sábado, 28 de novembro de 2015

Somos todos tão bonitos!


Somos todos tão bonitos, tão cheirosos, tão bem vestidos, tão elegantes, tão fitness e running que até chateia. O culto da imagem é uma verdadeira obsessão. A imagem estereotipada dos modelos da publicidade, belos e musculados torna-se o exemplo invejado que coloca a nossa imagem no topo das preocupações. Talvez por isso, um grupo de crianças de 7 ou 8 anos faça o seguinte autorretrato: “ Somos muito bonitas, vestimo-nos muito bem, somos elegantes, temos cabelos espetaculares e somos muito bem dispostas.” E de facto são. Cada vez mais são só isso. Nesta constatação, incluo as vozes irritantes das adolescentes das séries da TV, sempre muito bem sucedidas, bonitas, sacanas quanto baste, irónicas e egocêntricas que mal cabem na caixa mágica. Nesta tendente superficialidade de carácter, incluo também as novas tendências musicais de grupos de meninos imberbes a debitarem frases soltas em harmonias orelhudas sobre muito amor para dar, se tu queres eu quero, há um caminho para nós os dois, vem ser feliz comigo e olha para mim tão lindo aqui. E elas e eles parecem gostar. Mesmo que sibiladas por alguém que usa artefactos indígenas nas orelhas ou um arganel no nariz. Diz que são os novos tempos, que temos de nos habituar. Faço um esforço e lá vou conseguindo encarar com naturalidade estes desvios estéticos, valorizando nomeadamente a liberdade individual de quem exterioriza a sua diferença. Apesar de tudo reconheço que a vaidade e uma dose certa de auto estima fazem muito bem à saúde mas também tenho a certeza de que só isso não chega.

As evidências parecem apontar para uma crise de valores comummente aceites como universais. Um destes dias, num programa de opinião pública, um senhor dizia que se mandasse acabava com os partidos de esquerda e com… o Benfica. E aquele outro que perguntava “ já indigitaram o preto?”. E ainda a imprensa que fala em governantes ciganos e cegos. De que vale o embrulho quando a essência é ódio, rancor, agressividade e xenofobia.

Mas a pergunta que se impõe, o que podemos nós fazer? Sem elencar um receituário infalível, deixo aqui umas ideias:
Há quanto tempo não fala com o seu filho sobre a beleza do Outono? Há quanto tempo não lhe diz que o ama? Tivemos o cuidado, nós adultos, de explicar o que aconteceu em Paris? Tivemos o cuidado de fazer sobressair o lado humanista dos gestos, das palavras que contam? Ou deixamos os nossos filhos expostos às imagens nuas, às palavras soltas e às interpretações académicas dos adultos? As crianças contam connosco. Não as abandone a si mesmas. Ouça as suas inquietações, mesmo as não verbalizadas, explique-lhes de que fogem os refugiados. Tente não ser parcial. Explique-lhes que uma criança tem as mesmas necessidades em todas as latitudes. Não politize tudo, a vida é muito mais que realidades polarizadas. Lembre-se que enquanto vocifera contra este ou aquele, o seu filho escuta-o, absorve tudo o que diz, ele precisa das suas palavras. Deixe os seus ódios de estimação para si próprio. Mostre-lhe a diferença, seja tolerante com aquilo que não concorda. Defenda os seus pontos de vista sem menosprezar as ideias contrárias às suas. Trabalhe o carácter do seu filho. Diga-lhe que sim, que ele é lindo por fora mas foi feio quando insultou o colega gordo, cigano, cego ou pobre. Que não esteve bem quando não teve paciência para as perguntas do avô. Que devia ter entendido as razões porque não lhe comprou os ténis de 120 €. Que pode desligar a televisão para que possa conversar consigo. Que pode ler um livro. Que pode ter uma ideia. Que pode fazer um desenho. Que pode brincar com o vizinho.

Estranha crónica esta. Talvez esteja a precisar de um jantar de amigos. Talvez tenha saudades dos meus irmãos e sobrinhos. Da gente a quem quero bem. Das pessoas de bem que passaram pela minha vida e que não sei por onde andam. Talvez seja isso. Ou talvez não. Talvez também precise que alguém me explique o que se está a passar no mundo.

