sábado, 30 de janeiro de 2016

res, non verba*



A obra de Camilo de Mendonça

Assim falava o Eng.º Camilo de Mendonça aquando da sua homenagem no “ enorme salão-ginásio da Escola Técnica de Bragança” no já longínquo mês de novembro de 1968:

“ A revolta do homem contra as estruturas injustas que o torturam, os interesses que o diminuem, as fórmulas que o aniquilam, constitui o facto mais importante da Europa de hoje. Esse homem, no nosso caso, moldado pela dureza do nosso trabalho, mas também definido pela têmpera do carácter, pela dignidade dos sentimentos, pela firmeza da fé, é o homem que temos de restituir plenamente a si próprio, e ao mesmo tempo de lhe assegurar condições de vida que o dispensem de procurar em terra estranha aquilo que o seu meio lhe não proporciona.” 

No editorial do Nordeste – Boletim da Organização Regional da Lavoura, datado de 30 de novembro de 1968, não se poupavam as palavras para noticiar e justificar a homenagem: 

“ Foi na verdade grandiosa, e única, na cidade de Bragança, tão justa homenagem como não há memória, ao Homem público número um do distrito, possuidor da mais elevada matriz política dentro do regime vigente – que soube servir sem dele se servir – cimentada na maior obra económico – social realizada na região bragançana, a bem do comum representado pela lavoura nordestina, obra que exprime bem aquele «res, non verba» inspirador da maior confiança e fé que a lavoura regional tem no ilustre homenageado.”

Camilo António de Almeida da Gama Lemos de Mendonça (1921-1984) nasceu em Vilarelhos, Concelho de Alfândega da Fé, a 23 de julho de 1921. Engenheiro Agrónomo de formação, político e dirigente cooperativo, notabilizou-se como sendo o principal impulsionador da construção do Complexo Agro-Industrial do Cachão, empreendimento único na região que tentou revolucionar a agricultura tradicional no Nordeste de Portugal. O complexo do Cachão nasceu em 1963, com um conjunto alargado de unidades de transformação, abrangendo um vasto leque de produções: lagar, adega, fábricas de frutos secos, de frutos preparados, de conservas e congelação de produtos hortícolas, de rações, de charcutaria, lavandaria de lãs, queijaria, etc.

Na sua dissertação de doutoramento, Laura Larcher Graça, sintetiza a obra de Camilo de Mendonça: 

“ Camilo de Mendonça, delineou uma estratégia global para o desenvolvimento da região que assentava em três traves mestras: primeiro, a reconversão cultural com a implantação de novos regadios que se deveriam estender por uma área total de cerca de 60 000 hectares; segundo, a transformação das explorações agrícolas, conforme o modelo técnico em voga (fomento da mecanização, adopção de culturas, variedades e métodos mais exigentes na quantidade e qualidade dos factores de produção); terceiro, comercialização associada e transformação local dos produtos agrícolas.”

Nascia uma esperança para a gente pobre que praticava uma agricultura de subsistência. A este propósito, cabe aqui um relato contado pelo Padre Francisco Videira Pires no discurso proferido na já referida homenagem:

“(…) há cerca de três ou quatro anos passava eu por um caminho solitário de uma aldeia(…) vi uma mulher colher para uma cesta de verga, amoras silvestres dos caminhos e perguntei-lhe porque é que, com tanto afã, ela colhia aquelas amoras silvestres, respondendo-me: - Meu senhor, é que agora, na nossa terra, graças ao Eng.º Camilo de Mendonça, até já as amoras dos caminhos dão dinheiro!”

Pouco dariam mas ao pobre, o pouco parece muito. Habituei-me a ouvir este tipo de relatos sobre Camilo de Mendonça um pouco por todo o distrito. Constatei que o interior agrícola, apesar de décadas passadas, manifesta uma grande consideração pelo engenheiro que um dia sonhou que o Nordeste Transmontano poderia ser viável recorrendo à sua riqueza secular, a Agricultura, a Lavoura como ao tempo se dizia. Também é verdade que alguns mitigaram o projeto de vida do Eng.º Camilo de Mendonça, reduzindo-o a uma falsa pretensão:

“ O capital político de Camilo Mendonça cobriu o descalabro da gestão financeira. Louvado pelos notáveis locais, apoiado pelo poder central, ele foi o principal actor de uma grande farsa: o empenho do Estado Novo no desenvolvimento das regiões deprimidas do interior.” in Propriedade e Agricultura: Evolução do Modelo Dominante do Sindicalismo Agrário em Portugal, de Laura Larcher Graça.

