sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A nossa vida ficcionada e os incómodos que causamos aos senhores


Nunca mais ganhamos juízo. Que mania a nossa de vivermos acima das nossas possibilidades. Então não é que ainda estamos a pagar o BPN e o BES e já nos comprometemos a pagar o BANIF? Assim não vamos lá! Senhor trabalhador por conta de outrem, senhor empresário empreendedor e cumpridor, que mania a vossa de pagar e pagar um sistema bancário tão competente e eficiente. Dez mil milhões de euros?! Tem de ser por causa do risco sistémico, do risco de contágio, é necessário proteger a economia. Foi por não termos essa preocupação que na minha rua onde havia 50 casas comerciais, agora há 6. Quando faliu o Pedro eletricista, o Neves alfarrabista e a Carmelinda modista, devíamos, nós os moradores, alegres contribuintes, ter pago as suas dívidas. Ter-se-iam evitado dezenas de despedimentos. Mas não, ninguém nos pediu para pagar porque se tivessem pedido, nós pagávamos. Na verdade, eu já desconfiava que alguma coisa não estava bem, aquele Aquiles da barbearia do Tavares que tinha estado na América, na terra das oportunidades, tinha vindo tomar conta do negócio e com ideias muito inovadoras e lucrativas. Mas não tinha grande pinta. Falava de forma pausada e competente e como ninguém o percebia, ninguém o questionava. O safardana queria implementar novas técnicas de gestão e teve a ideia peregrina de propor aos clientes o pagamento adiantado de 100 cortes de cabelo. Se assim fosse, assegurava aos clientes e a todo o agregado familiar, uma aparadela mensal até ao fim da vida dos incautos clientes. Ia mais longe pois quem subscrevesse o pacote Melena Sénior Plus, pagando 110 cortes de cabelo, garantia a aparadela aos canídeos das famílias. Era uma grande ideia. Muita gente aderiu estusiasticamente à proposta tentadora. Até mesmo os carecas. Que diabos?! Era um bom negócio, com a esperança de vida a aumentar, a probabilidade de cortar de borla o cabelo por muitos e longos anos, não oferecia risco ou quase não oferecia risco. Dizia o Aquiles. O pior foi que um belo dia, o Aquiles deu às de vila diogo com a criada de servir dos Miranda e ninguém mais soube dele. Nem dele nem do dinheiro. Durante semanas a fio, os lesados do Aquiles não largaram a porta da Barbearia do Tavares a exigir o dinheiro de volta ou pelo menos o corte gratuito da melena. Já não havia quem parasse as suíças e os pescoços precisavam de um caldinho bem feito. E o Tavares? O Tavares dizia desconhecer o acordado. Como era possível, ele, o supervisor de todos os pentes e tesouras da mais afamada barbearia lá da terra, não saber nada? A informação de que dispunha não apontava na direção da fraude, pelo contrário, o negócio estava em plena expansão. Um dos donos disto tudo, tinha dito solenemente na rádio local que estava tudo bem, que tinha como boa a informação fornecida pelo Tavares. Sim, o barbeiro tinha até tido a delicadeza de o informar, previamente, dos bons ofícios do Aquiles e dos produtos inovadores da barbearia. Só não entrou no negócio porque, coitado, as reformas dele e da mulher não chegavam para extravagâncias. O povo, com o desgosto, deixou crescer o cabelo e emigrou em massa. 

E assim corre a vida no nosso Portugal. Sempre tudo tão natural, tão lógico. Só faltava que o senhor que faz o favor de tomar conta do meu dinheiro e até me paga a luz, a água, o telefone e as restantes mordomias da fidalguia tivesse a maçada de me telefonar a informar-me que a partir do mês tal, o banco me cobraria despesas de manutenção mensais. Espera aí, ligou mesmo. Ai sim? Perguntei eu. Tem mesmo de ser? Tinha sim, era de Lei. Ah se era de Lei, estava bem. Mas não se podia fazer nada? Podia. Se solicitasse cartões de crédito, fizesse uma poupança a prazo de 3000 € e/ou… Hum, pensei eu, que simpatia, que disponibilidade, que eficiência. Só havia um problema, dissera eu, além de viver acima das minhas possibilidades e de comer bifes todos os dias, tinha que ajudar a pagar os dez mil milhões dos bancos… O impecável funcionário sugeriu que fizesse um empréstimo para a poupança a prazo. Era bem pensado. E como pagava? Que ia pagando, logo se veria. Achei melhor não. Pagaria as despesas de manutenção, sempre os ajudava a pagar os telefones e a internet. Solícito, perguntou se podia ser útil em mais alguma coisa. Podia sim, já agora, que história era aquela do aumento da anuidade do cartão? Nem pensar, não pagava nem mais um tostão. Levavam-me tudo. Tudo aumenta, dizia o senhor. Tudo não, os meus rendimentos não aumentavam. Até que, muito educadamente, me informou que o aumento decorria da atualização da tabela do preçário das anuidades dos cartões. Ai sim? Porque não dissera logo, se era de Lei, estava certo. Ainda tive oportunidade para lhe agradecer tanta disponibilidade para olhar por mim, pobre despesista. 

É tão triste a ignorância financeira. Imaginem lá que eu desconfiava que a liberalização dos preços dos combustíveis e da energia eléctrica era uma forma subtil de tramar os consumidores. Claro que não, pode custar um bocadinho ao princípio mas tudo entrará no rego e as entidades reguladoras são muito nossas amigas.

Ou talvez não.

Rui Machado

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