompas da esperança
E anotem bem qual a data

A lua leva a boa nova
Aos arrabaldes mais distantes
Avisa os pastores sem teto
Tristes reis magos errantes
E vem um sol de chapa fina
Subindo a anunciar o dia
Dois anjinhos de cartolina
Vão cantando aleluia

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,

Nasceu enfim o menino
Foi posto aqui à falsa fé
A mãe deixou-o sozinho
E o pai não se sabe quem é

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells

(Carlos Tê / Rui Veloso)


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Soldado Milhões

Aníbal Augusto Milhais

A lenha crepitava no lume aceso daquele serão transmontano. O silêncio era interrompido pelos bocejos dos mais velhos e pelas brincadeiras do gato de trazer lá por casa.

- Avô, conta-me histórias da tua guerra.

O velho Milhões dormitava. Acordando, lamentava-se da chuva que não deixava fazer nada no campo.

- Já parava esta chuva, atrasa-se-me tudo…

O neto insistia:

- Conta, conta daquela vez que tu, sozinho, lutaste com mil alemães…

Aníbal Augusto Milhais dificilmente falava da guerra. Dizia que aquele tempo foi um tempo de tristeza e o que lhe valeu foi a fé que sempre teve na Nossa Senhora do Vale de Veigas. Quando alguém puxava o assunto da guerra, ele mudava de conversa. Acedendo, lamentava muito a morte do camarada “ Malha-vacas” que viu morrer ao seu lado, despedaçado por um morteiro:

- No dia 8, saí eu das linhas e sonhei com a Santa da minha terra. Disse aos meus amigos que estava contente com o sonho que tivera. Sonhara com a Santa que me sorrira muito. Estava eu a tomar o café quando rebentou o combate. Lá fomos para a frente. Pus a metralhadora às costas e fiz-me ao caminho. Só o “Malha-vacas” me acompanhou. Disse-lhe que o nosso Batalhão já tinha ido todo embora. Que ele também tinha de ir. Em Lacouture, escondemo-nos atrás de uma casa que estava a arder. Estava tudo a arder. Preparou-se o “Malha-vacas” para fugir… Coitadito, pouco correu. Correu para aí uns dez metros. Veio uma granada, bateu nele, esmigalhou-o. Eu nem vi nada dele. Mesmo na minha frente, mas eu não vi nada dele. Eu corri sempre…

As memórias do cenário de guerra embaciavam-lhe os olhos, rasos de lágrimas, mantinha no entanto a lucidez necessária para relatar como tudo começou:

- Os alemães progrediam rapidamente. Os primeiros combates do Batalhão de Infantaria 15, ocorreram na zona de Haute Maison. Perante a pressão alemã, um misto de tropas portuguesas e escocesas, retirou para La Fosse. Eu e o “Malha-vacas” ficamos para trás para dar apoio à retirada dos portugueses. Fiquei sozinho depois da morte do meu camarada…

Aníbal fixava os olhos no lume que ardia lentamente e pausava a memória. Triste.

- E depois avô? O que aconteceu?

- Entrei para um abrigo. Não vi ninguém. Só via fogo em roda de mim. Caíram granadas em cima do abrigo, voavam por todo o lado. Mais tarde, os alemães começaram então a avançar no campo de Lacouture. Vi esse campo coberto de gente. Os da fila da frente, vinham vestidos à portuguesa. Pouco depois, percebi que eram alemães que tinham tirado as fardas aos nossos mortos e prisioneiros. Avançavam em cima de motociclos, com capacetes altos. Foi então que vi que eram alemães. Abri fogo e essa invasão caiu toda. Passado algum tempo veio outra invasão. Tombou também. Uma metralhadora faz muito fogo. A última invasão já não era tamanha mas eu… “cortei-a” também. Não tornei a ver alemães. 

Do alto de Lacouture, o praça Milhais, sozinho, metralhou três invasões de soldados alemães. 

Apesar dos feitos heróicos, sofrido e quase ausente, continuava:

- No regresso, em direção a Saint Venant, “cortei” mais uns tantos. Punham-se de pé e logo caiam. Libertei soldados portugueses e escoceses, aflitos, cercados pelos alemães…

Naquele serão, não disse mais nada. Levantou-se e foi-se à cama. Já deitado, ouviu os morteiros e as granadas rebentar, viu corpos despedaçados, fogos, trincheiras e morte. Muita morte.

No escano, em frente à lareira, um dos filhos completava a história. Faltava dizer que antes de reencontrar os camaradas do Corpo Expedicionário Português, o avô, o soldado Milhais, ainda teve tempo de salvar uma criança abandonada ao seu destino e um oficial escocês que lutava contra a morte, prestes a afogar-se num pântano. Foi esse oficial que relatou as façanhas do valente soldado, escrevendo uma longa carta que deu origem ao relatório pormenorizado sobre as suas ações na batalha de La Lys, no dia 9 de Abril de 1918. Pelos seus atos, recebeu a Ordem Militar de Torre e Espada, Lealdade e Mérito. Foi depois de receber a condecoração que o seu nome mudou de Milhais para Milhões. No dia da condecoração, perante quinze mil soldados portugueses, o Marechal Gomes da Costa bateu-lhe a continência. À noite, ao jantar, Ferreira do Amaral, seu comandante no BI 15, questionou-o acerca do seu verdadeiro nome, respondeu:

- Aníbal Augusto Milhais.

- És Milhais, mas vales Milhões!

E Milhões ficou para o que resta de História.

Soldado Milhões



NOTA: Ficção baseada em factos reais retirados do testemunho na primeira pessoa do Soldado Milhões, em gravação áudio. 

A madrugada de 9 de Abril de 1918, nas trincheiras da Grande Guerra, no Norte de França, marcou um dos maiores desastres da história militar portuguesa. Atacada por forças alemãs muito superiores em número, a 2.ª divisão do Corpo Expedicionário Português (CEP), com 20 000 homens, foi facilmente derrotada. O desastre ficou, porém, marcado por uma história heróica: o soldado transmontano Aníbal Augusto Milhais, natural do Concelho de Murça, sozinho com a sua metralhadora, continuou a disparar, travando o avanço alemão, passando à História como o “ Soldado Milhões”.

in Almanaque Republicano, arepublicano.blogspot.pt

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Balcão de Agradecimento


Desorientado, percorria o corredor da ala de Medicina-Homens parando em cada porta. Com toda a calma, trocava os óculos de ver ao longe pelos de ver ao perto e lia os letreiros, sem pressa, no vagar próprio de quem já há muito encontrou o ritmo certo dos seus dias. O segurança pediu-lhe que seguisse, que não interrompesse o corredor. Tomeno, imperturbável, continuava a sua procura. Tinha ideia que era do lado direito, sim, era, via-se até o heliporto e a azáfama das chegadas e partidas dos doentes urgentes.

BALCÃO DE ATENDIMENTO

Era ali! Feliz com a descoberta, dirigiu-se ao balcão onde uma senhora com ar enfadado, espreitava por cima dos óculos, lamentando-se do sistema informático que estava outra vez em baixo e dos calores inesperados, próprios de transições a que ninguém escapa. Indiferente ao mal-estar da senhora, Tomeno preparava-se para falar quando, bruscamente, foi impedido. Que esperasse pela sua vez. Que já lá tinha estado de manhã. Qual era a dúvida?

- É para combinar as coisas bem combinadinhas… São dois ou três dias? Hoje de manhã, ao chegar a casa fiquei com essa dúvida.

Que esperasse, que tinha gente à frente, que isto e mais aquilo. O Tomeno só queria saber quanto tempo ia ficar internado. Dois, três dias? Estaria preocupado com o seu estado de saúde? Andava com uma pontada ali, no lado esquerdo. E outros sinais que nem queria valorizar. Também andava esquecido, não punha sentido nas coisas, não ouvia bem, as digestões sobressaltavam-lhe as tardes, andava com dores de cabeça, cegavam-no as cataratas, fraquejavam-lhe as pernas, tinha dificuldades em respirar… Tudo a desandar! Um corpo que falia lentamente.

Seria de esperar que andasse preocupado com a sua saúde. Naturalmente, lamentava a vida que lhe fugia. Interiormente, queixava-se da sua condição fragilizada. Mas quase inexplicavelmente, a sua urgência era outra. A sua angústia não se devia à lenta falência do seu velho corpo. A sua preocupação não passava pelo seu bem estar…

Quando finalmente pôde falar, pausadamente foi dizendo que precisava saber quantos dias seriam de internamento. Tinha de ser tudo muito bem combinadinho. Tinha de ter certezas. Não podiam restar dúvidas. Dois dias seria diferente do que se fossem três. A Matilde aguentava uma semana se fosse necessário, olha logo essa que não lhe ligava nenhuma. Quando andava na vida dela, não passava cartão a ninguém. Às vezes descuidava-se e lá vinha ninhada para o Tomeno cuidar e era um problema minha senhora, ninguém queria gatos. O problema era outro, e bem mais grave. Estava muito ralado com aquilo. O melhor era adiar a cirurgia, talvez falando com o Sr. Dr., nem era urgente, até já estava a sentir-se melhor.