Pode ser que assim tenha sido. Mas subsiste a dúvida: Quem mais tentou, de forma articulada e abrangente, promovendo uma verdadeira coesão regional, fazer do Nordeste Transmontano uma terra onde ao homem se possa “restituir plenamente a si próprio, e ao mesmo tempo de lhe assegurar condições de vida que o dispensem de procurar em terra estranha aquilo que o seu meio lhe não proporciona”? 

Assim como nos podemos questionar se estaríamos na presença de um alto funcionário do regime, compensado pela sua subserviência. Não me parece. A 12 de de abril de 1969, em comunicado da Direção da Corporação da Lavoura, Camilo de Mendonça manifesta o seu descontentamento: “ Pelo que se refere ao planeamento regional, registou com mágoa não constituir mais do que uma incipiente tomada de posição que, pela fraqueza da representatividade, persistência de estruturas técnico-administrativas desactualizadas, ausência de instituições adequadas e indiferenciação do sector agrário, pouco poderá realizar do muito que urge e se espera inclusivamente no combate ao concentracionalismo centralista, à tardança das decisões e seu afastamento das realidades, à falta que continuará a subsistir de uma verdadeira política de equilíbrio intersectorial e de um combate enérgico, rápido e efectivo às assimetrias regionais de desenvolvimento.” Assim ditas, não parecem palavras de circunstância, oportunistas, ao abrigo de um qualquer sistema vigente que finge fazer, não fazendo. 

A ação de Camilo de Mendonça não se limitou ao verbo fácil, de circunstância. Homem de ação. Homem da Terra. Fez da vida uma empreitada de desenvolvimento deste cantinho que amamos. Uns mais do que outros. Uns de forma mais contemplativa, outros retirando o proveito fácil. Subvencionando-se vitaliciamente. 

* locução latina que significa “ obras, não palavras”

NOTA: Esta crónica não tem pretensões académicas. A minha intenção limitou-se a contribuir para a memória de um povo relembrando um dos nossos. Pode ser que sirva de exemplo para a conduta dos que decidem e para nós, os contemplativos, será uma aragem de esperança.

FONTES:

- Nordeste – Boletim da Organização Regional da Lavoura, n.º 29, Novembro de 1968;

- Dissertação de Doutoramento de Laura Larcher Graça, Propriedade e Agricultura: Evolução do Modelo Dominante de Sindicalismo Agrário em Portugal, Lisboa, 1999;

- Memórias e Prospectivas 1, Da Província à Região-Plano, CCDRN, Coord. de António Melo, Setembro, 2009.

Pode consultar estes documentos nos seguintes links:



sábado, 23 de janeiro de 2016

O menino da bandeira

Uma das mãos segura pelo irmão mais velho, a outra disponível cerrava-se em punho, ou em “v”, tanto fazia. Gritava pela força unida do povo. O verão corria quente e agitado. Diariamente, participava nas arruadas promovidas pelos partidos e movimentos políticos. Os seus 5 anos não lhe permitiam ter grande noção do significado das siglas pelas quais gritava. Que importava? As ruas enchiam-se de gente numa festa permanente. Posicionava-se na linha da frente, gritando, cantando voos de gaivotas seguidas do adeus a qualquer coisa que não sabia definir ou explicar. O indestrutível TELEFUNKEN lá de casa debitava comunicados e debates protagonizados por grandes bigodaças e cabeleiras, barbas de 3 dias, colarinhos intermináveis e jornalistas muito sisudos e inseguros. Os pais acompanhavam as notícias sem grandes comentários. Os 40 anos de escuridão tinham entorpecido as ideias e as palavras custavam a sair. À mesa, falava-se das incertezas nas escolas, dos saneamentos dos professores e das assembleias gerais onde todos podiam falar. Os adultos, a medo, em surdina, comentavam as alterações das chefias e as investidas dos movimentos revolucionários, muitas vezes cegos e surdos, questionando os desalinhados da nova ordem social.

Ainda sem tudo perceber, a criança de 5 anos, inferia dos desabafos do pai que no antes, nem todos eram maus e que também havia gente boa, gente de trabalho. Parece que havia um velhote, esse sim, um tirano que trazia o povo esfomeado e oprimido. Parece. Como podia ele entender o que ia na cabeça dos adultos? Para ele, menino, nada mudara, as ruas continuavam disponíveis para as futeboladas, os índios continuavam a ser índios e os cobóis continuavam a ser cobóis. Os pássaros continuavam a fazer os ninhos. As ruas continuavam sujas. Havia mais gente a chegar todos os dias, trazendo vidas passadas encaixotadas. Traziam um olhar triste e saudoso e tinham uma tez morenecida por um Sol que talvez brilhasse mais…

