quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Paxaricos, Professor, Paxaricos

Será que os mercados sabem que o Joel se levantava às seis da manhã para ir botar as canhonas ao lameiro antes de ir para a escola?
Será que os mercados sabem que o Alexandre, no intervalo para almoço, voltava após cinco minutos porque, simplesmente, não almoçava?
Será que os mercados sabem que a Inês, com seis anos de idade, levantava-se sozinha porque a mãe, avinhada da noite anterior, não tinha aparecido em casa ou não tinha saído da cama?
Será que os mercados sabem que o Martim cresceu sem os valores dos pais, demasiado ocupados nas suas carreiras de sucesso?
Será que…
Podia continuar. A verdade é que aparecem cada vez mais crianças nas salas de aula, desnorteadas, abandonadas a si mesmas por razões diversas. Continuam as miseráveis, que sempre existiram, mas também aquelas, outras, que os pais simplesmente não lhes dedicam qualquer tipo de atenção ou atenção de qualidade. Crianças que não dormem o tempo necessário para o seu crescimento saudável, não dormem nas condições mínimas de conforto, higiene e sossego. É sabido que um dos estádios do sono serve precisamente para assimilar as aquisições cognitivas do dia anterior, que de nada serve pensar na implementação de estratégias de ensino adequadas a este ou àquele aluno, se ele não dormir o tempo adequado à sua idade. Mas também crianças vítimas da propaganda agressiva e altamente eficaz da indústria alimentar, viciadas em açúcar, em corantes, em sódio…
Perdermo-nos amiúde em análises demoradas de comportamentos desviantes e dificuldades de aprendizagem. A explicação pode ser simples. O estilo de vida destes nossos novos dias está a criar crianças desregradas, obsessivas, obesas, com uma atividade demasiado acelerada ( para evitar o termo estafado da hiperatividade), egocêntricas e não poucas vezes, criamos pequenos ditadores, impositores de vontades e regras.
Os pais de hoje não sabem dizer não. Como dizia Daniel Sampaio, quem disse que pais e filhos devem ser amigos? Claro que devem ser mas estão obrigados a dizer não quando necessário e a não dar porque não podem ou mais importante, porque dando cedem a vontades supérfluas e criam nos menores uma ideia falsa de vida fácil. É notório um grande défice em competências parentais, mesmo salvaguardando que podemos ter ideias divergentes sobre aquilo que queremos para os nossos filhos.
Apesar de tudo, as crianças continuam a ser a melhor coisa do mundo. Estão cada vez mais despertas, mais conhecedoras, mais extrovertidas e comunicativas mas estão sujeitas a demasiada oferta. Perdem-se. Dispersam-se.
O Joel das canhonas não tinha tablet, ténis de marca e canais por cabo. Não tinha instalações sanitárias em casa, dizia “ eu vou a monte, professor”. Também ao Alexandre faltava o essencial:
- Alexandre, o que almoçaste?
- Paxaricos, professor, paxaricos.
- E mais?
 - Besuntei o pão na frigideira…
Curiosamente, a momentos, via nos olhos destas crianças uma alegria momentânea, genuína que nem sempre vejo nos olhares das crianças que têm tudo ou quase tudo. Tinham espaço para correr, subir às árvores, nadar no ribeiro, conhecer os animais, podiam sujar-se, colher os frutos da natureza, apanhar amoras.
As crianças de hoje não têm tempo para brincar, brincar em liberdade, jogar à bola na rua do bairro ou andar de bicicleta pelas ruas da cidade.
Em tempos, uma associação de pais questionava os seus associados se estariam interessados em alargar o horário escolar até às dezanove horas, organizando um prolongamento acompanhado. Um pai, cidadão inglês, escreveu no papel do questionário: “ Não estou interessado, já há escola a mais em Portugal”. Tratava-se de alguém com formação superior. Paradigmático. Na verdade, este modelo de escola a tempo inteiro, serve a necessidade dos pais, com horários de trabalho nada flexíveis, impedidos de acompanhar os filhos. A pergunta que se impõe é se este modelo serve a necessidade da criança em simplesmente, ser criança. Na minha opinião, não serve.
Concentram-se às centenas, aos milhares em escolas muito bem projetadas ou não ( sabiam que nas escolas modernas não se podem abrir as janelas ???), em salas exíguas, ruidosas e com fracos materiais de construção. Crescem em espaços muito bem qualificados mas impessoais. Muito bem higienizados mas nada arejados.
Mas enfim, deve ser isto que faz bem aos mercados.
Encontremos uma solução intermédia onde o Joel não tenha necessidade de ir a monte e o Martim possa estar mais tempo com os pais.


