sábado, 19 de março de 2016

“Lasciatemi cantare”


Os degraus da escadaria da Escola da Cadela desapareciam debaixo dos nossos pés. Para ser mais rápida a descida saltávamos lanços de três ou quatro degraus. Conseguíamos todos, menos o Serafim:
- Despacha-te pote de grelos! O Cabeças ainda nos apanha e lá se vai a festa.
O Cabeças era o contínuo que a esta hora, de certeza, já tinha sido chamado e informado que estes três bardinos tinham fugido da sala de aula. Aproveitamos quando o Sonecas, o professor do bigode farfalhudo, o de Matemática, explicava uma equação no quadro preto. A matéria não era fácil, a nossa vontade era pouca e o maldito do bigode tornava-lhe a voz pastosa, quase impercetível. Ninguém o entendia. Quer dizer, o Fonseca entendia, tinha de entender, caso contrário o pai dava-lhe com o cinto e chamava-lhe inútil.
- Mas quais foram? - perguntou o Cabeças.
- Os do costume: O Berto, o Toni e o Serafim - retorquiu o Sonecas.
-Olha esses! Acha que vale a pena a correria?
-Pergunte lá em cima.
Lá em cima era o Diretivo. Estava lá o Sr. Eng.º Veigas, que não gostava de ser incomodado. Estava sempre a ler papeis, decretos e a assinar folhas. O Cabeças já não estava para estas andanças, andar aos mandiletes deste e daquele.
- Sorte de vida a minha, tivesse eu ido para a Guarda e já estava reformado. Razão tinha o meu pai!
Enquanto subia as escadas que o levavam ao último andar, resmungava com ele próprio. Chegado ao gabinete do Sr. Eng.º Veigas, que não gostava de ser incomodado, o pobre do funcionário estava um caco. As pernas? Bambas. As mãos? Trémulas. Suava em bica. A voz, embargada, pois já sabia que vinha tempestade. Sempre que se interrompia o Sr. Eng.º Veigas, que não gostava de ser incomodado, era um problema. O Eng.º era um homenzarrão, metia respeito. Quando o distraíam dos seus afazeres, primeiro olhava muito sério fitando os prevaricadores. Depois arregalava os olhos de tal maneira que muita da canalha que lá entrava, ia seca mas saía molhada. De seguida, dependia da ocorrência. Se o assunto fosse sério, endireitava as costas, adotava uma voz grave e dava a ordem adequada, soletrando espaçadamente as palavras. Se a questão fosse de lana-caprina, desatava num berreiro, perdigotando e vociferando impropérios. O Cabeças ganhou coragem e bateu à porta:
- Sim?!
- Desculpe incomod…
- O que se passa? Não vê que estou ocupado?
- Desculpe Sr. Eng.º, foram três lafraus do 8.º C que fugiram da aula de Matemática.
- Ai sim? Diga-me lá, sua real cavalgadura, o que faz aí especado? Trate de os apanhar e traga-os aqui que eu cuido deles.
O Cabeças saiu do gabinete a dizer mal da vida e do Sr. Eng.º Veigas, que não gostava de ser incomodado.
- Cavalgadura é o senhor seu pai porque o senhor não passa de um asno encartado. Pensou mas não o disse. Era o dizes.
- Que vá ele atrás deles! E foi varrer o Bloco C para desanuviar. Aproveitou e vingou-se nas contínuas do corredor:
- Toca a levantar esses rabos. O Ministério não vos paga para fazer renda.
Voltando aos três fugitivos. Depois da fuga bem sucedida dirigimo-nos para os carrinhos de choque. O Serafim, pote de grelos, era o do dinheiro. O pai era médico, não lhe faltava nada.
- Anda, vai lá comprar fichas para nós. - sugeriu o Berto.
- Deixa o rapaz, eu tenho aqui dinheiro.
Salvei-o mais uma vez. Valia-lhe sempre e ainda mais quando os outros gozavam com o Serafim. Tinha pena dele. Ajudava-o nas aulas de física, a de correr, não a das fórmulas, e escolhia-o sempre para a minha equipa na altura da escolha dos parceiros. Ninguém queria o Serafim. Era anafado e tinha pouco jeito para a bola. Ia para a baliza e ficava todo contente.
 Serafim não quis andar, preferiu ir comprar farturas. O Berto e eu, metemo-nos num carrinho vermelho e mal tocou a buzina, desatamos aos encontrões e espetanços.
- Olha ali, olha ali, àquelas duas - gritava o Berto.
Eu conduzia, como mais velho, cabia-me a missão de passar tangentes ao carro das duas raparigas, bem engraçadas, por sinal. A experiência com o trator lá em Coelhoso, ajudava, não era bem a mesma coisa, mas ajudava. Das colunas da instalação sonora, saía o êxito do vencedor do Festival de São Remo: Lasciatemi Cantare, com la chitarra in mano, lasciatemi cantare, sono l`italiano…
- Eh pá! O Toto Cutugno! Elas é que gostam disto. Ainda outro dia, no Baile de Finalistas do Liceu, a dançar com a Amélia, até pingava o teto, uma maravilha!
- Só dizes asneiras. A Amélia não é para o teu bico. Merece melhor…
- É para o teu, queres ver? Já cá canta.
Não gostei do que ouvi mas não valorizei, o Berto não passava dum bazofias.