Mais tarde, em 76, um pouco mais crescido, o menino participava no fim do comício no Cine Teatro Torralta. Em pleno palco, o menino, agitava uma enorme bandeira com umas letras que ele aprendera há pouco, lá na escola da Estacada: EANES. Eram letras enormes e a julgar pela alegria do povo ululante, deveriam querer dizer alguma coisa de bom. Talvez significassem um cumprimento, uma saudação, pois o povo repetia-as vezes sem fim, em uníssono e cada vez mais alto. Fosse qual fosse o significado daquelas letras, causavam uma expressão de esperança nos semblantes dos homens, agora já escanhoados de pilosidades bafientas. O próprio colorido das vestes das mulheres ganhava outras tonalidades, muitas e diferentes e tudo parecia belo e possível.

O menino de 5 anos, mesmo sem perceber porquê, estava feliz.

Os anos foram passando e a Palavra tinha invadido a boca de toda a gente. De repente, as línguas soltaram-se no aparelho japonês que tinha substituído o velho TELEFUNKEN. Havia muitas opiniões, para todos os gostos. Proliferavam as siglas mais à esquerda, mais à direita e ao centro. Sim, as ideias estão sempre muito bem arrumadinhas num só lado e não são permitidas bilateralidades duvidosas e imprevisíveis. Falavam muito. Prometiam ainda mais. A cada passo, nas eleições montava-se um circo de distribuição de brindes, de colagem de cartazes, de comícios com muita gente e de tempos de antena com frases bonitas e arrebatadoras. Quem poderia ficar indiferente a tanto bulício e a tamanha dinâmica renovadora? Ninguém! Tudo a bem do povo. Chamadas a votar, as pessoas depositavam a sua vontade, a sua crença em urnas de esperança. Faziam-no de boa fé. Umas num sentido, outras, noutro. O próprio menino de 5 anos também já tinha ganho o direito, que era também um dever, de votar. Posicionou-se no ponto que foi achando mais adequado, mesmo já não pegando em bandeiras. Com o tempo, as dúvidas foram instalando-se. Cada vez mais havia perguntas para as quais tardavam as respostas. Percebia-se que na penumbra, uns braços de poder alcançavam os tais partidos das siglas. Estranhamente, a política fazia-se em lojas exotéricas, seguindo rituais enigmáticos. Também se fazia ao abrigo de crenças e de castas instaladas, de pais para filhos, em irmandades muito bem intencionadas.

E assim, aos poucos, a alegria e a esperança das arruadas em que o menino de 5 anos participara, foram perdendo-se no tempo. A vontade de mudar o mundo e a confiança depositada nos homens bem vestidos e falantes, transformou-se na desconfiança perigosa e incerta.

Entretanto, lá em casa, o aparelho japonês tinha sido substituído por outro, chinês, maior e mais delgado, com melhor definição de imagem e com som polifónico. Os serões preenchiam-se agora com novelas e futebóis entremeados com comentários encomendados, vendidos, que tudo dizem saber, tudo entender.

O menino de 5 anos, de caneta na mão, escreve agora estas linhas. A mesma caneta que no próximo domingo não deixará de escrever. A tinta não correrá célere mas a mão que guiará a caneta, depositará a esperança na negra urna. Mais uma vez.


Rui Machado

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

“ Uma criança, um professor, um livro e um lápis podem mudar o mundo” – Malala Yousafzai *


Falava há duas horas. A sala configurada em “U” permitia que todos se olhassem frontalmente. Impecavelmente vestido, boa silhueta, deveria ter mais de 50 mas menos de 60. Não se sentava um segundo. Deslocava-se à nossa frente, gesticulando, exemplificando ou rabiscando no quadro. Intercalava o discurso fluente com um ou outro apontamento de humor que captava de novo a nossa atenção. Da minha parte, confesso que nem sempre a minha atenção se focava nas suas ideias, nas suas teses e na sua procura constante. Admirava o seu prazer em ser professor. A aula era uma verdadeira arena, onde ele, lutador incansável, provocava, estimulava, entregando tudo que tinha, desfazendo-se lentamente. Não raras vezes, recebia olhares e opiniões contrárias às suas, não se esquivando, pelo contrário, posicionava-se de frente à espera de receber e entregar. No final daquelas tardes de sexta-feira, sentíamo-lo totalmente despojado, sem energia. Uma ou outra vez, no final, fui falar com ele, colocando--lhe alguma dúvida ou simplesmente, usufruir da prédica mais um pouco. Tinha necessidade de se recompor por mais alguns segundos, só então regressava e perguntava: 
Então diga lá! 
Mais tarde confessei-lhe que foi necessário chegar à idade de Cristo para ter um professor de excelência. Talvez estivesse a ser injusto. Na verdade, tive outros, muitos bons também. Lembro-me de uma de História, irritantemente inquieta. Ignorava orgulhosamente os manuais do Pedro Almiro Neves. Tinha a sua própria agenda, o seu singular programa donde não se desviava uma vírgula. Adorava que tirássemos apontamentos e que usássemos as suas máximas nas respostas dos testes: “ Portugal sempre teve uma carência endémica de cereal” – dizia-o com altivez e com postura estática no meio da sala, para que todos a vissem e sobretudo, ouvissem. Muito empenho, dedicação e seriedade. Dos alunos exigia a mesma postura responsável. Tinha fama de exigente, fria e antiquada. Assim me serviu de exemplo. Não a queria recordar diferentemente. Outros tive que me marcaram tanto, que me ensinaram tanto e sem saber, me traçaram o destino. Destino de vocação, de missão, de entrega e desprendimento. 