NOTA: Os nomes das crianças foram alterados e a crónica não se refere a nenhum contexto específico.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O Zé Jardineiro

O Boeing 737 da Ryanair acabara de aterrar no pequeno aeroporto de Beauvais, França. A viagem correra sem sobressaltos. Nesse ano, as férias seriam diferentes. Em vez de praias e esplanadas, a família rumou à Normandia. Ainda mal refeitos dos abanões causados pelas nuvens habituais da Normandia, lá estava ele, acenando, mostrando o seu contentamento por ter, finalmente, a sua família na sua casa em França. Toda uma vida de trabalho, tantas canseiras, a distância, os Natais longe de casa, a saudade… mas agora estavam todos juntos. E estava feliz. Talvez como nunca esteve. Um amigo ajudara no transporte da comitiva. No percurso até casa, a conversa de circunstância de quem chega a novas terras: o tempo em geral, a chuva em particular, as casas, os campos, o preço dos combustíveis, os limites de velocidade, os hábitos locais, as gentes…
Chegaram. A casa não destoava da arquitetura local, com os seus telhados muitos inclinados, as cores terra, as portadas das janelas e o seu interior com as traves de madeira à vista, era confortável e funcional. 
Nas traseiras da casa, ei-lo que surgia, o Jardim. Não se encontram as palavras adequadas para o descrever. O verde, a variedade das flores, dos arbustos, das árvores de fruto, a esplanada sobre o jardim, os carros que passavam na Nacional Paris-Rouen, ignorando a beleza que perdiam, as cores…as inebriantes cores. Magnólias, petúnias, malvas, dálias, cravelinas e outras, tantas, incógnitas, talvez ainda mais belas, mais enigmáticas, distintas. Era um jardim com vida: carros de mão trabalhados em madeira, arbustos a quem o jardineiro artista deu vida, transformando-os em cestas, cafeteiras e bules, cadeiras, chávenas, de tudo um pouco, simples mas belos projetos nascidos da criatividade das mãos poéticas do artista, conduzindo as tesouras num bucólico bailado. O jardineiro madrugador, com mestria, dava forma, dava vida aos arbustos do Jardim. O Jardim do Tio Zé da França. Já o conhecíamos das fotografias que o autor orgulhosamente ostentava nas visitas a Portugal, mas vivenciá-lo, conhecê-lo in loco tornava este jardim de autor uma experiência tocante. Já todos sabíamos que havia um poço no centro deste espaço, um poço a fingir, pois em vez de dar água, dava flores. Já todos sabíamos que na horta havia um pouco de tudo, não fosse transmontano o Tio Zé. Alfaces, feijões, tomates, batatas, couves, tudo. Horta e Jardim. Jardim e Horta num namoro cúmplice testemunhado pelo Zé Jardineiro. E os filhos desta relação não paravam de nascer. Um morango que corava debaixo do sol envergonhado da Normandia. Uma alface que estava quase mas não estava. Os tomates ainda verdes, esperavam pelos dias vindouros para amadurecerem mais um pouco. Os feijões verdes que ajudaram a avó a fazer uma sopa bem portuguesa. As dálias, que neste jardim ganhavam dimensões nunca vistas, quase épicas, exibindo cores exuberantes em todo o seu esplendor. Os arbustos, falando entre si, vaidosos, esperando pelo dia da poda, esperando pelos cuidados do mestre. O que nós não sabíamos era do projeto que o Zé congeminara na linha da usina. Aí tinha feito o esquisso da surpresa. Há quatro anos que andava com essa ideia na cabeça. Mas a vida não tinha permitido. Não havia vagar. Agora havia. Começava a haver. A prova estava à vista de todos: um moinho. O Zé tinha feito um moinho. No meio do Jardim. Um moinho. Não era um moinho da Holanda nem da França, nem do seu próprio país. Era o seu moinho. E funcionava. Não precisava de grande vento para que as suas pás girassem. E giravam e ao girar tinham um não sei quê de mágico porque a gente ficava a olhar para o moinho, para o seu movimento giratório e sentia-se levar pelo movimento ondulante. 
A observação do moinho transportava-nos para longe, ao ponto, pareceu-me , de ter visto, ainda que de relance, D.Quixote de la Mancha, que perdido pelos caminhos, encontrou este moinho com quem intentava guerrear-se. E foi aí, amigo leitor, percebi a presença do cavaleiro andante. O jardim feito de sonhos, estava repleto de inimigos que o cavaleiro digladiava. No entanto, eram opositores com nomes amigáveis: flores, muitas, belas e perfumadas, plantas acarinhadas e moldadas, mas sobretudo…muitos sonhos e desejos.
E percebi. Pode demorar uma vida a perceber. Mas meus amigos, pelo sonho é que vamos. Pelo sonho gerador de criatividade, engenho e querer.