No embalo do Toto Cutugno, lá metemos conversa com as duas raparigas. A Rosa e a Adélia. Eram de Rossas e tinham faltado às aulas para irem à Feira das Cantarinhas.
- Calha bem, nós também!
Repentinamente entusiasmado, o Berto insinuava-se. O Toto das colunas insistia que o deixassem cantar.
- Canta para aí italiano dum raio, ninguém te tapa a boca!
Riram todos e seguiram Av. João da Cruz abaixo. O Berto com a Rosa, mais desinibida e eu com a Adélia, envergonhada, sem dizer nada. De repente, lembrei-me do Serafim. Ao longe, ainda o avistei na barraca das farturas. Vivia oprimido pelo pai que queria que ele fosse médico, seguisse a tradição familiar há várias gerações. Ele não queria, detestava. A atenção dele virava-se toda para os desenhos que fazia no decorrer das aulas. Vivia angustiado pelas boas notas que era obrigado a tirar… Aliviava-se na comida, isolando-se.
Lá seguimos entre alguidares e ferragachos de cobre, alfaias para amanhar a terra, flores e outras plantas, toalhas, roupas e brinquedos. Não faltavam os tremoços da Celeste e o Sr. Leal a vender sorvetes ao pé do Florida. A Rua Direita cheia de couves, cebolo e tomates para plantar. Na Praça da Sé, um vendedor da banha da cobra, vendia um apetrecho para espremer o sumo das laranjas. Espetava aquilo nas laranjas e nunca mais parava de sair sumo. Depois da demonstração era um ver se te avias a despachar a engenhoca, notas de vinte, de cinquenta e até de cem escudos. Um regalo! Também na Praça da Sé, junto à Casa dos Acessórios, havia um homenzinho que gravava o nome das pessoas em copos. Encostado ao Pelourinho, um velhote gritava:
- Olha o Seringador, o verdadeiro! Comprem, comprem. Navalhas e chocalhos, comprem, comprem!
Em redor, havia um pouco de tudo. As Cantarinhas de Pinela já tinham acabado, só havia das outras, mais industriais que parece que vinham de Barcelos. Havia também os Pretinhos fálicos, com a protuberância rosada que fazia corar as raparigas. E havia aqueles pucarinhos que se enchiam de água e imitavam o som dos passarinhos. E havia cães de louça que parece que seguiam a gente com o olhar. E havia tudo. Havia sobretudo muita gente que nesse dia abalava das aldeias rumo à cidade. As autoridades vigilantes aos amigos do alheio que se aproveitavam dos mais incautos. E havia os comerciantes que se zangavam porque os feirantes lhes tapavam as montras. E havia os fiscais de blocos na mão…
Pelo caminho, perdemos as raparigas. Tinham ficado na barraca dos ciganos a ver cuecas. Com o entusiasmo, nem demos por elas.
As ruas estavam cheias de gente, subimos a Almirante Reis a custo. No largo dos Correios encontramos o Serafim sentado num banco, comia as primeiras cerejas do ano, entrançadas numa varinha.
- Ainda estão verdes, não prestam - reclamou o Berto.
- Não comas, ninguém te ofereceu - atirou de imediato o Serafim. - E devíamos voltar para a escola, já é hora. O Soneca já deu pela nossa falta.
Os amigos concordaram:
- Já deu e já chamou o Cabeças. Duns calduços do Eng.º Veigas, não nos livramos.
Ao contrário da vinda, os passos eram agora lentos. Os degraus foram pisados um por um, com paragens pelo meio, suspirando, adivinhando as mãos ásperas do diretor a puxar-lhes as orelhas e sabe-se lá que mais. O Berto ainda quis fumar um cigarro mas não tinha lume. O Serafim ainda papou uns rebuçados. Eu, eu já estava farto da situação. Peguei nas pernas e fui direitinho ao gabinete do diretor. Bati à porta e pedi licença.
- Entra! - Resmungou o Sr. Eng.º Veigas, que não gostava de ser incomodado.
Enchi-me de coragem e lá fui dizendo que a culpa era minha, tinha sido eu a desafiá-los. Ao Berto chamara-lhe cagão e ao Serafim falei-lhe das farturas. Assim tinha sido. Depois de algum silêncio, demasiado silencioso, ouviram-se estaladas que ecoavam pelos corredores do bloco C. Doeram. O Serafim chorava e o Berto estava capaz de subir ao gabinete para socorrer o amigo.
- Deixa! Não te metas. - era o Cabeças que segurava o Berto.  - O vosso amigo é dos valentes. Eu trato dele, ide para a aula.
E foram. Cabisbaixos percorreram o corredor interminável do Bloco C.
Nas paredes, o Acácio amava a Soraia e um coração flechado unia os amores do Serafim com a Rosa. O Sonecas disse que a aula terminara. Os alunos saíram direitinhos. O Sr. Eng.º Veigas, incomodara-se mas continuara a ler decretos e a assinar papeis. E o Cabeças…lamentava a sua sorte mas no fundo sabia que não era homem para reprimir os seus lafraus. Afinal de contas, tinha sido um bom gandim e os pardais querem-se a voar.