Para terminar, desanuviemos. Estudos científicos recentes confirmam que os nossos amigos canídeos gostam mesmo de nós. Foi possível estudar o cérebro dos nossos amigos patudos e confirmar que eles nos veem como pertencentes à sua família, que reagem não só aos nossos cheiros mas também às nossas angústias e frustrações. Nada que quem tem cães não soubesse já. A ciência só confirmou.



Rui Machado

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O futebol que eu gosto nem é futebol, é jogar à bola



Citando Eduardo Galeano: “Un periodista pregunto a la teóloga alemana Dorothee Solle: --¿Como explicaría usted a un niño lo que es la felicidad? -- No se lo explicaría -- respondió -- le tiraría una pelota para que jugara.”

Esta não resposta sintetiza a essência do futebol. Existem duas dimensões do fenómeno: o jogo jogado pelas crianças na rua, nos campos improvisados e também nos clubes vocacionados para a formação e o negócio em que se transformou a indústria de milhões liderada pelos petrodólares e por agentes mediadores de grandes negócios, com tal envergadura que nos questionamos sobre a sua origem e porque razão não faltam interessados em investir. Há hoje um futebol sujo, a cheirar a petróleo, cativo das transmissões televisivas à escala mundial, uma indústria que não para de crescer e de gerar riqueza. Este enquadramento torna cada vez mais difícil encontrar a felicidade que a teóloga alemã dizia observar no jogo jogado das crianças. Apesar de tudo, de quando em vez, aparece um intérprete, um criador que num egoísmo egocêntrico, corre com a bola, acariciando-a, tocando-a, gerando essa relação estranha já que depois das carícias enlevadas, livra-se dela a pontapé. E ela, obediente, vai esvoaçante, sobrevoando cabeças que tentam alcançá-la mas ela leva pressa, quer chegar às redes que pretende beijar dando assim um prazer supremo ao pé criador que a projetou pelo campo fora.

O futebol, esse jogo estranho de vinte e dois obreiros, uns mais do que outros, de pouquíssimos artistas mais os apelidados especiais e doutores da bola, qual metáfora da sociedade. 

O futebol como ciência é um verdadeiro frete, que me desculpem os entendidos que hoje preenchem os milhentos programas de análise, de debate e comentário.

O futebol que eu gosto nem é futebol, é jogar à bola. É a tal felicidade. É o movimento coletivo que aproxima as diferenças, que exterioriza a alegria saudável que existe em todos nós. É o correr para o campo da escola no intervalo apressado entre duas aulas. É o gerador de amizades momentâneas numa rua de diferenças. É o bailado, o tango argentino, o samba no pé e o fandango, tudo em uníssono. É tudo e todos. É cântico de orgulho na bandeira hasteada no pilar de um povo. É cor ao vento. É afonia, é o golo gritado na telefonia elevado ao expoente máximo da loucura. É a corrida ziguezagueada entre as traves adversárias. É o limite das forças. É o palco da glória dos improváveis e muitas vezes o calvário dos consagrados. É a onda sincronizada, apartidária e vibrante das multidões. É a angústia do guarda-redes perante o pelotão de fuzilamento. É o erro humano do juiz emparedado entre jogadores, assistência e a douta análise dos comentadores. É o cromo da bola que ao domingo aproveita para ser notado depois de mais uma semana a ser ignorado. É a tribuna dos poderosos, dos beneméritos bem vestidos e perfumados que, enfadados, se mostram às massas. É a desculpa forjada, a lavagem de capitais e atitudes. É a psicanálise regressiva que nos transforma em jovens de vinte com corpos de quarenta. É o fervor clubista, irracional e quase sempre inexplicável. É doutrina. É missa pagã. É êxtase e cólica emocional, tantas vezes grito e choro.

Para terminar, peço emprestadas as palavras de Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio no seu livro El fútbol a sol y sombra y otros escritos:

“ Al final del mundial del 94, todos los niños que nacieron en Brasil se llamaron Romario y el césped del estádio de Los Ángeles se vendió en pedazos, como una pizza, a veinte dólares la porción. Una locura digna de mejor causa? Un negocio vulgar y silvestre? Una fabrica de trucos manejada por sus dueños? Yo soy de los que creen que el fútbol puede ser eso, pêro es también mucho más que eso, como fiesta de los ojos que lo miran y como alegria del cuerpo que lo juega.”

Para mim, o futebol é isto, vai ser sempre isto. Como se fosse pouco.