- A Belinha não aguenta mais que três dias…

A Sr.ª dos óculos na ponta do nariz, atrapalhada com os calores das tais transições, fartinha de mas mas e ses e ses, atirou:

- Mas que diz você homem de Deus, quem é a Matilde?

- É uma gata.

- E a Belinha?

Endireitando as costas, corrigindo a postura, salivou a boca e do mais fundo da sua gratidão, disse enternecido: 

- É uma cadelinha que lá tenho.


Rui Machado


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Sai dessa noite fria




Pela noite dentro, envolta no nevoeiro, a Lua já ia alta. As folhas velhas de outono estalavam sob o corpo arrastado de Sebastião. Num andar dez e dez à Charlie Chaplin, arrastava os pés um depois do outro. As solas dos sapatos já gastas, mostravam um andar cansado e insinuavam umas meias encardidas pelo tempo que tudo leva, gasta e cansa. Sebastião regressava a casa. Gastara a noite na sala de espera da estação rodoviária. Sentia-se bem por lá, varrendo o chão com o seu andar arrastado, de um lado para o outro, vigiando as chegadas e as partidas dos autocarros.

Na vida de Sebastião houve muitas chegadas e partidas. Queimara as forças da juventude carregando mercadorias nos vagões da CP. Em 75 regressara de Angola onde fizera uma guerra que diziam também ser sua, lutando pela soberania duma metrópole que ele não conhecia. Lembrava-se das lições dos livros da escola primária e das palmatoadas da professora Perpétua. Ensinamentos que duram até hoje, gravados nas palmas das mãos. Só conheceu Lisboa quando foi para a guerra e quando dela voltou. No regresso, andou uns dias perdido em Belém, junto ao Tejo, em labirintos de caixotes de madeira. Procurava uma vida que tinha deixado em África, terra de todos os cheiros e de mulheres de pele de ébano, de curvas generosas, submissas e de sorrisos autênticos. Passou uns meses numa pensão paga pelo IARN, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais. Não resolveu a vida pela capital. Regressou à terra, ele e mais 16 000 almas que regressados a Bragança, constituíam 10% da população residente desse distrito longínquo e esquecido.

Passaram quarenta anos, corria novembro dum outono interminável. A noite continuava fria e as poucas folhas das árvores anunciavam a proximidade do inverno e das noites longas. Regressava a casa deixando o quente da sala de espera da rodoviária. Chegando a casa, a rotina diária: como sempre, penduraria no bengaleiro da entrada o casaco de lã, têxtil grosso n.º 2, azul petróleo. Descalçaria os sapatos, conferiria a evolução dos joanetes e calçaria os chinelos de chambre comprados em Calabor. Não gostava das noites passadas em casa. Noutros tempos, seria altura de provar o vinho novo e comer castanhas numa qualquer taberna da cidade, dando sempre primazia à do João Francês, na Rua do Norte. Sempre que o Francês se altercava com a mulher ou abusava das provas com os fregueses, a taberna não abria. Nessas noites, Sebastião rumava às tabernas da Estação de Caminhos de Ferro. Não gostava. A Estação dos Comboios trazia-lhe memórias de outros tempos que não gostava de revisitar. 

Foi numa dessas noites que conheceu Batilde. A solidão de muitos anos e um corpo que de quando em vez, ainda pedia atenções, fizeram-no sorrir a Batilde. A vida tornara-o um homem amargo marcado pela guerra de África e pelo fim dos comboios. Era um solitário. Não se lhe conheciam amigos e de familiares não havia notícia. As portas da taberna do judeu já estavam fechadas. Sebastião e mais um par de bêbados, bebiam as últimas taças de tinto. O grau forte do tinto das Arcas dera-lhe a destreza necessária para sorrir a Batilde. Aparentemente, Sebastião não se importou com a condição de Batilde, mulher da vida que tentava enganar os ébrios atoleimados nas noites longas de desvario. Batilde era um resto de civilização. Pobre, feia e mal amanhada, sobrevivia prestando favores aos que, tal como ela, jaziam pelas cercanias da estação, esquecidos por todos e convenientemente ignorados pelas famílias. Ela não sabia contar a sua história de vida. Não conhecia as palavras necessárias para o relato. A sua destreza intelectual só dava para arranjar maneira de conseguir a malga de caldo que lhe aconchegava o estômago cansado de reclamar. O seu ciclo intelectual recomeçava na última colher de sopa, pensando de imediato quando comeria a próxima… Uns dizem que Batilde viera servir para a cidade em casa de gente rica mas que o patrão a tinha prenhado, desvario que a levou à expulsão da condição de criada de servir da fidalguia. Outros dizem que não resistiu aos avanços persistentes de um marçano que vendia tecidos na retrosaria Confiança. Dizia-se que durante dez dias, fugiram os dois para Espanha onde, em pouco tempo, sacrificaram as economias do marçano. Viveram de expedientes mas não tardaram a ser escorraçados de volta, devidamente escoltados pela Guardia. Duas noites dormidas no Governo Civil e uns favores a crédito ao oficial de justiça,devolveram Batilde à rua, donde não mais saiu.

Naquela noite, Batilde sorriu o seu melhor sorriso a Sebastião, apesar da dentição descuidada, fazia promessas de atenção e insinuava um iminente conforto nos seios abalados, desgraçados pelos ossos do ofício e pelo uso excessivo. Sebastião achou-a bonita. Apreciava a generosidade das carnes há muito curadas. Sem falar, dirigiu-se à mesa do canto e ofereceu um copo de tinto a Batilde. Ela não se fez rogada e de um só trago bebeu o vinho martelado, feito com as águas do ribeiro e com os pós para o vinho comprados no boticário da avenida. Ao beber, fez um esgar de desconforto, alisando a proeminência abdominal, reclamando a ausência de sustento. Percebendo a intenção, Sebastião pediu ao judeu um pedaço de carne gorda e já agora, porque era dia de festa, um cesto de pão e azeitonas. Enquanto Batilde comia, Sebastião olhava-a enternecido. Satisfeitas as necessidades alimentares, as horas tardias aconselhavam o regresso a casa. Sem dizer nada, Sebastião pegou na mão de Batilde e levou-a consigo. Ela não oferecera resistência nem dissera nada. Pelo caminho, dois seres errantes, varriam as folhas da rua, arrastando os pés, ela mancando, ele com os pés de lado. Quem apreciasse o quadro à distância, veria o vapor que saía das suas bocas ofegantes. No caminho, ele à frente, a dez metros atrás, ela. 

E foi assim que Sebastião conheceu Batilde. E foi assim que Batilde resolveu o problema da próxima malga de caldo. Naquela noite, chegados a casa, Sebastião mostrou o quarto a Batilde. Rotinada na sua função, preparava-se para atender as necessidades de Sebastião. Com um simples gesto de mão, o velho negou os preparos.

- Não é preciso, descansa e dorme. Primeiro temos de nos conhecer, de nos aproximar. 

A mulher incrédula, aproveitou as tréguas e esticou o corpo na humilde enxerga. Depois de tantas privações, dias, anos de desconforto, pareceu-lhe um aposento Real. Batilde dormiu doze horas seguidas. Quando acordou não sabia bem onde estava. Passou a flanela dos lençóis pela face e julgou-se no paraíso. Abraçou a almofada de sumaúma e espreguiçou-se mais uma vez. Fora tão bom poder dormir numa cama só para ela sem ter de a partilhar com bêbados mal cheirosos ou outras colegas da vida. Tantas noites mal dormidas ao relento, nos bancos do jardim, sem dinheiro para pagar o quarto lúgubre e bafiento. Levantou-se, os ossos reclamaram mais descanso. Contrariados, lá se encaixaram e sustentaram um corpo abalado e dormente. Chinelando pelo quarto, deparou com a sua triste figura. Olhando para o espelho, vislumbrou a sua triste condição: velha, suja, um trapo, andrajosa, torpe. Feia. No silêncio do quarto, chorou. Sem rumo e sem forças, sentou-se de novo na cama, escondendo a face com ambas as mãos. Soluçando. Sofrendo com o seu destino. O conforto das horas bem dormidas, desapareceu num ápice. Esfumou-se. Por breves momentos, quase se sentiu normal. Com vida. Com objetivos. Com memórias. Com sonhos. Tudo efémero. A dureza dos traços da sua face devolveu-a à realidade. A crueldade que o espelho refletia não dava esperança. Pareceu-lhe durante a noite ter sonhado com uma vida ao lado de Sebastião. Parecia um bom homem. Meigo. Calmo. Podia, talvez, ter uma vida. Não pedia muito. Paz e um pouco de calor nas longas noites de frio. E uma côdea a horas certas. E poder tomar banho de água quente. Em poucos minutos pensou em tanta coisa, quase conseguiu arrumar algumas ideias. Não era habitual. Para não sofrer, desistira de pensar. Sobrevoava os dias com fome, miséria e solidão.

Sebastião bateu levemente na porta do quarto, entreabriu-a e deparou-se com Batilde a chorar, dobrada sobre si, reduzida, mínima.