Rui Machado

sábado, 12 de março de 2016

Pelo risco de Viana de Lima - Escolas Primárias - Bragança

Escolas Primárias

1960 – Escolas Primárias das Beatas e Toural





No âmbito do programa das Comemorações do V Centenário da Cidade de Bragança, em conformidade com a solicitação da Direção de Obras e Edifícios Escolares, desenvolveu-se o programa de alfabetização do Concelho. Para o efeito, promoveu-se a construção de mais de meia centena de escolas, duas das quais nas zonas do Toural e Beatas, com o risco do arquiteto Viana de Lima.



Escola Primária do Toural - Bragança

Escola Primária do Toural


Escola Primária do Toural



Escola Primária das Beatas - Bragança


Escola Primária das Beatas

Escola Primária das Beatas


Pelo risco de Viana de Lima - Habitação - Bragança


Habitação

Viana de Lima produz, no início dos anos 60, obra com notórias influências regionais na cidade de Bragança, influências essas presentes nas moradias em banda do Bairro Novo do Toural. Nas vivendas unifamiliares geminadas do Bairro do Toural (atual Rua Dr. Adrião Amado, Bragança), saliente-se o desenho das coberturas inclinadas em telha de grande qualidade expressiva e a presença de alguns volumes que constroem um ritmo arquitetónico referenciado na imagem dos magníficos mirantes da cidade antiga, mantendo nesta obra sinais inequívocos de uma linguagem claramente afirmativa da modernidade nos pormenores construtivos das entradas e nas portadas de correr exteriores. No projeto do Bairro do Toural, Viana de Lima faz uma síntese entre o moderno e o tradicional, numa atitude perfeitamente urbana que não deixa de ser influenciada pela arquitetura tradicional da região. 

Vivenda unifamiliar no Bairro do Toural - Bragança








Bairro da Previdência








Pelo risco de Viana de Lima - Complexo Hospitalar - Bragança


Hospital de Bragança

(fotografias de março de 2016)

Início de construção 1957

Inauguração 1973


Os primeiros estudos para o Hospital Regional de Bragança, datam de 1948, ano em que se conjeturaram novas direções no 1.º Congresso Nacional da Arquitetura, e se inicia a publicação da tradução da Carta de Atenas na revista Arquitectus. O projeto recomeça em 1960, mantendo a ideia inicial de uma adesão convicta à importação de modelos e valores do Estilo Internacional. A modernidade que, desde logo, o edifício convoca, remete de imediato para uma inferência corbusiana, expressa na volumetria geral do edifício, no controle da luminosidade, explorando a variação dos efeitos de sombra sobre a fachada através da solução de uma grelha laminar de betão, na aplicação dos novos métodos de construção, norteando a arquitetura entre quatro valores gerais – “Ambiente, gosto, espírito e engenho.” Orientação que visava, igualmente, um projeto crítico de ordem ideológica, sonhando como “ a única forma de dar aos homens, alegria e otimismo, e às cidades, vilas e aldeias a forma radiosa proposta na Carta de Atenas.” – Viana de Lima, 1948
Do complexo Hospitalar na cidade de Bragança destacam-se: Hospital, Casa Mortuária, Anatomia Patológica, Hospital de Dia, Dispensário de Higiene Mental, Lar e Escola de Enfermagem.
Segundo informação disponibilizada pela Direção-Geral do Património Cultural na sua página de internet, o imóvel não tem qualquer classificação e como consequência não tem proteção legal. O procedimento do processo de classificação do Hospital de Bragança iniciado em 2007, caducou. A pretensão inseria-se no âmbito do Projeto de Classificação do Património Arquitetónico Português do Século XX levado a cabo pelo Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR) e contemplava o Hospital Regional e Centro de Saúde Mental.








































Outros Edifícios do Complexo Hospitalar

Escola de Enfermagem (atual Escola Superior de Saúde - IPB)


Pormenor da entrada da Escola Superior de Saúde

Escola Superior de Saúde

"Dispensário de Saúde Mental"

"Dispensário de Saúde Mental"