Rui Machado

domingo, 15 de novembro de 2015

A teoria da burocracia de Max Weber ou como organizar a gaveta das meias

Um destes dias, numa tentativa de arrumar uns papéis que se vão acumulando ao longo do tempo, tropecei na Teoria da Burocracia de Max Weber. Tentava eu, em vão, colocar em prática os seus ensinamentos: ser organizado e eficiente. A tarefa não tem sido fácil já que não sou organizado. Trata-se de uma fraqueza com a qual lido muito bem. Talvez os que partilham os espaços comigo não sejam da mesma opinião. Tendo crescido numa casa com muita gente e ainda por cima com muitos homens (inevitável comentário sexista) a organização era a possível. Convivia bem com isso. Mais tarde, quando comecei a partilhar afetos e despesas tive alguma dificuldade em memorizar os “ sítios” das coisas. Desde a gaveta das meias, ao correio rececionado, aos jornais do dia anterior e acabando nos vários tipos de massa arrumados em caixinhas, a arrumação das roupas respeitando a estações do ano, tudo foi uma aprendizagem mais ou menos complicada.
Mas porquê Max Weber? Nas nossas ocupações profissionais estamos hoje naufragados numa burocracia asfixiante, não a burocracia preconizada pelo intelectual, jurista e economista alemão mas uma outra conceção pejorativa, uma disfunção do modelo organizacional. Para o comum dos mortais, burocracia é entendida como uma organização lenta e vagarosa na qual a acumulação de papelada se multiplica e se avoluma, impedindo soluções rápidas e eficientes. Como referido, a visão do senso comum sobre burocracia é uma disfunção do sistema burocrático mas não é o sistema em si mesmo. O Sr. Weber, falecido em 1920, queria um modelo autoritário, hierarquizado, com tarefas bem definidas, com comunicações e atos devidamente formais e com funcionários especializados e despersonalizados, características presentes nas organizações dos nossos dias. Refletindo um pouco, parece-me que o modelo se desvirtuou porque se colocou a tónica nos objetivos e não nos meios para melhorar o desempenho de todos. As organizações públicas são hoje escrutinadas em várias frentes. Sofrem pressões internas e externas que exigem respostas permanentes. Respondem verticalmente a modelos políticos cada vez mais voláteis, obedecem a doutrinas e ideologias nem sempre claras mas irrevogavelmente presentes. No meio deste turbilhão, tomam-se opções organizacionais que prejudicam a eficiência e sobretudo prejudicam a realização pessoal sempre preterida em prol da organização. Nas organizações dos nossos dias não há lugar à espontaneidade, as relações despersonalizaram-se, deixamos de ter colegas de trabalho pois as pessoas com quem lidamos profissionalmente são meros ocupantes de cargos hierarquizados. Perdemo-nos em normas, formulários e plataformas informáticas e outros maravilhosos trava eficiência. A informática, erradamente, tem servido para emperrar a engrenagem. Esta suposta ferramenta facilitadora tem servido para acumular registos e mais registos que nem sempre são analisados de forma adequada para, formalmente, melhorar procedimentos. Vulgarizou-se o “ manda-me por mail”, o upload, o registo electrónico, a base de dados… e ninguém contabiliza o tempo que isso nos consome. Será esta a eficiência pretendida? Não me parece que seja. As malditas evidências que constantemente nos pedem só terão a utilidade desejável se forem devidamente tratadas e analisadas e daí se extraírem os melhoramentos necessários.
Para terminar, dizer que nem todas as organizações são iguais. Costumo dizer que uma escola não pode ter os mesmos critérios organizacionais que uma fábrica de parafusos. Se o parafuso sai torto ou com a rosca defeituosa, não será difícil encontrar a causa do defeito mas na escola, os parafusos são outros e desenganem-se aqueles que acham que os podemos fabricar com recurso à comparação entre contextos análogos. Esta análise ficará para outra crónica.
Entretanto, façam o favor de se organizarem, de serem eficientes ou então façam como nas lojas comerciais, chamem o supervisor que ele passa o cartão e resolve tudo.

Rui Machado

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O pai do rock ou a banda sonora das nossas vidas?