- Anda! Vem! Não chores. Sai dessa noite fria. Está um dia bonito lá fora. Vamos passear. Preparei-te umas roupas e um banho quente.

No quarto de banho, Batilde desfez-se dos andrajos e mergulhou o corpo em água quente. Deixou-se estar por breves momentos. Estranhou aquele bem-estar repentino, suavemente o corpo foi relaxando. Recostada, fechou os olhos e percorreu o corpo com as suas mãos, radiografando as marcas de uma vida de sofrimento. Cada mazela tinha um nome, um momento… No seu corpo havia vestígios de muitos homens, restos de abusos, detritos de vidas desnorteadas. Massajou o pescoço e os ombros. Sentiu os seios intumescidos, resultado de prazeres há muito esquecidos. Tocou-se. As entranhas queixaram-se, retraindo-se, desabituadas que estavam de toques delicados. 

Naquela água suja, ficariam os resíduos de vidas passadas.

novembro de 2016

Rui Machado

O velho que dormia no carro




Pouco depois de ter escolhido este lugar para viver comecei a perceber as rotinas dos visitantes do cemitério. Há-os de vários tipos. Em maior número, as viúvas. Parece que nós homens, nos estragamos mais ao longo da vida. Morremos mais cedo. A julgar pelo número de viúvas que visita regularmente o meu cemitério, há mais viúvas que viúvos. Eu fujo à regra. Sou viúvo, parece-me. Não tenho ninguém comigo. Acho que sou viúvo não só de mulheres mas de mais coisas boas da vida. E também não venho visitar ninguém. Vivo aqui. Vivo no cemitério. Melhor, vivo à porta de cemitério da minha cidade. Quando cá cheguei, estacionei o meu velho 240 D de trinta anos e por aqui fui ficando. Vou mudando o carro de lugar para fugir ao sol. Só me ausento do parque para ir ali à associação comer uma sopa. Ao meio dia. Vou a pé. O carro fica a guardar o lugar. Aquele lugar é meu, ninguém mo tira. Os bancários que trabalham ali perto, reclamam muito. Alguém devia por termo a isto. Como é possível em pleno século XXI? Mas depressa vão embora, apressados nos seus fatos italianos tecidos nas garagens clandestinas de Guimarães.

Eu não incomodo ninguém. Estou por ali. Não falo. Já nem me lembro do som da minha voz. Só da minha voz interior. Falo muito comigo. Tenho tanta coisa para falar comigo… Faço-me muitas perguntas. Eu acho que tenho uma vida para trás. Não consigo recordar. Todas as pessoas me parecem estranhas. Desconheço também a minha identidade. Não tenho papeis. Devem estar no porta luvas-luvas mas não quero abri-lo. Não quero saber do meu passado. Tenho medo do que possa descobrir. Uma noite destas, mais longa que o habitual, um ímpeto incontrolável quase que me desgraçava: abri o porta-luvas do velho 240 D. Foi só uma espreitadela! Juro! Fechei novamente. A curiosidade morreu. Ignorância bendita que faz de cada dia um dia novo. Todos os dias, um novo dia. Todos os dias sou uma pessoa diferente. Por exemplo, hoje sou escritor, estou a escrever um livro. Começo todos os dias um livro novo porque todos os dias, os dias e eu somos novos. Ontem ajudei o coveiro a abrir uma cova. Tenho força e não sabia. Ajudo os jardineiros a cortar a relva e eles, em troca, deixam-me tomar banho de mangueira, ali, por trás daquele cedro. Carrego as compras daquela senhora velhinha que vive ali no número 13. Ela dá-me uma maçã. No Natal deu-me uma chouriça e eu comi-a todo consolado. Eu e o Perdido, um patudo que me faz companhia. O Perdido é bom rapaz porque não faz perguntas. Trago-lhe pão seco lá da associação e fica todo contente. Parece gostar de ser meu amigo, o Perdido. Quando anda às cadelas, fico sem o ver um par de dias. Depois lá aparece, magro como aquilo que ele é, sarnento e dentado pela disputa das cadelas com cio. Às vezes, também me lembro de fêmeas. Andam ali umas ao pé da estação que já se meteram comigo, mas não gosto delas. São feias. Gosto duma que vem ao cemitério às Quartas. Chama-se Rosa. Sai sempre muito chorosa. Veste sempre de negro mas eu gosto dela. Roubo sempre uma rosa do jardim e quando a vejo sair, vou a correr e dou-lha. Nas primeiras vezes, teve medo de mim. Agora não. Estende a mão para recolher a flor e sorri. Sempre que sorri, fico quieto a olhar para ela. Ali de pé. Quieto. Eu e o Perdido. Os dois a olhar para ela, a vê-la ir-se embora. Se eu falasse dizia-lhe que se podia encostar no meu peito e chorar. Se lhe apetecesse. Ou então, convidava-a para ir comer uma sopa comigo, lá na associação. Mas o que me apetecia mesmo dizer-lhe, era que não chorasse mais, que não ficasse outra vez triste. E que viesse visitar-me mais vezes.

Gosto de todos os dias menos de um: o dia dos defuntos. Não gosto porque vem muita gente ao cemitério e desarrumam-me a casa toda. E acham que eu sou um pedinte e querem dar-me esmolas. As pessoas, nesse dia, estão muito caridosas. À maior parte, só os vejo nesse dia. 

Eu vou continuar por aqui. Eu e o Perdido. Perdidos os dois. Achados os dois.

setembro de 2016

Rui Machado

Sargaço, Sol e Fogo




Descanso. No ar sente-se o cheiro do sargaço. Os pulmões acomodados ao ar pesado das cidades estranham o cheiro forte. Um homem de face queimada e costas curvadas, junta pequenos montes de algas que o mar oferece à areia da praia. Em pequeno ouvia dizer que o sargaço servia para fazer medicamentos, cosmética e para fertilizar as terras. Dar vida. Mantê-la bela. Curá-la. 

Mergulho nas águas geladas deste mar a Norte. As algas agarram o meu corpo procurando um ponto fixo, qual metáfora de migrante à procura de terra firme. Ao meu lado, duas jovens repudiam a presença da flora marítima saindo da água a correr para o conforto das toalhas. Mantenho-me quieto, recordando os tempos em que falava com este Atlântico que agora, talvez pelos rigores da idade adulta, parece não me conhecer. Eu. Aquele que te visitava uma vez por ano. No tempo quente. Talvez não te lembres. Foi há muitos anos. Não me reconheces. Estou diferente. Estou velho e cansado. Disforme e triste. Não. O meu olhar está diferente? Já não te olho como naquele tempo em que sentado na areia, durante longas horas, tentava adivinhar os caprichos das ondas. Eu ainda gosto de olhar para o mar. Sim. Talvez nem sempre o veja. Tem razão o mar. Ainda há dias alguém se zangava comigo por ter olhado mas não ter visto. Desculpa. São estes meus mundos que se fecham e estranham a vida mundana.

Ainda na água, equacionei a possibilidade do banho libertador. Olhei em redor e percebi que não seria recomendável porque vida humana pululava por perto. Tirar os calções, ainda que na água, não me pareceu recomendável. Depois de mais umas braçadas redentoras, ouvi os ossos rangerem e as articulações estalarem. São longos os invernos. Demasiado longos. Estendido na toalha entrego-me ao Deus Sol. Estou nas suas mãos. Quase que levitando, ouço ao longe o pregão do vendedor de bolas de Berlim, uma família que joga às cartas e o barco a motor, em contraste com o ócio reinante, sai à procura do sustento.

Vou embora. No regresso, tempo ainda para olhar para as fileiras de barracas listadas, qual imagem parada no tempo, imutável. Ainda bem. Despeço-me do mar e peço-lhe desculpa pela indiferença do meu olhar e pela minha ausência de muitos anos. Pediu-me que seguisse. Rumo ao meu horizonte, como o barco a motor que partia à procura do sustento. E que fosse feliz. Assim será.

No ar, sente-se um cheiro a queimado e pequenas faúlhas invadiram a atmosfera. O fogo dos homens, mais uma vez, tudo consome.

agosto de 2016

Rui Machado



Nepente



Gosto do silêncio dos cemitérios. Aprecio a paz fresca das igrejas nestes dias caniculares. Fujo do bulício da cidade que se agita e alimenta de vidas inquietas. Silêncio. Preciso de silêncio. Ouvir-me. Escutar-me. Proteger-me. Anseio pelo marulhar das vagas que chegam e que logo partem. Procuro uma que me leve com ela na sua crista, amparado, aconchegado. Uma que me distancie para longe, muito longe, onde ninguém me possa ver. Talvez lá ficar. Ou não. Quiçá voltar no regresso dos que sempre voltam. Por mais que voe, navegue, caminhe, tenho sempre o regresso por certo. Garantia de sempre voltar ao ninho que me acolhe e protege.
- Voltas sempre?
- Sempre volto.
- Mas com quem falas nas madrugadas quentes?
- Falo com Nepente.
- Quem é Nepente?
- Não sei dizer. Nepente dissipa a dor. Ajuda-me a esquecer a tristeza e o sofrimento.
- Deve ser bom falar com Nepente…
- Nepente chama-me raio de Sol. Sara as minhas feridas e aquieta-me. Apazigua-me. Serena-me.
- E o que mais faz Nepente? Ela fala?
- Quase nunca. Ouve. Quando o faz, escolhe as palavras certas, no tom adequado, num ritmo pausado, na cadência do meu batimento cardíaco, nos intervalos das minhas muitas palavras.
- Eu gostava de beber Nepente…
- Porque não bebes? Nepente está em todo o lado. Procura. Encontrarás.
- Mas se a vires, falas-lhe de mim?
- Nunca a vou ver, não lhe posso falar de ti.
- Onde estará Nepente? Quero ir ter com ela. Falar com ela, ouvir as suas poucas palavras. Sossegar no seu sossego…
- Não é ela nem ele. É Nepente. Eu encontrei. Procura. Encontrarás.
No silêncio do meu quarto, o corpo dorido acorda aos poucos. Adormecera. Nepente tinha feito das suas. Tal como Helena de Troia fez a Telémaco. Poisei o livro na mesinha de cabeceira. Recostei-me. Adormeci de novo. Nessa noite, as sombras não apareceram.

