Somos todos tão bonitos, tão cheirosos, tão bem vestidos, tão elegantes, tão fitness e running que até chateia. O culto da imagem é uma verdadeira obsessão. A imagem estereotipada dos modelos da publicidade, belos e musculados torna-se o exemplo invejado que coloca a nossa imagem no topo das preocupações. Talvez por isso, um grupo de crianças de 7 ou 8 anos faça o seguinte autorretrato: “ Somos muito bonitas, vestimo-nos muito bem, somos elegantes, temos cabelos espetaculares e somos muito bem dispostas.” E de facto são. Cada vez mais são só isso. Nesta constatação, incluo as vozes irritantes das adolescentes das séries da TV, sempre muito bem sucedidas, bonitas, sacanas quanto baste, irónicas e egocêntricas que mal cabem na caixa mágica. Nesta tendente superficialidade de carácter, incluo também as novas tendências musicais de grupos de meninos imberbes a debitarem frases soltas em harmonias orelhudas sobre muito amor para dar, se tu queres eu quero, há um caminho para nós os dois, vem ser feliz comigo e olha para mim tão lindo aqui. E elas e eles parecem gostar. Mesmo que sibiladas por alguém que usa artefactos indígenas nas orelhas ou um arganel no nariz. Diz que são os novos tempos, que temos de nos habituar. Faço um esforço e lá vou conseguindo encarar com naturalidade estes desvios estéticos, valorizando nomeadamente a liberdade individual de quem exterioriza a sua diferença. Apesar de tudo reconheço que a vaidade e uma dose certa de auto estima fazem muito bem à saúde mas também tenho a certeza de que só isso não chega.
As evidências parecem apontar para uma crise de valores comummente aceites como universais. Um destes dias, num programa de opinião pública, um senhor dizia que se mandasse acabava com os partidos de esquerda e com… o Benfica. E aquele outro que perguntava “ já indigitaram o preto?”. E ainda a imprensa que fala em governantes ciganos e cegos. De que vale o embrulho quando a essência é ódio, rancor, agressividade e xenofobia.
Mas a pergunta que se impõe, o que podemos nós fazer? Sem elencar um receituário infalível, deixo aqui umas ideias:
Há quanto tempo não fala com o seu filho sobre a beleza do Outono? Há quanto tempo não lhe diz que o ama? Tivemos o cuidado, nós adultos, de explicar o que aconteceu em Paris? Tivemos o cuidado de fazer sobressair o lado humanista dos gestos, das palavras que contam? Ou deixamos os nossos filhos expostos às imagens nuas, às palavras soltas e às interpretações académicas dos adultos? As crianças contam connosco. Não as abandone a si mesmas. Ouça as suas inquietações, mesmo as não verbalizadas, explique-lhes de que fogem os refugiados. Tente não ser parcial. Explique-lhes que uma criança tem as mesmas necessidades em todas as latitudes. Não politize tudo, a vida é muito mais que realidades polarizadas. Lembre-se que enquanto vocifera contra este ou aquele, o seu filho escuta-o, absorve tudo o que diz, ele precisa das suas palavras. Deixe os seus ódios de estimação para si próprio. Mostre-lhe a diferença, seja tolerante com aquilo que não concorda. Defenda os seus pontos de vista sem menosprezar as ideias contrárias às suas. Trabalhe o carácter do seu filho. Diga-lhe que sim, que ele é lindo por fora mas foi feio quando insultou o colega gordo, cigano, cego ou pobre. Que não esteve bem quando não teve paciência para as perguntas do avô. Que devia ter entendido as razões porque não lhe comprou os ténis de 120 €. Que pode desligar a televisão para que possa conversar consigo. Que pode ler um livro. Que pode ter uma ideia. Que pode fazer um desenho. Que pode brincar com o vizinho.
Estranha crónica esta. Talvez esteja a precisar de um jantar de amigos. Talvez tenha saudades dos meus irmãos e sobrinhos. Da gente a quem quero bem. Das pessoas de bem que passaram pela minha vida e que não sei por onde andam. Talvez seja isso. Ou talvez não. Talvez também precise que alguém me explique o que se está a passar no mundo.
Para terminar, desanuviemos. Estudos científicos recentes confirmam que os nossos amigos canídeos gostam mesmo de nós. Foi possível estudar o cérebro dos nossos amigos patudos e confirmar que eles nos veem como pertencentes à sua família, que reagem não só aos nossos cheiros mas também às nossas angústias e frustrações. Nada que quem tem cães não soubesse já. A ciência só confirmou.
Rui Machado