sábado, 23 de janeiro de 2016

O menino da bandeira

Uma das mãos segura pelo irmão mais velho, a outra disponível cerrava-se em punho, ou em “v”, tanto fazia. Gritava pela força unida do povo. O verão corria quente e agitado. Diariamente, participava nas arruadas promovidas pelos partidos e movimentos políticos. Os seus 5 anos não lhe permitiam ter grande noção do significado das siglas pelas quais gritava. Que importava? As ruas enchiam-se de gente numa festa permanente. Posicionava-se na linha da frente, gritando, cantando voos de gaivotas seguidas do adeus a qualquer coisa que não sabia definir ou explicar. O indestrutível TELEFUNKEN lá de casa debitava comunicados e debates protagonizados por grandes bigodaças e cabeleiras, barbas de 3 dias, colarinhos intermináveis e jornalistas muito sisudos e inseguros. Os pais acompanhavam as notícias sem grandes comentários. Os 40 anos de escuridão tinham entorpecido as ideias e as palavras custavam a sair. À mesa, falava-se das incertezas nas escolas, dos saneamentos dos professores e das assembleias gerais onde todos podiam falar. Os adultos, a medo, em surdina, comentavam as alterações das chefias e as investidas dos movimentos revolucionários, muitas vezes cegos e surdos, questionando os desalinhados da nova ordem social.

Ainda sem tudo perceber, a criança de 5 anos, inferia dos desabafos do pai que no antes, nem todos eram maus e que também havia gente boa, gente de trabalho. Parece que havia um velhote, esse sim, um tirano que trazia o povo esfomeado e oprimido. Parece. Como podia ele entender o que ia na cabeça dos adultos? Para ele, menino, nada mudara, as ruas continuavam disponíveis para as futeboladas, os índios continuavam a ser índios e os cobóis continuavam a ser cobóis. Os pássaros continuavam a fazer os ninhos. As ruas continuavam sujas. Havia mais gente a chegar todos os dias, trazendo vidas passadas encaixotadas. Traziam um olhar triste e saudoso e tinham uma tez morenecida por um Sol que talvez brilhasse mais…

Mais tarde, em 76, um pouco mais crescido, o menino participava no fim do comício no Cine Teatro Torralta. Em pleno palco, o menino, agitava uma enorme bandeira com umas letras que ele aprendera há pouco, lá na escola da Estacada: EANES. Eram letras enormes e a julgar pela alegria do povo ululante, deveriam querer dizer alguma coisa de bom. Talvez significassem um cumprimento, uma saudação, pois o povo repetia-as vezes sem fim, em uníssono e cada vez mais alto. Fosse qual fosse o significado daquelas letras, causavam uma expressão de esperança nos semblantes dos homens, agora já escanhoados de pilosidades bafientas. O próprio colorido das vestes das mulheres ganhava outras tonalidades, muitas e diferentes e tudo parecia belo e possível.

O menino de 5 anos, mesmo sem perceber porquê, estava feliz.

Os anos foram passando e a Palavra tinha invadido a boca de toda a gente. De repente, as línguas soltaram-se no aparelho japonês que tinha substituído o velho TELEFUNKEN. Havia muitas opiniões, para todos os gostos. Proliferavam as siglas mais à esquerda, mais à direita e ao centro. Sim, as ideias estão sempre muito bem arrumadinhas num só lado e não são permitidas bilateralidades duvidosas e imprevisíveis. Falavam muito. Prometiam ainda mais. A cada passo, nas eleições montava-se um circo de distribuição de brindes, de colagem de cartazes, de comícios com muita gente e de tempos de antena com frases bonitas e arrebatadoras. Quem poderia ficar indiferente a tanto bulício e a tamanha dinâmica renovadora? Ninguém! Tudo a bem do povo. Chamadas a votar, as pessoas depositavam a sua vontade, a sua crença em urnas de esperança. Faziam-no de boa fé. Umas num sentido, outras, noutro. O próprio menino de 5 anos também já tinha ganho o direito, que era também um dever, de votar. Posicionou-se no ponto que foi achando mais adequado, mesmo já não pegando em bandeiras. Com o tempo, as dúvidas foram instalando-se. Cada vez mais havia perguntas para as quais tardavam as respostas. Percebia-se que na penumbra, uns braços de poder alcançavam os tais partidos das siglas. Estranhamente, a política fazia-se em lojas exotéricas, seguindo rituais enigmáticos. Também se fazia ao abrigo de crenças e de castas instaladas, de pais para filhos, em irmandades muito bem intencionadas.

E assim, aos poucos, a alegria e a esperança das arruadas em que o menino de 5 anos participara, foram perdendo-se no tempo. A vontade de mudar o mundo e a confiança depositada nos homens bem vestidos e falantes, transformou-se na desconfiança perigosa e incerta.

Entretanto, lá em casa, o aparelho japonês tinha sido substituído por outro, chinês, maior e mais delgado, com melhor definição de imagem e com som polifónico. Os serões preenchiam-se agora com novelas e futebóis entremeados com comentários encomendados, vendidos, que tudo dizem saber, tudo entender.

O menino de 5 anos, de caneta na mão, escreve agora estas linhas. A mesma caneta que no próximo domingo não deixará de escrever. A tinta não correrá célere mas a mão que guiará a caneta, depositará a esperança na negra urna. Mais uma vez.


Rui Machado

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