Rui Machado

julho de 2016

domingo, 17 de julho de 2016

Ninguém olha para o guarda-redes

Uma vez, no Liceu, na aula de Literatura Portuguesa, no tampo de uma mesa apareceu a seguinte frase:

Todos me olham quando estou bêbado, ninguém me vê quando estou sóbrio!

Achei a frase interessante, ficaria bem na minha velha capa de couro onde transportava os livros, aconchegados por um elástico largo e devidamente guardados por Camilo Castelo Branco que, de perfil, estava gravado na capa. Por eu ter uma caligrafia desprezível, pedi a um colega com ar de Billy Idol que me escrevesse a frase na capa. O meu amigo Punk, nas aulas de Literatura, sobrevoava as prédicas do Dr. Mário da Conceição fazendo uns desenhos que só ele entendia. Escrevia também umas frases esteticamente interessantes e de conteúdo filosófico que me remetiam para estranhos mundos que eu escolhi não trilhar.

Anos passados, já possuidor de mais peças para montar esta coisa a que chamam vida, fui percebendo que num milhão de peças Lego, todas me parecem iguais, encaixando entre si na perfeição, construindo assim os nossos dias. Mas se uma aparece com defeito, uma só que tenha escapado ao controle de qualidade, toda a obra pode estar em causa. 

Não raras vezes me senti uma peça com defeito. Outras houve em que me senti parede mestra. Numa e noutra condição, a nossa visibilidade entre pares é matéria complicada de abordar. Há por aí muita formiguinha laboriosa que ninguém vê. Já da cigarra cantante todos parecem gostar. De entre os invisíveis, em lugar cimeiro está o guarda-redes.

Na ressaca da epopeia futebolística, fuzilados que fomos com a excessiva cobertura mediática, apetece-me falar do guarda-redes, esse incompreendido e mal amado. Ele que desafia as leis da física e coloca a sua integridade na ponta das botas dos avançados e mesmo assim parece não merecer a consideração de ninguém. O injustiçado que nunca defende um penálti porque aos olhos de todos, o marcador é que falhou. A desfeita vai ao ponto de dizer que por onde ele pisa, nunca mais cresce a relva.

O texto que se segue, El Arquero, de Eduardo Galeano, retrata as angústias do homem que apesar de trazer nas costas o número 1, ninguém reconhece como primeiro. As palavras rudes de Galeano retratam o destino injustiçado do homem das luvas. Injustiçado mas herói cimeiro.


El arquero (por Eduardo Galeano)

También lo llaman portero, guardameta, golero, cancerbero o guardavallas, pero bien podría ser llamado mártir, paganini, penitente o payaso de las bofetadas. Dicen que donde él pisa, nunca más crece el césped. Es un solo. Está condenado a mirar el partido de lejos. Sin moverse de la meta aguarda a solas, entre los tres palos, su fusilamiento. Antes vestía de negro, como el árbitro. Ahora el árbitro ya no está disfrazado de cuervo y el arquero consuela su soledad con fantasías de colores.

Él no hace goles. Está allí para impedir que se hagan. El gol, fiesta del fútbol: el goleador hace alegrías y el guardameta, el aguafiestas, las deshace.

Lleva a la espalda el número uno. Primero en cobrar? Primero en pagar. El portero siempre tiene la culpa. Y si no la tiene, paga lo mismo. Cuando un jugador cualquiera comete un penal, el castigado es él: allí lo dejan, abandonado ante su verdugo, en la inmensidad de la valla vacía. Y cuando el equipo tiene una mala tarde, es él quien paga el pato, bajo una lluvia de pelotazos, expiando los pecados ajenos.

Los demás jugadores pueden equivocarse feo una vez o muchas veces, pero se redimen mediante una finta espectacular, un pase magistral, un disparo certero: él no. La multitud no perdona al arquero. Salió en falso? Hizo el sapo? Se le resbaló la pelota? Fueron de seda los dedos de acero? Con una sola pifia, el guardameta arruina un partido o pierde un campeonato, y entonces el público olvida súbitamente todas sus hazañas y lo condena a la desgracia eterna. Hasta el fin de sus días lo perseguirá la maldición.

in El fútbol a sol y sombra y outros escritos de Eduardo Galeano

sábado, 2 de julho de 2016

A Praça do nosso contentamento



A Praça Camões estava repleta de gente focada no grande ecrã ali montado para ver a bola. Um silêncio de cemitério, preenchia o ambiente, enquanto olhares expectantes tentam distrair o polaco que se preparava para marcar a grande penalidade. Emparedado entre o Cinema Camões e o Liceu, na magia do tempo, fugiu-se-me a lembrança para outras noites…

Debaixo das arcadas, o Cachimbo Xixeiro afiava a faca, pronta a cortar com mestria a peça de vitela que pendurada no gancho, aguardava pela sua vez. A Tia Aurora que ganhava a vida a vender leguminosas, maltratava uma cliente burguesa que se atrevera a desdizer dos seus feijões. O Sr. Zé Espada, estacionava com dificuldade a camioneta Bedford, série “J”, o primeiro modelo a ser produzido, em 1963, na General Motors da Azambuja. O Milhão vendia vasos e outros cacos, cães de louça e flores artificiais. A Rebordonas vendia casqueiro e grelos. O Peixeiro sacudia as moscas. O Chefe Maurício agarrava o cinto das calças e cofiava o bigode, esticando os beiços, numa manifestação de autoridade não fosse ter de correr atrás de algum meliante. Os namorados aproveitavam a distração dos pais e fugiam, à socapa, para o Jardim António José de Almeida e acobertados pela proteção frondosa das tílias, trocavam os beijos possíveis.
O Chico Naireco, guardador do Jardim, tomava conta dos pimpões que a pequenada alimentava, na pequena taça que já não repuxava. Migalhas de pão alimentavam os pardais, nervosos e irrequietos. Nas latrinas, o Elvis fazia mais uma viagem nas fumaças e ácidos, sobras dos meninos ricos da cidade. No Floresta saía mais uma tosta mista das mãos sisudas do Sr. Teixeira. A D. Alice, Santa Alice, aturava os estudantes enfrascados de subarus e charabanadas. Na esplanada fermentavam amores proibidos, fechados em armários que o tempo demorava em abrir. Olhares furtivos, de sinalética codificada, congeminavam transações de outras vidas, daquelas que nunca se encaixam e se auto destroem. Nos buracos dos muros do jardim, rebentavam bombas de Carnaval, compradas às escondidas na Tabacaria do Jesuíno. O Coreto enquadrava as verbenas e parece que ainda se ouvem melodias de outros tempos. Ouve-se também o cantar dos números do Bingo do GDB: o 1, sozinho, o pilinhas; o 88, as maminhas da Amália…

As lembranças desorganizam-se e vejo agora o Polis, pelo meio, o Fervença, limoso, flui sozinho, enfraquecido pelo decorrer do estio. Os peões, à falta de velocípedes, ocupam a ciclovia e refilam às modernices da juventude e dos que teimam em ser elegantes.

De volta ao Mercado, o Cachimbo desfez a peça de vitela. O Peixeiro vendeu os carapaus aos pobres e a pescada chilena ao Dr. Nalguinhas. A Tia Aurora vendeu o melhor feijão manteiga da temporada. O Milhão tratou mal a canalhada que lhe roubou um par de fisgas. O Chefe Maurício adormeceu de tédio.

No grande ecrã, o Quaresma selou o 5-3 final, depois do Patrício defender o quarto remate dos polacos, um tal de Blasczkowski. No empedrado, ouve-se a borracha dos pneus da Bedford do Zé Espada, o motor 220 Diesel de 3614 c. c., queixava-se da vida que levava.

Acabado o jogo, o povo voltava para casa sem pensar no Brexit ou nas hipotéticas sanções da União Europeia. Que Diabo! Estávamos nas meias-finais.

Como dizia o último ébrio que saía do Floresta: Que se f… o mundo! 