Rui Machado

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O Vasconcelos

Aos finais de tarde, saído da escola, corria em direção à Livraria. Não sem antes atirar umas fisgadas aos pobres dos pardais da mata do Seminário, jogar à bola com os parceiros do Patronato ou ainda, ir espreitar o grande buraco da Estacada, local enigmático que no inverno se enchia de água, formando um pequeno lago, que eu gostava de explorar, até ao dia em que levei uma pedrada vinda do outro lado, oposto ao Colégio. Depois de feitas as asneiras aceitáveis a crianças de sete ou oito anos, lá ia para a Livraria. Às vezes, ao chegar, ou porque estava corado e transpirado ou porque tinha rompido as calças na jogatana atrás da Escola da Estacada, levava uma reprimenda ligeira que acabava sempre num beijo e no inevitável pentear dos cabelos. O andar penteado era uma verdadeira obsessão para a minha mãe. Lembro-me na minha infância, quando íamos visitar a minha avó minhota, antes de chegar, parávamos num fontenário onde a minha mãe “lambia” as crias com um velho pente que trazia na carteira. Só depois destes preparos é que estávamos prontos para visitar a avó velhinha.

Entrava na Livraria e já lá estavam. Sempre. Nunca falhavam. Todos os dias. Um deles era o Vasconcelos. O Vasconcelos… Para mim, Sr. Vasconcelos.

Não me custava nada cumprimentar o Vasconcelos, mesmo eu que não era dado a cumprimentos. Mas a ele não. Era fácil, agradável. Habituei-me à sua presença e estranhava se não o via. Às vezes, ao sábado, atrasava-se e aparecia muito afogueado ao final da manhã: “Estive a ouvir as Zarzuelas na Rádio Nacional de Espanha, não dei pelo tempo passar…”.

O Vasconcelos conhecia todos os recantos da Livraria, lá passou horas intermináveis a relacionar-se com os livros. Ver o cuidado com que os tratava, quase voluptuoso, como limpava o pó aos que tombados, jaziam em locais inacessíveis, era uma pintura de aguarela, esbatida mas muito presente. Imagem que até hoje povoa o meu imaginário. E a calma com que falava, com que expunha os seus pontos de vista, a educação inatacável com que se dirigia aos demais, o comentário mais atrevido, mas adequado, sobre uma qualquer beldade que por ali entrasse, ou a argumentação serena, quando eu, desprovido do que faz falta para crescer, tentava juntar umas ideias sobre este ou aquele político, sobre uma qualquer personagem histórica ou sobre a atualidade, a espuma efémera dos dias, ele dizia simplesmente: “sim, mas não é bem assim…” ou “isso é verdade mas é preciso ter em conta…”. E eu ouvia-o. E entendia-o. E respeitava-o.

Era um homem duma cultura sem fim. Um amante de todas as formas de Arte. Um leitor compulsivo. Penso mesmo que se deixou vencer pelos livros que leu. Tinha-os aos milhares em casa. Nada mais importava. Esse era o seu mundo.

O tempo foi envelhecendo tudo e todos. A Livraria fechou. Eu deixei de poder andar às pedradas (embora às vezes me apeteça) e o Vasconcelos foi chamado para funções mais nobres. Hoje, talvez mate o tempo a arrumar e a folhear as bibliotecas dos Deuses e a ouvir Zarzuelas celestiais.

Fernando Fausto Machado de Meneses Vasconcelos. Para mim, Sr. Vasconcelos. Com ele aprendi que o Livro é muito mais que um objeto. O Livro é saber, cultura, lazer, mas sobretudo, o Livro é amor. E não há vida sem amor. Não há vida sem livros.



