Desço a rua íngreme amparado nas paredes e nos poucos carros
estacionados ao longo do percurso. Descer, ainda consigo, parando aqui e ali,
sentando-me a cada passo nos degraus das portas dos velhos prédios consumidos
pelo tempo. Para subir a rua, faço outro percurso, mais distante mas mais plano.
Perco-me muitas vezes nas ruas da cidade que já não é minha. Tudo me parece
estranho. Olho para os rostos desconhecidos com vozes desencontradas com as
minhas memórias. Onde estão os meus semelhantes? Ia jurar que naquela casa, ali
defronte, vivia o Marcelo, o meu irmão mais velho. No outro dia bati-lhe à
porta. Ninguém atendeu. O batente sofrido de tanto fustigar o castanho da
porta, adormeceu-me a mão. Alguém gritou:
- Raça do homem, já não mora aí ninguém, todos os dias isto, melhor
era que te internassem. Vai embora e não atormentes os vivos.
Indiferente, cego dos ouvidos, surdo dos olhos, nada percebia. As
janelas fechadas. Onde estavam todos? A própria mãe que nunca saía de casa…
- Mãe! Mãe! Tenho sede, abre a porta. Nem a porta se abria nem o rosto
se assomava à janela com aquele ar sereno que tanto me tranquilizava. E eu com
tanta sede. E fome. E frio. E solidão. E os demónios que me atormentam este
viver. E as sombras que me seguem para todo o lado, ora atrás, ora à frente, de
lado, de todos os lados…
Já nem o Berto aparecia. Ele que estava sempre na rua:
- Não vou para casa, está tudo em pantanas, o meu pai entornou-se
outra vez.
O Berto. A vida que tinha sido madrasta na infância, dotou-o de um pé
esquerdo com mais destreza que muitas mãos direitas. Fazia maravilhas lá longe,
estádios ululantes de gente. Um Natal, no mês de março… espera, não pode ter
sido em março, talvez em maio…não sei dizer, o Berto aparecera num carro enorme,
todo bem vestido, com uma mulher toda cromada e cintilante. Estava eu a fumar
um mata ratos que apanhara nas friestas da calçada e vi-o chegar. Ele parou,
saiu do carro e perdeu alguns minutos a olhar em volta. Dentro do carro, a
mulher impaciente, ruidosa, lamentava a vinda:
- Eu nem o conhecia…
- Acho que nem eu. Disse o Berto. Era meu pai. Bom ou mau, era meu
pai.
A loira reciclada, não desarmava:
- Um pai que te moía de pancada. E o que fez à pobre da tua mãe… Eu
nem saio do carro.
Era verdade, consumido pelo vinho de tostão, martelado, o pai do Berto
fora sempre um traste. Mãe desgraçada aquela! Morreu de tanta ralação, de tanta
pancada. Na funerária, informaram o Berto de que não tinha sido fácil disfarçar
as marcas do ódio e da brutalidade do pai:
- O que for preciso. Façam o necessário…
Mas hoje era o pai que ia a enterrar. Dividido, o Berto despedia-se dum
passado de pobreza e de ausência de tanta coisa… Antes de entrar na Igreja da Misericórdia,
o Berto olhou para mim, reconheceu-me:
- Estás bem? Não tens bom ar. Toma este sobretudo, faz-te mais falta
do que a mim.
Olhamo-nos por breves instantes. Em silêncio, dissemos tudo. Lembramos
por exemplo quando corríamos as ruas à procura de paus de gelado usados, que
depois trocávamos por um, de gelo e groselha, na taberna da Costa. Vinte paus
usados por um gelado de gelo. Ou quando íamos para a janela do Queiroz à espera
que ele nos mandasse chocolates espanhóis. Às vezes corria mal:
- Quereis mais meus lindos?
- Queremos Sr. Queiroz.
- Comei m…
Mais tarde, vi sair o carro fúnebre. Só o Berto acompanhava o pai à
última morada. Mais ninguém quis testemunhar esse adeus.
Perdido. Mais uma vez. Não sei o caminho.
- Boas Américo! (Américo? Mas quem é o Américo?) Vira ali à direita e
depois segue em frente que vais lá dar. (Mas para onde me mandam?) Anda, vai
lá. Não tens de lá ir todos os dias. Deixa-te estar ao quente em casa.
Porque me falam, não os conheço. Virar à direita… é esta, é a mão com
que escrevo. Por aqui. Agora em frente. Em frente é pelo meio das duas mãos,
não é?
- Américo, espera, eu levo-te lá. Já falta pouco.
Agarrado pelo braço, Américo, eu, conduzido pelo passo certeiro da
irmã Fortuna. A religiosa aparecia sempre nas horas más, levando-o lá, ali
mesmo.
- Entra Américo, a tua mulher já perguntou por ti. Que bonita flor lhe
trazes! Olha, à saída, não te esqueças de levar a marmita. Traz as que tens lá
em casa.
Todos os dias. No quarto dela. Sem palavras. Durante uma hora.
Certinha. Às vezes pego-lhe na mão, palpo-lhe o pulso para lhe sentir o sangue
correr. Corre. Não tanto como naquele primeiro dia que lhe roubei um beijo e
muito menos do que quando nos encontramos, furtivos, entregando-nos um ao outro
num lençol feito de epidermes. Mas ela não reagia. De olhar fixo no teto, não
reagia. Impávida, serena e aos meus olhos, bela como no dia que a conheci na
escola primária. Depois, venho-me embora. Antes de sair do quarto, digo-lhe as
únicas palavras de todos os dias:
- Amanhã, volto!
Ao final da tarde, já em casa, o gordo da televisão grita e toda a
gente se ri.
Menos eu, o Américo.
A casa cheira a velho.
O Américo, eu, cheiro a velho.
Mas não posso morrer. Só depois dela ou um bocadinho antes dela ou com
ela.
Na cozinha, as marmitas da Misericórdia amontoam-se. Muitas delas por
abrir. Antes de adormecer no sofá, na estranheza das ideias, uma organiza-se,
lucidamente:
- Amanhã, volto lá!
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