Em tempos conheci um professor que dizia “ eu gosto é de preencher cabeças”. Partindo do princípio que elas, as crianças, estão vazias, o que não é verdade, é de facto um privilégio ajudar a preenchê-las. É uma riqueza mostrar os caminhos, orientar as águas pelos regos que julgamos certeiros, descobrir os dispositivos que acionam o conhecimento, proporcionar a luz e a independência. Costumo dizer que a partir do momento em que temos a possibilidade de ensinar, que temos a oportunidade de ter alunos, nada mais importa. Aquele momento é só nosso. Sem ruídos plasmados em decretos, despachos, tiques autoritários, doutrinas, modas, guerrilhas partidárias e palcos experimentalistas. Só nós e eles. E assim acontece. De repente, num processo mais ou menos lento, trazemos todo o mundo para a sala de aula. Viajamos nas asas dos poetas. Agilizamos o cérebro no cálculo aritmético. Traçamos destinos geométricos de muitas formas e cores. Sintetizamos experiências em fórmulas labirínticas. Olhamos as estrelas conhecendo-lhes as histórias. Organizamos vidas passadas em nomenclaturas. Conhecimento. E eles, os nossos alunos, a nossa matéria-prima, ali estão. Disponíveis. Prontos. Preparados.

Ensinar é um poder incomensurável. Uma responsabilidade. Uma missão. Professor que acolhe, que mima, que orienta, que dá a mão, que fornece as ferramentas, que cultiva, que incrementa, que inova, que se adapta, que responde, que recebe, que integra e que esbate a diferença. Professor que se expõe, que sofre com os dedos acusadores daqueles que não gostam dele, que não gostam da Escola. Que se encaixa nas reformas que sucedem a reformas. Professor enquanto ator da Escola baleada à falsa fé, vítima de terrorismo legislativo. Professor psicólogo, médico, assistente social, terapeuta, economista, gestor. Tudo o professor é. É palhaço com obrigação de fazer rir nos dias cinzentos. É cirurgião de mão trémula que não pode falhar a incisão pelo bisturi. É anestesista que não pode errar na dosagem. É engenheiro que não pode errar o cálculo sob pena da ruína da estrutura. É controlador aéreo que não pode ter noites mal dormidas e problemas familiares. É por tudo isto que o tal professor que deu origem a esta crónica se ausentava, se transfigurava, se multiplicava e pulverizava o seu exemplo sobre nós, humildes aprendentes e discípulos.

E assim.

Aos poucos.

Mudamos o mundo.

*Malala Yousafzaï, a adolescente paquistanesa baleada na cabeça pelos talibã pela sua campanha em defesa do direito à educação das raparigas, foi uma das vencedoras do Nobel da Paz 2014.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A nossa vida ficcionada e os incómodos que causamos aos senhores