Rui Machado

terça-feira, 6 de outubro de 2015

A Graziela

Corria o ano de 1997. O carro rasgava as encostas do Douro numa estrada sinuosa. Para trás ficara o Pinhão. A paisagem à margem do Douro era (é) de cortar a respiração. O setembro começara chuvoso interrompendo o verão interminável. Chovera nesse dia. A chuva potenciava os sentidos colocando-os alerta e recetivos. Na telefonia do automóvel, um intérprete, em desespero, bramava um tema do álbum dos Mão Morta “ Há já muito tempo que o ar desta latrina se tornou irrespirável”. Banda sonora pouco a propósito, pouco bucólica, ou talvez não. Na verdade, as dádivas da Mãe Natureza não afugentavam da cabeça do condutor as contrariedades duma vida itinerante. Deixara em casa a mulher grávida de 7 meses. Sozinha. Estava desconfortável, não queria partir. Mas partiu e dizem que ainda hoje é visto por essas estradas fora. Desconhece-se a banda sonora que o acompanha, mas também não é necessário saber tudo.
Chegou finalmente. Apresentou-se cumprindo as formalidades burocráticas. Alugou quarto e instalou-se.
Na manhã seguinte pôs-se de novo a caminho. Não tardaria avistar a Escola. Altaneira, lá estava. Um pouco desviada da aldeia, como sempre. Já estava habituado a orientar-se. As escolas do Estado Novo, as escolas de Salazar eram fáceis de encontrar. Sempre desviadas do povoado, ao cimo do Povo, ao fundo do Povo, na rua da Escola…
Abriu os portões ferrugentos e entrou naquelas paredes sagradas, de sabedoria. Sacudiu o pó da secretária e pousou a pasta. Pouco a pouco foram entrando, tímidos, envergonhados, sentando-se nos lugares costumeiros.
- Bom dia meninos, sou o vosso professor.
Estabelecidas as regras, os dias foram passando por entre mapas de Portugal e das Províncias Ultramarinas, ladeados pela Caixa Métrica, a Biblioteca Escolar (religiosamente fechada à chave) e as carteiras duplas com tampo inclinado e tinteiros de cerâmica. Serviam, eram funcionais. Ao centro, o quadro negro, só alcançado graças ao estrado em madeira que os elevava na estatura e na vida. Enfim, um ambiente pouco adequado para os puristas da pedagogia. Depois havia o olhar das crianças, olhos muito abertos, ávidos de saber ou simplesmente necessitados de alguma atenção, muitas vezes negada pelos pais, atarefados que estavam na procura do sustento.
Ao fim do segundo dia, no final da manhã, quando o Joel se trocava todo com os casos de leitura improvisados no flanelógrafo, bateram à porta. Era a Graziela:
-Sr. Professor, vivo aqui no cimo do Povo, o almoço é lá para a uma.
E foi. Nesse e em todos os outros dias de segunda a sexta. 
A Graziela era órfã de pai e mãe, tinha sido criada pela professora primária que toda a vida trabalhara na aldeia. Habilitara a Graziela como herdeira com uma única condição: servir o almoço a todos os professores que lecionassem na aldeia. E Graziela assim fazia. Escrupulosamente na sua pobre cozinha. Servia o seu caldo de couves colhidas na horta com o esmero e o carinho de quem fazia o bem a troco de coisa nenhuma. E não o fazia somente ao professor deslocado. Fazia-o ao primo desempregado, ao tio que regressara do Brasil de mãos vazias, aos “sobrinhos” que salvara na pocilga, abandonados pela vizinha e a todos os que lhe batessem à porta. Andrajosa mas muito limpa, não se importava com as vestes finas da cidade, a bata comprada na feira de Moimenta da Beira, servia muito bem.
Fazia-o da forma mais desinteressada, mais desprendida. Não queria nada em troca. À segunda-feira, à escapula, deixavam-se alguns víveres na banca da cozinha. Ela olhava e fingia que não via. Não se dizia nada. E assim é que estava bem.
Foi o melhor carácter que conheci em toda a minha vida.
Não a quero esquecer e espero que esteja bem. Estará com certeza. Merece.
Na bondade da Graziela, o ar, tornou-se mais respirável.

Rui Machado