RM

domingo, 19 de junho de 2016

A fada lavadeira da Cidadela

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada*


Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo…

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse…

Antes isso que ser o que atravessa vida
Olhando para trás de si e tendo pena…

* Alberto Caeiro

A fada lavadeira da Cidadela




A história que eu vos vou contar, aconteceu na década de 50 na linda Cidadela de casario pobre mas honrado que guardava, com honra e brio, o Castelo de Bragança. O povoado partilhava a Cidadela com o Quartel Militar, formalmente designado por Batalhão de Caçadores 3, o BC3. Para a criançada que corria e brincava pelas ruas e calejas da Vila, era o quartel. Militares e populares partilhavam o povoado sendo que a vida na vila era pautada pela atividade militar, pelas profissões antigas, pelo cultivo das pequenas hortas, pelo amanho das vinhas que os mais abastados tinham no Cabeço mas sobretudo pela existência dura mas muito alegre das lavadeiras. As lavadeiras que cuidavam da roupa dos militares e das poucas famílias ricas da cidade, eram o sustento de muitos dos agregados que habitavam as velhas casas, paredes meias com a Domus Municipalis, a Torre de Menagem, a Torre da Princesa e a Igreja de St.ª Maria. E depois havia a criançada, guardiões das muralhas, exploradores imaginários e guerreiros da fantasia. Muitas batalhas se travaram contra os Castelhanos que nos queriam roubar o Castelo ou contra outros, mais domésticos, como os de Além do Rio que quando ousavam subir a colina do Castelo eram recebidos com a animosidade adequada para os correr dali para fora. Pequenos homenzinhos e mulherzinhas que muitas vezes, por força da vida, eram obrigados a crescerem à pressa mas sem nunca perderem o olhar inocente e de que tudo se é capaz. Quais testemunhas do passar do tempo que corria devagar, conhecíamos todos os lugares e toda a gente. Quando algum sabia duma novidade, depressa se espalhava pelas pedras das muralhas.
- Não digas a ninguém, olha que é segredo! Ouviste Quinzinho? – E eu não contava. Não era isso que me interessava. Ouvia e calava. O meu mundo era outro. Eu gostava de juntar duas ou três pedrinhas, jogá-las ao chão e pensar em batalhas imaginárias com muitos militares a cavalo, muito bem ordenados, digladiando-se entre si. Absorto na imaginação de criança, só o murmúrio das vozes e o barulho das enxadas que cavavam uma vinha no Cabeço me desviavam a atenção. Ou o tlim-tlim-tlim do martelo do ferreiro de Além do Rio, a malhar o ferro na bigorna. Ou então o imperdível rufar dos tambores e o barulho das botas dos soldados que em marcha se dirigiam para o quartel.
- Quero ser militar! – dizia para a minha mãe.
– E porque não? Que bem te vai ficar a farda! Vais chegar a General, vais ver.
As palavras da minha mãe faziam-me crescer mais uns centímetros e saía de casa a galope no meu cavalo de pau, com os cabelos louros ao vento, qual guerreiro Visigodo que vai resgatar a Princesa da Arménia, cativa na Torre da Princesa pelo malvado do Senhor de Bragança, Mendo Adão. Lenda que tantas vezes ouvi contar ao Timóteo, um pobre indigente que vagueava pelas ruas da Cidadela e dormia a sesta à sombra das boloteiras, junto às oficinas do Quartel. O Timóteo, ainda que com fama de tonto, era a voz do povo, o que muitos calavam, ele cantava, versejando em cantilenas intermináveis. Quando não estava a dormir pelos cantos, o Timóteo gostava de acompanhar as lavadeiras. Quando as via juntar-se com as trouxas à cabeça, preparando-se para rumarem ao Sabor, o Timóteo, num andar destrambelhado, a segurar a indumentária larga e rota, abria caminho colina abaixo até à presa da ponte velha do Sabor.
- Timóteo, canta-nos uma das tuas, sempre se nos aliviam as costas que hoje o rol não vai leve. – pedia a Guida lavadeira. E o Timóteo acedia, não para agradar à Guida, mas à sua linda filha Rosalina, por quem todos suspiravam. E assim, do alto do Altar, pedra saliente que os mais ousados usavam para mergulhar nas águas do Sabor, Timóteo cantava:

Bem cantava a lavadeira
ao som da sua barrela;
a roupa que ela lavava
era do Rei de Castela
ela lavava no Douro,
estendia naquela serra,
o sabão que le deitava
era cravo e canela;
o cesto onde coava
era de verga amarela;
a caldeira era d`ouro,
a i-asa de prata era.

A cantilena do Timóteo era acompanhada pelo bater da roupa nas lousas inclinadas sobre o rio, pelo esfregar a punhos fechados e pelo torcer a duas mãos. Tudo bem lavado e cheiroso, com ou sem barrela, dependia da vontade e do bolso da freguesia. Nas margens do rio, ao sol, as roupas à cora pintavam de branco a paisagem, sobressaindo as camisas dos militares e as rendas finas das senhoras da cidade. Cheirava a sabão feito em casa, processo cheio de segredos para a minha cabeça de menino. Como era possível das borras do azeite e mais a soda cáustica fazer sabão para lavar a roupa? Mistérios da Química que o Prof. Dionísio me haveria de explicar lá na Escola da Estacada.
De regresso à Cidadela, as formiguinhas lavadeiras, vergavam com o peso das trouxas de roupa molhada. Chegadas à Vila, ainda com os braços e as mãos dormentes de tanto esfregar, estendiam a roupa entre as muralhas como que a avisar os Castelhanos que ali era terra de paz e para guerra bastava a vida. 
Rosalina era a mais nova das duas filhas da Margarida lavadeira. Com 16 anos, também ela já ajudava a mãe, sobretudo nas barrelas mais exigentes, acendendo o lume de manhã cedo, acarretando os cântaros de água a ferver, enchendo os latos com a água que era preciso ir buscar à cisterna da Domus.
Foi num desses percursos até à Domus que Rosalina o viu pela primeira vez. Não estava autorizada a olhar para os militares, muito menos a responder aos piropos mais brejeiros dos soldados que, longe de casa e dos afetos, não continham vontades e não raras vezes se metiam em alhadas que a regra militar não contempla. Com o Tenente Malhadas, o Duarte, como Maria, a irmã de Rosalina, gostava de chamar, era diferente. O Duarte era educado, sempre impecavelmente fardado, escanhoado e com um sorriso que trazia as lavadeiras suspirantes.
- Bom dia menina Rosalina! Está um lindo dia! O Sol quase brilha tanto como esses seus olhos verdes…
Rosalina baixava a cabeça e não respondia. Só Deus sabe o esforço que fazia para se manter silenciosa. O Duarte, tão bonito, educado e Tenente! Intrigada, questionava-se como saberia ele o seu nome. Coisa de soldados que tudo sabiam, que tudo perguntavam.
Absorta nos seus pensamentos, mergulhava os latos na água da cisterna. Depois de cheios, tinha dificuldade em erguê-los.
- Isso não é tarefa para mãos tão delicadas. Quer que a ajude menina Rosalina? – ele de novo, o Duarte.
- Não sei se deva. Os meus pais…
O Tenente não deixou terminar a conversa, com a agilidade dos seus 26 anos, duma só vez puxou os dois latos já cheios de água que Rosalina, de mãos trémulas, a custo segurava. Ao sentir por perto o aroma quente e cuidado do Duarte, Rosalina esmoreceu, sentiu as pernas fraquejar e recostou-se para trás. Refeita e assustada, com uma força repentina, saiu da Domus a correr, puxando pelos latos que agora, estranhamente, tinham sido tomados duma leveza súbita.
Do alto da muralha, Timóteo cantava:

Deixa-te andar Rosalina, 
deixa-te andar a brincar
que hoje se corta a lenha,
amanhã vais a queimar…