A arquitetura de Viana de Lima em Bragança

1 - O legado do Arquiteto Viana de Lima

“ É possível afirmar que uma boa parte dos aglomerados portugueses possuem uma individualidade, que sem ser extraordinária, é bela na sua simplicidade, Bragança é um destes casos: cabeça de uma região cheia de pequenos núcleos que se agarram à terra com a poderosa força dos liquens, ela própria é, em substância e em expressão, como um deles, só muito maior. – Viana de Lima” (1)
A obra de Alfredo Evangelista Viana de Lima é incontornável na arquitetura Moderna em Portugal. Em junho de 2011, Luís Ferreira Rodrigues, arquiteto Bragançano, na evocação da Exposição de 1951 e dos 60 anos da ODAM (Organização dos Arquitetos Modernos), apresenta-nos Viana de Lima: (2)
“ De entre os 36 arquitetos e estudantes de arquitetura que integraram a ODAM, sobressai a figura e personalidade e a obra de Alfredo Viana de Lima (1913-1991), que contrastava uma postura reservada e de contido protagonismo com um vibrante entusiasmo pela arquitetura e ideais do Movimento Moderno, e em especial pela obra de Le Corbusier, as suas ideias progressistas, e a promoção das potencialidades da técnica e dos novos materiais.”
Por alturas da Exposição sobre a Arquitetura de Viana de Lima em Bragança, em março de 2005, foi possível aprofundar o conhecimento sobre o “Arquiteto de Vanguarda”: (3)
“O Senhor do Movimento Moderno, o Arquitecto de Vanguarda como o intitulam, encontra--se ligado à Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais entre os anos de 1938 e 1941. Vêmo-lo percorrendo vários países com o simples objetivo, de melhor compreender os problemas existentes na Arquitetura e no Urbanismo. Dos países visitados contam-se a Bélgica, o Brasil, a Espanha, a França, a Holanda, a Inglaterra, a Jugoslávia, a Itália, a Suécia e a Suíça. Em 1948 com a idade de 35 anos apresenta ao I Congresso Nacional de Arquitetura em Lisboa, a tese sobre «O Problema Português da Habitação.» Viana de Lima defende como instrumento técnico a utilização da Carta de Atenas, elaborada nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM) com Le Corbusier.”
Viana de Lima é consensualmente reconhecido em Portugal como um expoente da Arquitetura Moderna, um dos poucos que nunca se encontrou com ajustes contemporizadores de linguagem e cuja produção conhecida é desde o início ao fim da carreira uma límpida sequência de obras sem compromisso. A partir dos anos 60, dedicar-se-á a importantes tarefas de levantamento e reabilitação de imóveis históricos e planeamento de antigas zonas urbanas. Graças ao trabalho desenvolvido, inicia uma carreira de consultor internacional da UNESCO que o indica para um plano a desenvolver sobre a cidade histórica de Ouro Preto no Brasil. Este caminho profissional surge na sequência do trabalho desenvolvido na cidade de Bragança, 1961, com a elaboração do Plano Parcial de Urbanização compreendido entre o Lugar das Beatas e o Governo Civil. Este Estudo foi o passaporte de entrada do arquiteto português na área da preservação do Património em várias cidades do Brasil. Entre os anos de 1968 e 1977 foi por diversas vezes ao Brasil como consultor da UNESCO, com o objetivo de estudar o Plano Diretor da cidade mineira de Ouro Preto, ameaçada de corrosão, sendo esta considerada património histórico e artístico do Brasil. Fez estudos e projetos ao nível da preservação, revitalização e expansão de várias cidades históricas tais como: S. Luís e Alcântara no Estado do Maranhão, Laranjeiras, S. Cristóvão e outras. (4)

Figura 1 - Cidade de Ouro Preto, Brasil

Figura 2 - Viana de Lima em Ouro Preto em 1972


Figura 3
Eng.º Adriano Augusto Pires
Presidente da Câmara Municipal de Bragança de 1954 a 1967