Nunca mais ganhamos juízo. Que mania a nossa de vivermos acima das nossas possibilidades. Então não é que ainda estamos a pagar o BPN e o BES e já nos comprometemos a pagar o BANIF? Assim não vamos lá! Senhor trabalhador por conta de outrem, senhor empresário empreendedor e cumpridor, que mania a vossa de pagar e pagar um sistema bancário tão competente e eficiente. Dez mil milhões de euros?! Tem de ser por causa do risco sistémico, do risco de contágio, é necessário proteger a economia. Foi por não termos essa preocupação que na minha rua onde havia 50 casas comerciais, agora há 6. Quando faliu o Pedro eletricista, o Neves alfarrabista e a Carmelinda modista, devíamos, nós os moradores, alegres contribuintes, ter pago as suas dívidas. Ter-se-iam evitado dezenas de despedimentos. Mas não, ninguém nos pediu para pagar porque se tivessem pedido, nós pagávamos. Na verdade, eu já desconfiava que alguma coisa não estava bem, aquele Aquiles da barbearia do Tavares que tinha estado na América, na terra das oportunidades, tinha vindo tomar conta do negócio e com ideias muito inovadoras e lucrativas. Mas não tinha grande pinta. Falava de forma pausada e competente e como ninguém o percebia, ninguém o questionava. O safardana queria implementar novas técnicas de gestão e teve a ideia peregrina de propor aos clientes o pagamento adiantado de 100 cortes de cabelo. Se assim fosse, assegurava aos clientes e a todo o agregado familiar, uma aparadela mensal até ao fim da vida dos incautos clientes. Ia mais longe pois quem subscrevesse o pacote Melena Sénior Plus, pagando 110 cortes de cabelo, garantia a aparadela aos canídeos das famílias. Era uma grande ideia. Muita gente aderiu estusiasticamente à proposta tentadora. Até mesmo os carecas. Que diabos?! Era um bom negócio, com a esperança de vida a aumentar, a probabilidade de cortar de borla o cabelo por muitos e longos anos, não oferecia risco ou quase não oferecia risco. Dizia o Aquiles. O pior foi que um belo dia, o Aquiles deu às de vila diogo com a criada de servir dos Miranda e ninguém mais soube dele. Nem dele nem do dinheiro. Durante semanas a fio, os lesados do Aquiles não largaram a porta da Barbearia do Tavares a exigir o dinheiro de volta ou pelo menos o corte gratuito da melena. Já não havia quem parasse as suíças e os pescoços precisavam de um caldinho bem feito. E o Tavares? O Tavares dizia desconhecer o acordado. Como era possível, ele, o supervisor de todos os pentes e tesouras da mais afamada barbearia lá da terra, não saber nada? A informação de que dispunha não apontava na direção da fraude, pelo contrário, o negócio estava em plena expansão. Um dos donos disto tudo, tinha dito solenemente na rádio local que estava tudo bem, que tinha como boa a informação fornecida pelo Tavares. Sim, o barbeiro tinha até tido a delicadeza de o informar, previamente, dos bons ofícios do Aquiles e dos produtos inovadores da barbearia. Só não entrou no negócio porque, coitado, as reformas dele e da mulher não chegavam para extravagâncias. O povo, com o desgosto, deixou crescer o cabelo e emigrou em massa. 

E assim corre a vida no nosso Portugal. Sempre tudo tão natural, tão lógico. Só faltava que o senhor que faz o favor de tomar conta do meu dinheiro e até me paga a luz, a água, o telefone e as restantes mordomias da fidalguia tivesse a maçada de me telefonar a informar-me que a partir do mês tal, o banco me cobraria despesas de manutenção mensais. Espera aí, ligou mesmo. Ai sim? Perguntei eu. Tem mesmo de ser? Tinha sim, era de Lei. Ah se era de Lei, estava bem. Mas não se podia fazer nada? Podia. Se solicitasse cartões de crédito, fizesse uma poupança a prazo de 3000 € e/ou… Hum, pensei eu, que simpatia, que disponibilidade, que eficiência. Só havia um problema, dissera eu, além de viver acima das minhas possibilidades e de comer bifes todos os dias, tinha que ajudar a pagar os dez mil milhões dos bancos… O impecável funcionário sugeriu que fizesse um empréstimo para a poupança a prazo. Era bem pensado. E como pagava? Que ia pagando, logo se veria. Achei melhor não. Pagaria as despesas de manutenção, sempre os ajudava a pagar os telefones e a internet. Solícito, perguntou se podia ser útil em mais alguma coisa. Podia sim, já agora, que história era aquela do aumento da anuidade do cartão? Nem pensar, não pagava nem mais um tostão. Levavam-me tudo. Tudo aumenta, dizia o senhor. Tudo não, os meus rendimentos não aumentavam. Até que, muito educadamente, me informou que o aumento decorria da atualização da tabela do preçário das anuidades dos cartões. Ai sim? Porque não dissera logo, se era de Lei, estava certo. Ainda tive oportunidade para lhe agradecer tanta disponibilidade para olhar por mim, pobre despesista. 

É tão triste a ignorância financeira. Imaginem lá que eu desconfiava que a liberalização dos preços dos combustíveis e da energia eléctrica era uma forma subtil de tramar os consumidores. Claro que não, pode custar um bocadinho ao princípio mas tudo entrará no rego e as entidades reguladoras são muito nossas amigas.

Ou talvez não.

Rui Machado