Apesar das pedras das muralhas tudo testemunharem, a vida na Cidadela corria no seu remanso. O povoado acordava com o toque de alvorada do Miguelzinho, o corneteiro Mor do BC3. O toque destinava-se à rotina militar mas também marcava o ritmo dos que no casario habitavam, como era o caso do Sargento Morais que obrigava os filhos a levantarem-se ao toque do Miguelzinho. Os filhos, contrariados, levantavam-se mas vingavam-se no corneteiro. Ao abrigo das muralhas, quando este, de corneta debaixo do braço, regressava a casa, a garotada mais atrevida gritava bem alto:
- Miguelzinho, pardal sem rabo!
E era ver o Cabo Miguel, intrigado a olhar em redor para as muralhas sem perceber donde vinha o impropério.
Verdade, de tão miudinho que era, o Miguelzinho parecia incompleto, Adequava-se a nomeada.
A rotina remansosa da Cidadela só era interrompida nos dias de Juramento de Bandeira. Os populares eram autorizados a presenciar a cerimónia e a assistir à mestria do Prof. Guilhermino na direção da Banda Militar.
Mas outros dias marcaram as nossas vidas. Como aquele em que os soldados regressaram da Índia, corria o ano de 1958. O soldado Benigno, cujo nome de batismo batia certo com o seu carácter, ao passar por mim, gritou emocionado:
- Olha o Quim Vila! Que saudades dos meus rapazes da Vila!
Foi nesse dia que percebi que também se pode chorar de alegria.
No resto, tudo sucedia na normalidade costumeira. O cabo correeiro, nas oficinas do quartel, reparava os atafais das mulas e dos cavalos. A Terrona taberneira guardava a chave da Domus Municipalis, quando víamos alguns turistas canabeques a passar por baixo do Arco de St.º António, corríamos rua acima para pedir a chave do monumento, a nossa jóia da Vila, que mostrávamos com orgulho. Claro que o fazíamos na esperança de nos darem uma moedita para jogar na rifa que nunca saía ou para beber uma laranjada. 
Também me lembro de ver fome envergonhada pois os tempos não eram de fartura. A criançada, antes de ir para a escola descia a Rua do Jardim até à Igreja de S. Bento onde as catequistas Luzia, Dina e Teresinha, todas meninas e moças, preparavam o pequeno-almoço com os víveres que os Americanos mandavam pela Cáritas. Tudo regido e orientado pelo coração sem fim do Padre Miguel ajudado pelo Sr. Maurício, sacristão de serviço. Com o estômago mais acomodado, os rapazes partiam para a Escola da Estacada e as raparigas para a de S. Sebastião.
Os dias corriam iguais mas felizes. Ao toque de recolher, vários corneteiros em formatura em frente à Porta de Armas do Quartel, anunciavam o fim do dia. 
Houve um dia com um final de tarde diferente. 
Eu tinha ido à Fonte do Alcaide buscar um cântaro de água. Pelo caminho cruzei-me com o Laminuta que vinha do Rebolo. Estava ele a gabar-se dos mergulhos que dera da Carrasqueira e dos ralhetes das lavadeiras que queriam a canalha longe porque turvavam a água, quando ouvimos uns suspiros vindos do Carrascal.
- O que é isto? Ouviste Quim? – perguntou o Laminuta como que pressentindo marosca – Ia jurar que ouvi vozes e gemidos.
- Deixa lá isso, vamos embora. – acrescentei eu como que adivinhando desgraça.
- Deixo nada, anda cá.
Contrariado segui os passos de gato do Laminuta que depressa farejou a origem dos estranhos sons. Protegidos pelos carrascos, Rosalina, a morena lavadeira por quem todos suspiravam, perdia-se nos beijos do Tenente Malhadas, já liberto da jaqueta e com a camisa já desabotoada.
-Pára, não podemos! – defendia-se Rosalina entregue aos braços fortes de Duarte.
A cena inesperada provocou no Laminuta um risinho nervoso. A mim causou-me uma desilusão tão grande que sem pensar, soltei um berro que fez levantar a passarada e colocou alerta o casal improvável. Desatamos os dois a correr galgando a colina. Foi tão grande a pressa que me esqueci do cântaro da água lá na Fonte do Alcaide. Ao chegar à Vila, ainda disse ao Laminuta:
- Não digas nada, não contes nada a ninguém, ouviste?
Nem me respondeu, qual cabrito-montês, desapareceu pelas ruelas soltando gritinhos insanos. Naquela mesma noite na taberna da Tia Joana, adivinhava-se o tema da conversa. As línguas soltas, como não têm ossos, trataram de alastrar o sucedido. Rosalina caiu nas bocas do mundo, um beijo incontido, roubado, transformara-se na maior das devassidões.
No Quartel, nos aposentos dos Oficiais, Duarte, o Tenente Malhadas, deitara-se sobre a cama feita, não se desfardara nem descalçara as botas, logo ele que primava pelo esmero e que cuidava da farda com todo o brio. Estava preocupado, Rosalina, agora com 17 anos, era menor. Um ímpeto incontido, impensado colocava em risco a sua carreira militar, logo ele, oficial de carreira que aspirava a altos cargos, ele que até tinha amigos no Ministério. No dia seguinte, no gabinete do coronel, foi-lhe dito que a sua transferência tinha sido autorizada. Sem mais palavras, foi informado que partiria nessa mesma manhã. Não tinha pedido nenhuma transferência, era feliz e realizado em Bragança mas a disciplina militar dava-lhe a frieza necessária para entender a gravidade da situação, sentia-se até agradecido por não sofrer consequências piores.
E Rosalina? Rosalina sentiu a aspereza das mãos da mãe Guida e por três dias e três noites chorou sem parar, não de dor física, mas da ausência de quem amava.
Timóteo, o cancioneiro do povo, do Alto da Torre de Menagem, dizia:

Minha mãe mandou-me à fonte,
à fonte do salgueirinho;
mandou-me lavar a jarra
com a flor do rosmaninho.
Eu lavei-a com areia,
Quebrou-se um pedacinho.
- Anda cá, minha perra traidora,
Onde tinhas o sentido?
Não o tinhas tu na roca,
nem tão-pouco no sarilho;
tinhas é naquele mancebo
que andava de amor contigo.

Ao ouvir os versos do trovador, Maria, a irmã denunciante de Rosalina, sorria. No fundo estava satisfeita com as desventuras da irmã. Como podia o Duarte ter-se enfeitiçado pela irmã, de tez morena e ar de cigana? Como podia a irmã competir com a sua pele alva e os cabelos de ouro?
Timóteo, atento e justo, tinha resposta para Maria:

Eu levantei-me a passear
pela tarde, às duas horas;
vira estar numa janela
duas donzelas formosas:
Uma era muito branca,
da sua cor melindrosa,
outra era mais morena,
morena engraciosa.
Namorei-me da morena
por uma ação generosa;
A branca desque o soube,
logo se mostrou queixosa.
- Cale-se lá, senhora branca,
não seja tão invejosa;
Brevemente l`eu direi
o moreno em quanto se importa:
De preto são nas abelhas
a seu dono proveitosas;
De preto são nos cavalos
e as mulinhas corredoras;
De preto são nos ornatos
com que as igrejas se adornam;
De preto vestia o Rei
e o padre santo em Roma;
Preto era o manto
da Virgem Nossa Senhora.

Passaram muitos anos. O BC3 foi demolido e os militares foram embora. As lavadeiras carpiram a saudade de outros tempos. Já não se ouviam os martelos dos ferreiros de Além do Rio. Deixou de ecoar o som forte e decidido das botas dos soldados. As cornetas emudeceram-se e já não despertavam o casario nem mandavam recolher os indigentes mais descuidados.
Apenas Timóteo continuava a sua função. Nas noites quentes de Agosto, os netos dos que há muito tinham partido, pediam que lhes contasse, mais uma vez, a Lenda das Bruxas Lavadeiras. E ele, sentado no banco a meio do largo onde outrora se formava a parada, contava:
Nos tempos mais remotos, dizia-se que as bruxas lavavam a roupa de noite nos ribeiros. Uma noite, um homem que tinha um moinho, ficou de levar uns sacos de farinha a um cliente da aldeia onde o ribeiro passava. Ao aproximar-se com a mula depois de uma longa caminhada, ouviu bater roupa nas lousas do ribeiro. Não foi ver, pois estava sozinho e amedrontado. Quando entrou na aldeia, o povo perguntou-lhe:
- Viste as bruxas a lavar no ribeiro?
O homem respondeu:
- Eu ver não vi. Mas ouvi bater roupa nas lousas.
As pessoas da aldeia andavam sempre a perguntar aos que vinham de fora se tinham visto ou ouvido as bruxas a lavar, pois era a única forma de os apanhar e descobrir quem eram.
As crianças, curiosas, perguntaram ao Timóteo que bruxas eram essas. E ele, com um sorriso desdentado e encardido, mas sincero, dizia:
- Não eram bruxas, era uma fada. Era a Rosalina, a fada lavadeira da Cidadela.

Rui Machado


domingo, 5 de junho de 2016

Pelas mãos de Adorinda, a cabeleireira



Pela estrada municipal 542, de Miranda do Douro até Cicouro, Adorinda conduz decidida a sua vida. Paradoxalmente, conduz tecnologia alemã, conduz a sua carrinha Mercedes. A viagem não é longa, não durará mais de meia hora. O caminho leva-a até às mulheres da aldeia, lá no Largo da Junta. Pouco expansivas, aguardam serenamente entre dois afazeres. Eles, desconfiados, rondam por perto, atraídos pelo movimento e quem sabe, se disponham a aparar a barba ou o bigode. Um deles, o Ramiro, orgulhoso Mirandês, vaidoso no seu belo traje, exibe o seu bigode janota, um bigode connaisseur, enrolado nas pontas, fixado com uma cera própria que manda vir lá do estrangeiro. Apareceu a tocar gaita, aquela que nos faz chorar de alegria como disse a Né Ladeiras. O Ramiro disse ao repórter da RTP: “ ver estas coisas que nós estamos mal habituados, vir a televisão na nossa terra, ficamos um pouco envergonhados e depois não nos saiem bem as coisas. Arranjando o bigode, depois já nos alegramos um pouco e ficamos melhor”. Que bem se explicou o Ramiro, se estava envergonhado, ninguém deu por ela. Era mesmo aquilo, a Adorinda punha a gente melhor. Se o homem Mirandês se sentiu vaidoso, que dizer das mulheres que interromperam a dura jornada de trabalho do campo para se porem ainda mais bonitas.