Foi na gestão camarária do Eng.º Adriano Augusto Pires, entre os anos de 1954 e 1967, que na reunião de câmara de 15 de julho de 1960 se autorizou o Presidente da Câmara Municipal de Bragança a outorgar o contrato de prestação de serviços com o arquiteto Viana de Lima para a elaboração do plano regulador do desenvolvimento urbano da cidade de Bragança. Viana de Lima estabeleceu um contrato com a Câmara Municipal de Bragança como consultor urbanista, elaborando o Plano Regulador da cidade, com o limite de 295 hectares. O Plano seria organizado em quatro vetores: vias, parte velha, centro cívico e expansão. O Plano aplicava os princípios modernos defendidos por Viana de lima: separação de vias; habitações em bloco; implantação segundo a melhor exposição solar; espaços livres abundantes; preservação da unidade arquitetónica da parte velha da cidade e criação de novos equipamentos de apoio à habitação. 
No seu planeamento, Viana de Lima, introduz alterações na área de intervenção procurando compatibilizar novos e antigos elementos. Sobre esta matéria, vejamos a análise de Eduardo Fernandes (5), complementando as descrições de Fátima Fernandes e outros na obra Mapa da Arquitetura de Bragança: (6)
Viana de Lima produz, no início dos anos 60, obra com notórias influências regionais na cidade de Bragança, influências essas presentes nas moradias em banda do Bairro Novo do Toural e na respetiva escola primária. Nas vivendas unifamiliares geminadas do Bairro do Toural (atual Rua Dr. Adrião Amado, Bragança), saliente-se o desenho das coberturas inclinadas em telha de grande qualidade expressiva e a presença de alguns volumes que constroem um ritmo arquitetónico referenciado na imagem dos magníficos mirantes da cidade antiga, mantendo nesta obra sinais inequívocos de uma linguagem claramente afirmativa da modernidade nos pormenores construtivos das entradas e nas portadas de correr exteriores. No projeto do Bairro do Toural, Viana de Lima faz uma síntese entre o moderno e o tradicional, numa atitude perfeitamente urbana que não deixa de ser influenciada pela arquitetura tradicional da região.
Na pesquisa efetuada sobre o legado de Viana de Lima na cidade de Bragança, agora nos finais dos anos 60 e início da década de 70, deparamo-nos com a tese de Daniela de Almeida Rebelo: Bragança, Transformações Urbanas de uma cidade, cuja leitura permite-nos conhecer mais um pouco o trabalho desenvolvido por Viana de Lima: (7)
Ainda na década de 60, princípios da década de 70, surge uma nova figura associada ao Planeamento da Cidade de Bragança, o Arquiteto Viana de Lima. Substituindo o Arquiteto Januário Godinho na qualidade de urbanista, vai inserir uma nova conceção estética e funcional na cidade, o que implica uma nova revisão do Plano de Urbanização. Como tentativa de dar resposta às muitas necessidades emergentes da urbe, existe referência a uma grande produção de Planos Parcelares, por parte deste arquiteto. Ao contrário do seu antecessor, conhece-se a tradução gráfica das suas intenções para a cidade. Nem todos os projetos foram realizados e a maioria representava novos bairros. Entre os concretizados destacam-se: o Bairro da Estacada, o Bairro São João de Brito e ainda, o Bairro da Previdência. Nesta fase também é da sua autoria a requalificação do Hospital caraterizado pelo significativo acrescento da fachada sul. Documentos como a correspondência entre o arquiteto e a Câmara, são claros indicadores de um acompanhamento regular e interessado da evolução da cidade.
Nos finais da década de 60 e início da de 70, a cidade cresceu, nem sempre respeitando um ordenamento adequado. Surgiram alguns bairros clandestinos, sem suporte urbanístico ordenador. Mais uma vez, Viana de Lima intervém no planeamento urbanístico da cidade no sentido de ordenar o território da cidade. Para debelar este problema, em 1971, o Arquitecto Viana de Lima propõe à Câmara Municipal de Bragança um Plano Piloto que terá como consequência a revisão do Projeto de Urbanização da década de 60. A situação alterou-se, apenas se mantiveram válidas as diretrizes referentes ao esquema viário fundamental. Este novo plano foi aceite, forçosamente, pela necessidade de requalificar e regulamentar a expansão da cidade que estava a surgir.

Figura 4
Pormenor de construção de obras incluídas no Plano de Expansão
 (Bairro da Previdência)

Figura 5
Pormenor de construção de obras incluídas no Plano de Expansão

 (Bairro da Previdência)

2 - Décadas de 60 e 70: a marca indelével de Viana Lima

Elencam-se agora as obras projetadas por Viana de Lima na cidade de Bragança:

1957 – Complexo Hospitalar de Bragança
Os primeiros estudos para o Hospital Regional de Bragança, datam de 1948, ano em que se conjeturaram novas direções no 1.º Congresso Nacional da Arquitetura, e se inicia a publicação da tradução da Carta de Atenas na revista Arquitectus. O projeto recomeça em 1960, mantendo a ideia inicial de uma aderência convicta à importação de modelos e valores do Estilo Internacional. A modernidade que, desde logo, o edifício convoca, remete de imediato para uma inferência corbusiana, expressa na volumetria geral do edifício, no controle da luminosidade, explorando a variação dos efeitos de sombra sobre a fachada através da solução de uma grelha laminar de betão, na aplicação dos novos métodos de construção, norteando a arquitetura entre quatro valores gerais – “Ambiente, gosto, espírito e engenho.” Orientação que visava, igualmente, um projeto crítico de ordem ideológica, sonhando como “ a única forma de dar aos homens, alegria e otimismo, e às cidades, vilas e aldeias a forma radiosa proposta na Carta de Atenas.” – Viana de Lima, 1948 (8)
Do complexo Hospitalar na cidade de Bragança destacam-se: Hospital, Casa Mortuária, Anatomia Patológica, Hospital de Dia, Dispensário de Higiene Mental, Lar e Escola de Enfermagem.
Segundo informação disponibilizada pela Direção-Geral do Património Cultural na sua página de internet, o imóvel não tem qualquer classificação e como consequência não tem proteção legal. O procedimento do processo de classificação do Hospital de Bragança iniciado em 2007, caducou. A pretensão inseria-se no âmbito do Projeto de Classificação do Património Arquitetónico Português do Século XX levado a cabo pelo Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR) e contemplava o Hospital Regional e Centro de Saúde Mental.

Figura 6
Construção do Hospital (início de 1970) 
Figura 7
Vista Geral da Fachada do Hospital de Bragança

Figura 8
Vista parcial da Fachada do Hospital de Bragança

1960 – Escolas Primárias das Beatas e Toural
No âmbito do programa das Comemorações do V Centenário da Cidade de Bragança, em conformidade com a solicitação da Direção de Obras e Edifícios Escolares, desenvolveu-se o programa de alfabetização do Concelho. Para o efeito, promoveu-se a construção de mais de meia centena de escolas, duas das quais nas zonas do Toural e Beatas, com o risco do arquiteto Viana de Lima;

Figura 10 - Escola Primária das Beatas
Figura 9 - Escola Primária do Toural




















1960 – Bairro Novo do Toural;
1960 – Parque de Campismo de Bragança;
1963 – Edifício Multiusos, Bragança;
1964 - Edifício do Montepio Geral que inclui: agência bancária, o Cineteatro, estalagem e café-restaurante.

