sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

“ Uma criança, um professor, um livro e um lápis podem mudar o mundo” – Malala Yousafzai *


Falava há duas horas. A sala configurada em “U” permitia que todos se olhassem frontalmente. Impecavelmente vestido, boa silhueta, deveria ter mais de 50 mas menos de 60. Não se sentava um segundo. Deslocava-se à nossa frente, gesticulando, exemplificando ou rabiscando no quadro. Intercalava o discurso fluente com um ou outro apontamento de humor que captava de novo a nossa atenção. Da minha parte, confesso que nem sempre a minha atenção se focava nas suas ideias, nas suas teses e na sua procura constante. Admirava o seu prazer em ser professor. A aula era uma verdadeira arena, onde ele, lutador incansável, provocava, estimulava, entregando tudo que tinha, desfazendo-se lentamente. Não raras vezes, recebia olhares e opiniões contrárias às suas, não se esquivando, pelo contrário, posicionava-se de frente à espera de receber e entregar. No final daquelas tardes de sexta-feira, sentíamo-lo totalmente despojado, sem energia. Uma ou outra vez, no final, fui falar com ele, colocando--lhe alguma dúvida ou simplesmente, usufruir da prédica mais um pouco. Tinha necessidade de se recompor por mais alguns segundos, só então regressava e perguntava: 
Então diga lá! 
Mais tarde confessei-lhe que foi necessário chegar à idade de Cristo para ter um professor de excelência. Talvez estivesse a ser injusto. Na verdade, tive outros, muitos bons também. Lembro-me de uma de História, irritantemente inquieta. Ignorava orgulhosamente os manuais do Pedro Almiro Neves. Tinha a sua própria agenda, o seu singular programa donde não se desviava uma vírgula. Adorava que tirássemos apontamentos e que usássemos as suas máximas nas respostas dos testes: “ Portugal sempre teve uma carência endémica de cereal” – dizia-o com altivez e com postura estática no meio da sala, para que todos a vissem e sobretudo, ouvissem. Muito empenho, dedicação e seriedade. Dos alunos exigia a mesma postura responsável. Tinha fama de exigente, fria e antiquada. Assim me serviu de exemplo. Não a queria recordar diferentemente. Outros tive que me marcaram tanto, que me ensinaram tanto e sem saber, me traçaram o destino. Destino de vocação, de missão, de entrega e desprendimento. 

Em tempos conheci um professor que dizia “ eu gosto é de preencher cabeças”. Partindo do princípio que elas, as crianças, estão vazias, o que não é verdade, é de facto um privilégio ajudar a preenchê-las. É uma riqueza mostrar os caminhos, orientar as águas pelos regos que julgamos certeiros, descobrir os dispositivos que acionam o conhecimento, proporcionar a luz e a independência. Costumo dizer que a partir do momento em que temos a possibilidade de ensinar, que temos a oportunidade de ter alunos, nada mais importa. Aquele momento é só nosso. Sem ruídos plasmados em decretos, despachos, tiques autoritários, doutrinas, modas, guerrilhas partidárias e palcos experimentalistas. Só nós e eles. E assim acontece. De repente, num processo mais ou menos lento, trazemos todo o mundo para a sala de aula. Viajamos nas asas dos poetas. Agilizamos o cérebro no cálculo aritmético. Traçamos destinos geométricos de muitas formas e cores. Sintetizamos experiências em fórmulas labirínticas. Olhamos as estrelas conhecendo-lhes as histórias. Organizamos vidas passadas em nomenclaturas. Conhecimento. E eles, os nossos alunos, a nossa matéria-prima, ali estão. Disponíveis. Prontos. Preparados.

Ensinar é um poder incomensurável. Uma responsabilidade. Uma missão. Professor que acolhe, que mima, que orienta, que dá a mão, que fornece as ferramentas, que cultiva, que incrementa, que inova, que se adapta, que responde, que recebe, que integra e que esbate a diferença. Professor que se expõe, que sofre com os dedos acusadores daqueles que não gostam dele, que não gostam da Escola. Que se encaixa nas reformas que sucedem a reformas. Professor enquanto ator da Escola baleada à falsa fé, vítima de terrorismo legislativo. Professor psicólogo, médico, assistente social, terapeuta, economista, gestor. Tudo o professor é. É palhaço com obrigação de fazer rir nos dias cinzentos. É cirurgião de mão trémula que não pode falhar a incisão pelo bisturi. É anestesista que não pode errar na dosagem. É engenheiro que não pode errar o cálculo sob pena da ruína da estrutura. É controlador aéreo que não pode ter noites mal dormidas e problemas familiares. É por tudo isto que o tal professor que deu origem a esta crónica se ausentava, se transfigurava, se multiplicava e pulverizava o seu exemplo sobre nós, humildes aprendentes e discípulos.

E assim.

Aos poucos.

Mudamos o mundo.

*Malala Yousafzaï, a adolescente paquistanesa baleada na cabeça pelos talibã pela sua campanha em defesa do direito à educação das raparigas, foi uma das vencedoras do Nobel da Paz 2014.

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