A Adorinda é cabeleireira. Um dia, ela e o seu marido, carteiro de profissão, resolveram deitar as mãos à massa, hoje em dia, dir-se-ia que resolveram ser empreendedores. Hipotecaram-se comprando uma carrinha preparada para ser salão de cabeleireira. Tomada a decisão, fez-se ao caminho a Adorinda levando com ela tesouras e secadores e outros engenhos que esticam ou enrolam os cabelos, conforme a vontade da freguesa. Percorre Terras de Miranda, levando pelas aldeias a atenção e o carinho que toda a mulher merece. Nas suas mãos tecem-se os penteados mais ou menos modernos e disfarçam-se aquelas brancas teimosas com uma paleta de tintas, de esperança e de afetos. Enquanto as mãos hábeis trabalham, há sempre tempo para dois dedos de conversa porque às vezes faz melhor uma palavra amiga do que o corte de cabelo. O arranjo do cabelo pouco dura mas a palavra amiga dura muito, dura o suficiente para criar uma vontade que o mês passe depressa para que a Adorinda volte de novo.

“ Tiraram tudo das aldeias “ diz o marido carteiro da Adorinda cabeleireira. Tiraram a escola, a junta, o transporte e até o sinal da televisão. Só não levaram o orgulho transmontano que continua intacto nos poucos que ficaram. E ficou também aquele gostinho especial de estar bonita. Onde houver uma mulher, haverá sempre um espelho e para além do espelho, haverá um olhar do “meu homem” ou doutro alguém que queira bem à bela mulher transmontana. Bela e decidida, como aquela que apareceu montada no Bill, o seu garboso cavalo e do alto da montada, firme e corajosa parece querer desafiar os que ousem questionar a sua beleza refinada que o passar dos anos só apurou. 

Há também testemunhos na língua de Cervantes pois há quem atravesse a fronteira para ir atrás dos milagres estéticos da Adorinda: vêm peinar, cortar y arreglar el cabello.

Beleza naquelas outras, de outra aldeia, a Especiosa. Mulheres sofridas, com os vínculos da idade marcados na face. Apesar de tudo, cantam louvores à Especiosa que só pode ser boa terra, especial certamente e porventura maravilhosa:

“ Se fordes a Trás-os-Montes, ai ai

Não falteis à Especiosa, não não

É terra hospitaleira

Perdeu-se a luz da nação

Quem me dera quem me dera 

ser humilde lavrador…”

Talvez se tenha perdido um pouco da Luz, talvez, mas Adorinda, decidida, empreendedora leva na mão a candeia que realça o caminho. Mantém acesa essa vaidade que não fará mal a ninguém mas que será um tónico para enfrentar os dias que se avizinham difíceis. Mulheres guerreiras do campo, sozinhas, trilhando vidas delicadas, longe dos filhos que há muito partiram e distantes dos médicos que lhes explicam e tratam as maleitas. Esquecidas, alimentam o argumento estapafúrdio de que sendo poucas, são um mero número cuja grandeza não se evidencia nas prioridades dos que decidem.

No silêncio do Planalto Mirandês, Adorinda, a cabeleireira itinerante é um grito de resiliência que nos alimenta a esperança de que este Reino, além de Maravilhoso, é possível.


Rui Machado

sábado, 28 de maio de 2016

Pedimos a Carta de Vinhos ou vai mesmo o da casa?



Um grupo de amigos vai jantar fora e na hora de escolher o vinho, alguns pedem a Carta de Vinhos e escolhem o vinho que entendem. Os restantes aceitam a proposta de vinho da casa, substancialmente mais em conta que o vinho de marca escolhido pelos primeiros. No final, na hora de pagar, os de gosto mais requintado, sugerem que se divida a conta em partes iguais.

Serve a situação corriqueira para introduzir o tema quente das últimas semanas: as alterações ao financiamento das escolas privadas com contratos de associação celebrados com o Ministério da Educação. A questão é sensível e facilmente caímos na demagogia barata ou na doutrina ideológica e por isso hesitei bastante em escrever sobre o assunto. Na verdade, 23 anos de escola pública, praticamente metade dos quais no exercício de funções de gestão e administração escolar, acarretam um conjunto de certezas que podem prejudicar um olhar mais assertivo. Não obstante, a vida ensinou-me que a verdade e a razão, seja qual for a matéria, nunca estão somente num dos lados. Vejamos, quando um conjunto de pais, aparentemente extremoso, se manifesta publicamente, exigindo a liberdade de escolha para escola dos seus filhos, envergando slogans com frases feitas, não inocentes, tipo - “ eu acredito, eu confio, eu escolho, eu matriculo o meu filho na escola com contrato de associação” – desconfio que a questão maior não seja uma preocupação sincera com futuro das crianças. Não se coloca sequer a hipótese de matricular os filhos em escolas privadas sem contrato de associação. Estranho. Para estes pais, a escola só é boa porque é privada e porque é financiada pelo Estado – “com os nossos impostos” como gostam de dizer. Sim, mas também, com os dos outros contribuintes. Não parecem equacionar a qualidade das restantes escolas, públicas ou privadas, não estão interessados em conhecer outros projetos educativos e exigem, porque sim. Não chega. Não chega porque parece haver uma atuação orquestrada na metodologia usada nas manifestações sincronizadas e metodicamente organizadas, naquilo que, lamentavelmente, se designou por quartas-feiras amarelas. Para ajudar à desconfiança, olha-se de soslaio para a isenção dos órgãos de comunicação social, nomeadamente das televisões, no tratamento dado a questão, havendo mesmo quem verificasse que os pivôs dos jornais televisivos, ultimamente, vestissem muito de amarelo. Na mesma lógica, ex detentores de cargos públicos, vieram em defesa da importância da manutenção dos contratos de associação. Parece aqui haver uma lógica que vai muito além da preocupação daqueles pais que pretendem o melhor para os seus filhos.

Neste espaço, não cabem reflexões aprofundadas sobre as diferenças entre Escola Pública e Escola Privada, pretendo levantar um pouco o véu, ventilar algumas ideias e deixar as certezas para os decisores políticos, sempre tão certos e seguros das suas opções. Como ponto de partida, assumir que em qualquer civilização desenvolvida, plural e democrática, há espaço para as duas esferas: público e privado. A Educação, como trave mestra de qualquer sociedade, pode e deve fazer-se na perspetiva do Estado mas também com lógicas empresariais e liberais. A diversidade de abordagens, só pode enriquecer as sociedades. Falamos de complementaridade e não de exclusividade de nenhum dos setores. Esta visão globalizante da questão não faz de nós inocentes e obriga-nos a ter “ um olho no burro e outro no cigano”. Nem muitos dos colégios que agora viram o seu financiamento reduzido, podem clamar por mais justiça, nem os decisores políticos dos últimos 30 anos, - hoje em dia acolitados pelos diretores das unidades organizacionais, comprometidos, pendurados, subjugados e manietados por lógicas político-partidárias nacionais e locais – podem vitimizar-se, carpindo lágrimas de ataques externos, não fazendo a auto critica necessária. Especificando: os contratos de associação foram criados para dar resposta à massificação do acesso à escolarização que ocorreu a partir da década de 70. Durante décadas, o Estado foi incapaz de dar resposta à procura de escola na área da sua conveniência, a milhares de crianças e jovens. Socorreu-se do investimento privado, partilhando uma responsabilidade que, ao contrário do que se diz por aí, não é um exclusivo do Estado. Foi uma solução benéfica para todos os intervenientes, nomeadamente em zonas de grande densidade populacional mas também em territórios distantes da centralidade onde o Estado, ainda hoje, tarda em chegar. Nestas situações, analisando com objectividade caso a caso, o Estado deve manter-se como “pessoa” de bem e prolongar os contratos de associação. O mesmo já não deve acontecer nas situações de puro oportunismo que proliferaram a partir dos anos 80, com o beneplácito de alguns municípios e dos serviços centrais e regionais do Ministério da Educação. Seria importante que alguém averiguasse como foi possível autorizar a criação de novas turmas, financiadas pelo Estado, em colégios recém-criados, enquanto se colocavam entraves às escolas públicas com disponibilidade de instalações e recursos humanos. (Estes caminhos ímpios, foram bem explorados pelo jornalismo de investigação protagonizado pela jornalista Sandra Felgueiras no programa Sexta às 9, RTP 1, do passado dia 20 de maio, um jornalismo incolor e pouco dado a doutrinas.) Nestas situações, o Estado tem total legitimidade para cessar o financiamento a novas turmas. A questão é séria pois falamos de muitos postos de trabalho e da instabilidade gerada nas famílias, mas não há espaço para retrocessos. Nos últimos anos pediu-se aos cidadãos mais racionalidade no dispêndio de recursos públicos, como tal não pode o Governo intimidar-se com lógicas de poder, venham elas de onde vierem. Falamos de grupos financeiros, lógicas locais, corporativismo de classe e, não esquecer, a própria Igreja Católica.

Aos pais que exigem liberdade de escolha na escola dos seus filhos, dizer que os seus impostos não são suficientes para manter um esquema de financiamento aos contratos de associação e acrescentar que só alguns, poucos, têm acesso a tais condições. 