Figura 11 - Edifício do Montepio Geral
Figura 12 - Edifício do Montepio Geral






















1969 – Arranjo urbanístico e loteamentos de S. Sebastião e Estacada;
1970 – Bairros de S. João de Brito e Previdência.

3 – Valorizar a obra de Viana de Lima na cidade de Bragança

É impreterível reconhecer a importância da obra do Arquiteto Viana de Lima no planeamento urbanístico da Cidade de Bragança. À época vivia-se um regime político pouco dado a liberdades artísticas e culturais, limitações óbvias que não impediram o Arquiteto de Vanguarda de trabalhar em prol da preservação do tradicional com valor arquitetónico e ao mesmo tempo planear um ordenamento do território numa fase da nossa história local que poderia ter cedido a impulsos de construção desordenada. Louve-se também, porventura ainda mais, a vontade e força política do antigo Presidente da Câmara Municipal de Bragança entre os anos de 1954 e 1967, Eng.º Adriano Augusto Pires. A visão, arte e engenho nada são sem a força da vontade, do querer e do poder.
A obra de Viana de Lima em Bragança levou a Arquitetura Portuguesa para outros continentes. O exemplo brigantino foi o passaporte para intervenções de grande importância arquitetónica ao realizar projetos de restauro de património antigo português nas ex - colónias como Malaca na Malásia (intervenção na Porta de Santiago, último vestígio da Fortaleza de Afonso de Albuquerque) e, Arzila em Marrocos (reconstrução da Torre de Menagem da Fortaleza). A questão não é de somenos, merece reflexão. Bragança, pelo risco de Viana de Lima, terá sido o tubo de ensaio, o exemplo de preservação histórica e planeamento urbanístico para difundir noutras paragens da Portugalidade.
O incêndio que destruiu o Cineteatro Torralta, serviu para alertar os brigantinos da necessidade de cuidar melhor da nossa cidade. A tarefa não se limita só ao poder político. Cabe também ao cidadão estar na posse dos valores de cidadania que não pode ser só uma palavra de circunstância.
O poder político, com maior ou menor empenho, homenageou Viana de Lima:
- Na toponímia da cidade, existe a Rua Arquiteto Viana de Lima;
- Por iniciativa da Câmara Municipal de Bragança, em 2005, organizou-se uma Exposição sobre a vida e obra de Viana de Lima;
- No mandato camarário do Eng.º Jorge Nunes, instituiu-se o Prémio Municipal de Arquitetura “Viana de Lima” com periodicidade bianual;
- Nos discursos políticos locais, evoca-se o “ Mestre da Arquitetura”…
Muito honestamente, na minha modestíssima opinião, a Cidade de Bragança deve um reconhecimento à memória de Viana de Lima. Mais do que um reconhecimento, o seu legado deve ser preservado, evocado e manter-se como paradigma duma realidade de interior que como se tentou demonstrar, pode servir de exemplo para outros territórios.

Rui Machado

Fontes consultadas para a elaboração deste artigo:(1) – Internet, página do Município de Bragança em http://www.cm-braganca.pt/ ;
(2) - ODAM, 60 anos depois, Evocação da Exposição de 1951, Ateneu Comercial do Porto, junho de 2011, Porto;
(3) - Internet, página do Município de Bragança em http://www.cm-braganca.pt/ ;
(4) - Ver Campos Opostos: trabalhos e viagens de Viana de Lima ao Brasil, estudo apresentado por Tânia Beisl Ramos e Madalena Cunha Matos (Faculdade de Arquitetura da UTL) na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Brasil;
(5) - Ver Eduardo Jorge Cabral dos Santos Fernandes, Tese de Doutoramento, A Escolha do Porto: contributos para a actualização de uma ideia de escola, julho de 2010, Escola de Arquitetura da Universidade do Minho;
(6) - Fátima Fernandes, Michele Cannatá, Gonçalo Cabral Campelo, Mapa de Arquitectura de Bragança, Ordem dos Arquitectos / Argumentum, 2004;
(7) - Daniela de Almeida Rebelo, Bragança, Transformações Urbanas de uma cidade, Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Arquitetura, outubro de 2008;
(8) - Internet, Nota histórico-artística por Rute Figueiredo, página da Direção-Geral do Património Cultural, 2001 em

http://www.patrimoniocultural.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/328667#images

Figuras :
1 - Internet, http://innholder.blogspot.pt/
2 - Internet, http://www.repositorio.fjp.mg.gov.br/handle/123456789/327
       3 - Internet, página do Município de Bragança em http://www.cm-braganca.pt/
       4, 5 e 6 - Arquivo Pessoal de Lídio Correia
       7 e 8 - Internet, página da Direção-Geral do Património Cultural,
       http://www.patrimoniocultural.pt/
       9,10,11 e 12 - Rui Machado

domingo, 6 de março de 2016

Adeus Torralta!


