Será que os mercados sabem que o Joel se levantava às
seis da manhã para ir botar as canhonas ao lameiro antes de ir para a escola?
Será que os mercados sabem que o Alexandre, no
intervalo para almoço, voltava após cinco minutos porque, simplesmente, não
almoçava?
Será que os mercados sabem que a Inês, com seis anos
de idade, levantava-se sozinha porque a mãe, avinhada da noite anterior, não
tinha aparecido em casa ou não tinha saído da cama?
Será que os mercados sabem que o Martim cresceu sem
os valores dos pais, demasiado ocupados nas suas carreiras de sucesso?
Será que…
Podia continuar. A verdade é que aparecem cada vez
mais crianças nas salas de aula, desnorteadas, abandonadas a si mesmas por
razões diversas. Continuam as miseráveis, que sempre existiram, mas também
aquelas, outras, que os pais simplesmente não lhes dedicam qualquer tipo de
atenção ou atenção de qualidade. Crianças que não dormem o tempo necessário
para o seu crescimento saudável, não dormem nas condições mínimas de conforto,
higiene e sossego. É sabido que um dos estádios do sono serve precisamente para
assimilar as aquisições cognitivas do dia anterior, que de nada serve pensar na
implementação de estratégias de ensino adequadas a este ou àquele aluno, se ele
não dormir o tempo adequado à sua idade. Mas também crianças vítimas da
propaganda agressiva e altamente eficaz da indústria alimentar, viciadas em
açúcar, em corantes, em sódio…
Perdermo-nos amiúde em análises demoradas de
comportamentos desviantes e dificuldades de aprendizagem. A explicação pode ser
simples. O estilo de vida destes nossos novos dias está a criar crianças
desregradas, obsessivas, obesas, com uma atividade demasiado acelerada ( para
evitar o termo estafado da hiperatividade), egocêntricas e não poucas vezes,
criamos pequenos ditadores, impositores de vontades e regras.
Os pais de hoje não sabem dizer não. Como dizia
Daniel Sampaio, quem disse que pais e filhos devem ser amigos? Claro que devem
ser mas estão obrigados a dizer não quando necessário e a não dar porque não
podem ou mais importante, porque dando cedem a vontades supérfluas e criam nos
menores uma ideia falsa de vida fácil. É notório um grande défice em
competências parentais, mesmo salvaguardando que podemos ter ideias divergentes
sobre aquilo que queremos para os nossos filhos.
Apesar de tudo, as crianças continuam a ser a melhor
coisa do mundo. Estão cada vez mais despertas, mais conhecedoras, mais
extrovertidas e comunicativas mas estão sujeitas a demasiada oferta. Perdem-se.
Dispersam-se.
O Joel das canhonas não tinha tablet, ténis de marca
e canais por cabo. Não tinha instalações sanitárias em casa, dizia “ eu vou a
monte, professor”. Também ao Alexandre faltava o essencial:
- Alexandre, o que almoçaste?
- Paxaricos, professor, paxaricos.
- E mais?
- Besuntei o
pão na frigideira…
Curiosamente, a momentos, via nos olhos destas
crianças uma alegria momentânea, genuína que nem sempre vejo nos olhares das
crianças que têm tudo ou quase tudo. Tinham espaço para correr, subir às
árvores, nadar no ribeiro, conhecer os animais, podiam sujar-se, colher os
frutos da natureza, apanhar amoras.
As crianças de hoje não têm tempo para brincar,
brincar em liberdade, jogar à bola na rua do bairro ou andar de bicicleta pelas
ruas da cidade.
Em tempos, uma associação de pais questionava os seus
associados se estariam interessados em alargar o horário escolar até às
dezanove horas, organizando um prolongamento acompanhado. Um pai, cidadão
inglês, escreveu no papel do questionário: “ Não estou interessado, já há
escola a mais em Portugal”. Tratava-se de alguém com formação superior.
Paradigmático. Na verdade, este modelo de escola a tempo inteiro, serve a
necessidade dos pais, com horários de trabalho nada flexíveis, impedidos de
acompanhar os filhos. A pergunta que se impõe é se este modelo serve a
necessidade da criança em simplesmente, ser criança. Na minha opinião, não
serve.
Concentram-se às centenas, aos milhares em escolas
muito bem projetadas ou não ( sabiam que nas escolas modernas não se podem
abrir as janelas ???), em salas exíguas, ruidosas e com fracos materiais de
construção. Crescem em espaços muito bem qualificados mas impessoais. Muito bem
higienizados mas nada arejados.
Mas enfim, deve ser isto que faz bem aos mercados.
Encontremos uma solução intermédia onde o Joel não
tenha necessidade de ir a monte e o Martim possa estar mais tempo com os pais.
NOTA: Os nomes das crianças foram alterados e a
crónica não se refere a nenhum contexto específico.