Terminando: só alguns provam do tal vinho de marca, o que pode não ser um problema já que há muito vinho da casa de grande qualidade, muitas vezes superior ao outro mais cheiroso e bem rotulado. Pobre do vinho da casa, com o qual ninguém parece verdadeiramente preocupar-se. Já passaram muitas quartas-feiras, de várias cores vestidas mas mantém-se que só uma cor é que é boa. E assim não vamos lá.

Rui Machado

sábado, 21 de maio de 2016

A sensatez da pobreza




Lentamente, a aldeia despertava. Aos primeiros raios de luz, já Diamantina arrastava os tamancos pelas pedras torpes da Rua do Povo. Não se fazia velha na cama, acordava com as galinhas e não merecia a pena estar ali a dar voltas à cabeça “ a pôr-se maluca”. A vida era aquilo. Nascera para servir. Não dera para os estudos. Aprendera a ler e a contar à custa das palmatoadas da professora Irene. Na altura chorava-as todas, hoje agradece-as. Foi graças à insistência da mestra-escola que hoje podia ler as cartas da Segurança Social e da madrinha, que todos os anos, lá pelo Natal, escrevia da América. De leituras, estamos conversados. De contas, vai exercitando todos os meses ao esticar a reforma para os medicamentos e outras precisões.

Nunca casara. Não se lhe amanhou a coisa. Achava sempre que os pretendentes a não mereciam, ou porque bebiam demais, ou porque gostavam pouco de trabalhar, ou porque se iam embora ou porque, e essa era a verdadeira razão, não tinha tempo para namoros. Ainda Diamantina era moça quando a professora Irene foi falar com o Arlindo e Benedita, pais da catraia. Diamantina era a mais nova duma irmandade de nove. Em casa, fome não havia mas fartura também não. Caldo de couves e um cibo de pão aconchegavam o estômago. Fartura só no tempo dos figos, a caminho da escola enchia-se a barriga. Por vezes, o pai Arlindo pescava uns peixitos no ribeiro e lá se fritavam num óleo já queimado e requeimado mas que sabiam pela vida. Também no tempo deles, na caruma dos pinheiros se apanhavam cogumelos, durante muitos anos foi o que mais parecido com carne se comeu. E foi por este cenário, nem rico nem pobre que a professora Irene falou com os pais da Diamantina:

- A rapariga não aprende e anda eslaraitada. Vai lá para casa. Alimento-a, visto-a e educo-a. 

A mãe concordou logo, era menos uma boca, menos uma ralação. O pai custou-lhe mais. Era apegado à rapaza. Gostava dela. Era respondona e alegrava os serões lá de casa. Mas a mulher que decidisse. Encolheu os ombros e foi-se para a taberna jogar às cartas. E assim se traçou o destino da Diamantina. Passou a viver em casa da professora Irene que nunca tinha casado, não por falta de vontade mas porque não arranjara homens de rendimentos semelhantes, como exigia o Regime. Funcionários não os havia e lavradores ricos, muito menos. A aldeia era pobre, riqueza só de fragas. Os homens novos estavam todos para as franças. Os anos foram passando e Irene foi perdendo a ideia, foi ficando rude de modos e desmazelando o corpo e as vestes. Vivia para a escola. Todos os finais de tarde levava para casa quatro ou cinco alunos, os mais atrasados na cartilha. Os exames da 4.ª classe não tardavam e era necessário prepará-los. Para Diamantina, a escola durava todo o dia… precisasse ou não precisasse. Depois, ao fim do dia, esfalfava-se na lida da casa. A caridade da professora terminava quando era necessário limpar a casa, ir à água, esfregar o soalho, fabricar a horta e outras tarefas. Não restava tempo. Ao final do dia, enquanto a celibatária se deliciava com as radionovelas da telefonia, Diamantina fazia os trabalhos de casa ou estudava para a catequese. Os dias eram sempre iguais, as noites intermináveis. Uma vez por mês, a biblioteca itinerante trazia livros. Às escondidas da tutora e com a conivência do funcionário da Gulbenkian requisitava os romances de Corín Tellado, amores de cordel, cheios de peripécias e que tornavam as noites longas e frias, um pouco mais aprazíveis. Só em sonhos viveria histórias parecidas. Os benefícios do amor não estavam guardados para a Diamantina. Feita a 4.ª classe, ainda se pôs a possibilidade de continuar os estudos na vila. Ninguém fez grande questão, por ali continuou a servir.

A vida era o que era. Não era do seu timbre lamentar-se. Feitas as contas e relevando os modos de vida de antanho, tinha aquele poucochinho de suficiente. Vivia ao ritmo das necessidades da tutora, aposentada entretanto. Além de criada, era uma espécie de dama de companhia. A velha mestra gostava de ouvir histórias de livros antigos que Diamantina lia repetidamente. Histórias de outros tempos, tempos de respeito como gostava de frisar a jubilada. Diamantina nem sempre concordava com as ideias conservadoras da professora Irene mas tinha de dizer que sim senhora, que tinha toda a razão. Diamantina, com a sua maneira servil, foi conquistando as boas graças da proprietária de muitos e bons prédios da aldeia de Pedreiral. Por esta altura, já estava habilitada como herdeira. Por vontade da tutora, a menina moça criada, herdaria o seu património que, não sendo de monta, lhe traria algum conforto pela vida fora. Assim estava previsto. Acontece que um dia, o Dr. Teodósio, Solicitador com escritório montado, tinha estado à conversa durante mais tempo que o habitual. Entrara em casa da professora afogueado e sairia mais abatido do que o habitual, recusando mesmo os bolinhos de coco e o porto licoroso que Diamantina oferecera. A professora ficara sozinha, ouvindo-se um choro soluçado e um renhir entre dentes quase impercetível. Diamantina não sabia o que se passara, mas coisa boa não seria pois nos dias seguintes, a patroa mantivera-se fechada no quarto não querendo sair, abrindo exceção para o terço radiofónico. Pouco tempo passado, morreu. Como todos os dias, às seis da tarde, ouvia o terço na Rádio Renascença. Finou-se com o rosário nas mãos.

Diamantina chorou a morte da tutora. A dor não era profunda pois sentia que as benfeitorias da professora Irene tinham sido pagas com a força do trabalho de longos anos. No dia seguinte, acordou proprietária. Antes de abrir os olhos, naquele lento voltar, pensou como seria o acordar dos ricos. Deixou-se ficar por uns momentos para perceber a diferença. Estranhamente, não sentiu especial alteração. Doíam-lhe na mesma as cruzes, as mãos adormeceram-lhe durante a noite e continuava pitosga pois, sem o auxílio dos óculos de massa, não vislumbrava as horas no despertador.

- Talvez não seja assim tão diferente ser rico! – Pensou.

Levantou-se. Não teve de aquecer água para o banho da senhora, nem esfregar-lhe as costas, nem cortar-lhe as unhas dos pés. Fazia-o por inerência de funções mas estava farta das rotinas de muitos anos. Estava cansada dos monólogos cheios de razão da patroa, das ideias conservadoras, dos tiques autoritários, das visitas de conveniência e da obrigação das orações. E também do trabalho dos campos, sempre às ordens da patroa e aos mandiletes do caseiro. Hoje a Diamantina proprietária não tinha de se preocupar com essas rotinas. Hoje seria ela a dar as ordens. Havia só um pequeno senão, não tinha a quem ordens dar. Para resolver a limitação do exercício do poder, mandou chamar uma das irmãs que casara com um contrabandista, ausente quase sempre e muito fugidiço por causa da Guarda. Não tinham filhos, dizia-se na aldeia que o homem era machorro e por isso a ausência de cria, muito conveniente para Diamantina. Depois de proprietária era agora patroa. À irmã, agora sua criada, destinou-lhe os seus antigos aposentos:

- Ficas bem aqui!

- Falavas tão mal do quarto, dizias que era frio e húmido. – Alvitrou a irmã.

- Impressão tua, abres as janelas e arejas isto todos os dias. Ficas bem. – Atirou a Diamantina patroa.

A irmã, agora criada, encolheu os ombros, e com pouca convicção acenou a cabeça em concordância.

Dadas as ordens do dia, sentou-se na poltrona da antiga patroa. Sentiu-se bem. Mandou vir um chá de hipericão e deitou uma olhadela à correspondência. Da meia dúzia de cartas, uma do Fonsecas & Burnay, chamou-lhe a atenção. Foi nessa que pegou. Abriu-a. Leu-a:

“ Informa-se Vossa Ex.ª de que fomos contactados pelo Senhor Alberto Santos, residente no Brasil, apresentando este, certidão de nascimento, certificando ser filho da falecida D. Irene Santos e de pai incógnito. Pela presente, fica Vossa Ex.ª desabilitada a poder movimentar as contas de D. Irene Santos.

Com os melhores cumprimentos

Cosme Vilarinho

(gerente) “

Dobrou de novo a carta e meteu-a no envelope. Levantou-se, dirigiu-se à cozinha e disse à irmã, efémera criada:

-Deixa estar, eu faço o chá.


RM