Há dias que começam mal. Hoje foi um desses dias. Logo de manhã soube do triste destino do Cine Teatro Torralta. Mal imaginava eu que as sirenes que ouvi pela meia-noite e meia eram o socorro àquela que durante muitos anos foi a sala de estar da Cidade de Bragança. As chamas consumiram o Cine Teatro Torralta. As chamas consumiram grande parte das minhas memórias de infância e juventude. A memória física está hoje feita em cinzas, talvez por isso esta necessidade de escrever que senti mal soube da triste notícia.
Esta é uma crónica muito pessoal embora acredite também que hoje seja um dia triste para todos nós. Em Janeiro do presente ano, num texto que aqui publiquei, escrevi:

“ Mais tarde, em 76, um pouco mais crescido, o menino participava no fim do comício no Cine Teatro Torralta. Em pleno palco, o menino agitava uma enorme bandeira com umas letras enormes que ela aprendera há pouco lá na escola da Estacada: EANES.” – Correio Transmontano, 15/1/2016

Esta é só uma memória. Outras, tantas, muitas mais:

A Festas de Natal ou de Fim de Ano das escolas em que todos participamos;
Os concertos dos Melotroup ou dos Arte & Ofício;
As melodias do Sérgio Godinho ou da Mafalda Veiga;
A memória daqueles que tentaram preservar a tradição académica do 1.º de Dezembro como Fernando Pais, Carlos Genésio ou a minha própria mãe, Celeste da Cruz Machado. Confesso que recordo com saudade as encenações teatrais desse tempo ( a minha mãe chamava-lhe “Carlotadas”…);
O episódio contado pelo Sr. Vasconcelos: Dois amigos saíam do cinema depois duma fita de ação e franca pancadaria. Um deles pergunta a outro:
- Gostaste do filme?
Responde o amigo:
- O argumento não era lá grande coisa mas o desempenho foi do melhor que tenho visto;
O arrepio causado pelos grandes épicos que por ali assisti como Quo Vadis, Ben-Hur ou Spartacus e os cagaços que apanhei ao ver estes filmes e de como me aninhava nas confortáveis cadeiras, cor de mel, e desejava que as metragens não fossem assim tão longas;
Recordar com bonomia os escândalos causados numa sociedade conservadora nas estreias de “ A Última Tentação de Cristo “ de Martin Scorsese ou “ A Paixão de Cristo “ de Mel Gibson. Continuar corado ao recordar o falso moralismo duma sociedade hipócrita quando assistiu ao “ Império dos Sentidos “ do japonês Nagisa Oshima;
Podia ainda lembrar as sessões de sexta feira, mais baratas, quando toda a sociedade jovem de Bragança assistiu a muitos golpes do Bruce Lee e do Chuck Norris. Ou quando, envergonhados e entre risos nervosos, vimos no grande ecrã os seios da Sónia Braga;
Como posso não lembrar os momentos “ Cinema Paraíso”? Quando se apagavam as luzes e aos primeiros frames do genérico do leão a rugir, alguém, sempre dizia: Já vi este filme! Ou quando um de nós, no meio do silêncio do início da sessão perguntava:
- Zé Lima, estás cá?
- “Houla”! Cá em cima, no Balcão;
Os intervalos onde toda a sociedade Brigantina se cumprimentava;
E as escadinhas que se desciam para ir ao WC;
E o Parente que recebia os bilhetes à entrada;
E os cartazes que anunciavam as fitas e que nós, admirávamos ao sair das secundárias;
E os beijos que nos distraíram de tantas cenas;
E a primeira vez que levei o meu filho ao Cinema para ver o “Nemo”…

Tudo desfeito em cinzas na madrugada de hoje.

Termino com um pedido. Hernâni, as palavras que se seguem são para ti. Tu que és um dos nossos. Estou certo que também tu viveste muitas das situações que hoje recordei. E é por isso que te peço que faças deste triste episódio um marco da tua gestão autárquica. Sê tu o pivô duma solução que envolva quem tenha de envolver. Podia falar da Fénix renascida ou do dizer popular “ que há males que vêm por bem” mas não me apetece perder-me em palavras fúteis.
Faz-nos um favor. Devolve-nos o Cine Teatro Torralta!

Cine Teatro Torralta (créditos Nuno Miguel Fernandes)

https://vimeo.com/164494900

sexta-feira, 4 de março de 2016

Amanhã, volto lá!