“sei de uma camponesa

que dança à noite na eira

perfumada de avenca e feno

enfeitada de tomilho

e canta com a expressão

de quem vai ter um filho

mesmo pelo coração”


Sei de uma camponesa de Rui Veloso / Carlos Tê

Não sendo muito dado a efemérides, reconheço que servem para nos recentrarmos em aspectos importantes, personalidades marcantes e evocações necessárias e pertinentes. Serve o introito para lançar as palavras sobre alguém que compôs a banda sonora da minha vida e talvez da vida de muita gente da minha geração: Rui Veloso e Carlos Tê.
Comemoram-se os trinta e cinco anos de carreira daquele que, erradamente, nos disseram desde sempre, tratar-se do pai do rock português. O próprio não se sente muito confortável com a paternidade e tem as suas razões. Os pais são outros: Paulo de Carvalho e Carlos Mendes dos Sheiks; Tozé Brito e José Cid do Quarteto 1111; Rui Brazão e Carlos Alberto do Conjunto Académico João Paulo não esquecendo Os Conchas de Daniel Bacelar que em 1960 gravaram os dois primeiros originais de rock editados em português, vinte anos antes da edição do primeiro disco de Rui Veloso. 
A correção histórica não tira a importância ímpar da dupla Rui Veloso e Carlos Tê na história do rock português. A referência aos dois torna-se obrigatória porque não me parece que possam existir separados enquanto criadores. As palavras do Tê não parecem fazer sentido quando não cantadas por Rui Veloso e também os temas perdem a singularidade sem as palavras do Tê.
No Natal de 1980, recebi das mãos da minha irmã o álbum “ Ar de Rock”. Aí começou esta relação de admiração pela música produzida por um jovem portuense de 22 anos, com um ar banalíssimo, de calças de ganga, sapatilhas, óculos Ray-Ban, sotaque à Porto, com uma postura de antivedeta. No gira discos lá de casa, o vinil negro, quase inquebrável e revestido a “ emitex que preserva este disco protegendo-o da poeira” tocava vezes sem conta. Nas primeiras audições, cativavam as melodias simples, o som da guitarra elétrica, a viola baixo do Zé Nabo e a bateria do Ramon Galarza. Pelo meio, surgia uma harmónica carpidente e sofredora. Mais adiante, lia com uma atenção imperturbável as letras do Tê:
Em Saiu para a rua “ Tantos anos tantas noites / sem nunca sentir a paixão / foram já as bodas de prata / comemoradas em solidão “;
Em Miúda (fora de mim) “ Primeiro deste-me sorte / saímos os dois por aí / cinemas uns bares e dançámos / perdemos sul e norte / ficámos partimos daqui / quisemos achar e achámos / depois tu de repente já diferente / percebi que alguma coisa se passava / procurei-te e miúda achei-te ausente / e era a primeira vez que assim te achava”;
Em Bairro do Oriente “ Tenho à janela / uma velha cornucópia / cheia de alfazema / e orquídeas da Etiópia”;
Em Afurada “ Murmura a maré no casco / os pescadores conversam / à porta do tasco / fumando um cigarro forte “.
Eram palavras simples, diretas, palavras com sentido que retratavam vidas de pessoas reais, nossas vizinhas, connosco. Muitas vezes, palavras que faziam eco dos nossos pensamentos, dos beijos roubados às namoradas, das vítimas, das vidas difíceis dos pescadores, dos desencontros entre o eu e os outros, das ausências em mim, em nós, dos ambientes a oriente, das vidas perdidas “ depois de mais um shoot nas retretes / curtindo uma trip de heroína “…
Falamos de um disco datado, dum contexto confuso num Portugal pós PREC onde tudo estava para acontecer. Não sendo o pai do rock, Rui Veloso deu continuidade aos acordes elétricos dos primeiros passos da década de 60. Funde o Soul e Blues americano com uma portugalidade reconhecível por todos. Ilustra, com música, as nossas interrogações, os nossos dilemas. Para mim, crescer a ouvir os seus originais, serviu de terapia. As letras que não percebia de início, fui-as descodificando ao longo da vida. “ Vem vem à minha casa / rebolar na cama e no jardim / acender a ignomínia / e a má língua do código pasquim / que nos condena numa alínea / a ter sexo de querubim “ ou “ Há um jovem pescador / a trincar dedos cortados / pela sediela fina / segura na mão a amarra / e despede-se da mulher varina / que lhe abotoa a samarra” são enquadramentos cinematográficos que ficam bem em qualquer sonho.

Rui Machado


NOTA: Recomendo o documentário que a RTP está a passar sobre o Rock Português, A arte elétrica em Portugal.