Desço a rua íngreme amparado nas paredes e nos poucos carros estacionados ao longo do percurso. Descer, ainda consigo, parando aqui e ali, sentando-me a cada passo nos degraus das portas dos velhos prédios consumidos pelo tempo. Para subir a rua, faço outro percurso, mais distante mas mais plano. Perco-me muitas vezes nas ruas da cidade que já não é minha. Tudo me parece estranho. Olho para os rostos desconhecidos com vozes desencontradas com as minhas memórias. Onde estão os meus semelhantes? Ia jurar que naquela casa, ali defronte, vivia o Marcelo, o meu irmão mais velho. No outro dia bati-lhe à porta. Ninguém atendeu. O batente sofrido de tanto fustigar o castanho da porta, adormeceu-me a mão. Alguém gritou:
- Raça do homem, já não mora aí ninguém, todos os dias isto, melhor era que te internassem. Vai embora e não atormentes os vivos.
Indiferente, cego dos ouvidos, surdo dos olhos, nada percebia. As janelas fechadas. Onde estavam todos? A própria mãe que nunca saía de casa…
- Mãe! Mãe! Tenho sede, abre a porta. Nem a porta se abria nem o rosto se assomava à janela com aquele ar sereno que tanto me tranquilizava. E eu com tanta sede. E fome. E frio. E solidão. E os demónios que me atormentam este viver. E as sombras que me seguem para todo o lado, ora atrás, ora à frente, de lado, de todos os lados…
Já nem o Berto aparecia. Ele que estava sempre na rua:
- Não vou para casa, está tudo em pantanas, o meu pai entornou-se outra vez.
O Berto. A vida que tinha sido madrasta na infância, dotou-o de um pé esquerdo com mais destreza que muitas mãos direitas. Fazia maravilhas lá longe, estádios ululantes de gente. Um Natal, no mês de março… espera, não pode ter sido em março, talvez em maio…não sei dizer, o Berto aparecera num carro enorme, todo bem vestido, com uma mulher toda cromada e cintilante. Estava eu a fumar um mata ratos que apanhara nas friestas da calçada e vi-o chegar. Ele parou, saiu do carro e perdeu alguns minutos a olhar em volta. Dentro do carro, a mulher impaciente, ruidosa, lamentava a vinda:
- Eu nem o conhecia…
- Acho que nem eu. Disse o Berto. Era meu pai. Bom ou mau, era meu pai.
A loira reciclada, não desarmava:
- Um pai que te moía de pancada. E o que fez à pobre da tua mãe… Eu nem saio do carro.
Era verdade, consumido pelo vinho de tostão, martelado, o pai do Berto fora sempre um traste. Mãe desgraçada aquela! Morreu de tanta ralação, de tanta pancada. Na funerária, informaram o Berto de que não tinha sido fácil disfarçar as marcas do ódio e da brutalidade do pai:
- O que for preciso. Façam o necessário…
Mas hoje era o pai que ia a enterrar. Dividido, o Berto despedia-se dum passado de pobreza e de ausência de tanta coisa… Antes de entrar na Igreja da Misericórdia, o Berto olhou para mim, reconheceu-me:
- Estás bem? Não tens bom ar. Toma este sobretudo, faz-te mais falta do que a mim.
Olhamo-nos por breves instantes. Em silêncio, dissemos tudo. Lembramos por exemplo quando corríamos as ruas à procura de paus de gelado usados, que depois trocávamos por um, de gelo e groselha, na taberna da Costa. Vinte paus usados por um gelado de gelo. Ou quando íamos para a janela do Queiroz à espera que ele nos mandasse chocolates espanhóis. Às vezes corria mal:
- Quereis mais meus lindos?
- Queremos Sr. Queiroz.
- Comei m…
Mais tarde, vi sair o carro fúnebre. Só o Berto acompanhava o pai à última morada. Mais ninguém quis testemunhar esse adeus.
Perdido. Mais uma vez. Não sei o caminho.
- Boas Américo! (Américo? Mas quem é o Américo?) Vira ali à direita e depois segue em frente que vais lá dar. (Mas para onde me mandam?) Anda, vai lá. Não tens de lá ir todos os dias. Deixa-te estar ao quente em casa.
Porque me falam, não os conheço. Virar à direita… é esta, é a mão com que escrevo. Por aqui. Agora em frente. Em frente é pelo meio das duas mãos, não é?
- Américo, espera, eu levo-te lá. Já falta pouco.
Agarrado pelo braço, Américo, eu, conduzido pelo passo certeiro da irmã Fortuna. A religiosa aparecia sempre nas horas más, levando-o lá, ali mesmo.
- Entra Américo, a tua mulher já perguntou por ti. Que bonita flor lhe trazes! Olha, à saída, não te esqueças de levar a marmita. Traz as que tens lá em casa.
Todos os dias. No quarto dela. Sem palavras. Durante uma hora. Certinha. Às vezes pego-lhe na mão, palpo-lhe o pulso para lhe sentir o sangue correr. Corre. Não tanto como naquele primeiro dia que lhe roubei um beijo e muito menos do que quando nos encontramos, furtivos, entregando-nos um ao outro num lençol feito de epidermes. Mas ela não reagia. De olhar fixo no teto, não reagia. Impávida, serena e aos meus olhos, bela como no dia que a conheci na escola primária. Depois, venho-me embora. Antes de sair do quarto, digo-lhe as únicas palavras de todos os dias:
- Amanhã, volto!
Ao final da tarde, já em casa, o gordo da televisão grita e toda a gente se ri.
Menos eu, o Américo.
A casa cheira a velho.
O Américo, eu, cheiro a velho.
Mas não posso morrer. Só depois dela ou um bocadinho antes dela ou com ela.
Na cozinha, as marmitas da Misericórdia amontoam-se. Muitas delas por abrir. Antes de adormecer no sofá, na estranheza das ideias, uma organiza-se, lucidamente:

- Amanhã, volto lá!