Os degraus da escadaria da Escola da Cadela
desapareciam debaixo dos nossos pés. Para ser mais rápida a descida saltávamos
lanços de três ou quatro degraus. Conseguíamos todos, menos o Serafim:
- Despacha-te pote de grelos! O Cabeças ainda nos
apanha e lá se vai a festa.
O Cabeças era o contínuo que a esta hora, de
certeza, já tinha sido chamado e informado que estes três bardinos tinham fugido
da sala de aula. Aproveitamos quando o Sonecas, o professor do bigode
farfalhudo, o de Matemática, explicava uma equação no quadro preto. A matéria
não era fácil, a nossa vontade era pouca e o maldito do bigode tornava-lhe a
voz pastosa, quase impercetível. Ninguém o entendia. Quer dizer, o Fonseca
entendia, tinha de entender, caso contrário o pai dava-lhe com o cinto e
chamava-lhe inútil.
- Mas quais foram? - perguntou o Cabeças.
- Os do costume: O Berto, o Toni e o Serafim - retorquiu
o Sonecas.
-Olha esses! Acha que vale a pena a correria?
-Pergunte lá em cima.
Lá em cima era o Diretivo. Estava lá o Sr. Eng.º
Veigas, que não gostava de ser incomodado. Estava sempre a ler papeis, decretos
e a assinar folhas. O Cabeças já não estava para estas andanças, andar aos
mandiletes deste e daquele.
- Sorte de vida a minha, tivesse eu ido para a
Guarda e já estava reformado. Razão tinha o meu pai!
Enquanto subia as escadas que o levavam ao último
andar, resmungava com ele próprio. Chegado ao gabinete do Sr. Eng.º Veigas, que
não gostava de ser incomodado, o pobre do funcionário estava um caco. As
pernas? Bambas. As mãos? Trémulas. Suava em bica. A voz, embargada, pois já
sabia que vinha tempestade. Sempre que se interrompia o Sr. Eng.º Veigas, que
não gostava de ser incomodado, era um problema. O Eng.º era um homenzarrão,
metia respeito. Quando o distraíam dos seus afazeres, primeiro olhava muito
sério fitando os prevaricadores. Depois arregalava os olhos de tal maneira que
muita da canalha que lá entrava, ia seca mas saía molhada. De seguida, dependia
da ocorrência. Se o assunto fosse sério, endireitava as costas, adotava uma voz
grave e dava a ordem adequada, soletrando espaçadamente as palavras. Se a
questão fosse de lana-caprina, desatava num berreiro, perdigotando e
vociferando impropérios. O Cabeças ganhou coragem e bateu à porta:
- Sim?!
- Desculpe incomod…
- O que se passa? Não vê que estou ocupado?
- Desculpe Sr. Eng.º, foram três lafraus do 8.º C
que fugiram da aula de Matemática.
- Ai sim? Diga-me lá, sua real cavalgadura, o que
faz aí especado? Trate de os apanhar e traga-os aqui que eu cuido deles.
O Cabeças saiu do gabinete a dizer mal da vida e do
Sr. Eng.º Veigas, que não gostava de ser incomodado.
- Cavalgadura é o senhor seu pai porque o senhor
não passa de um asno encartado. Pensou mas não o disse. Era o dizes.
- Que vá ele atrás deles! E foi varrer o Bloco C
para desanuviar. Aproveitou e vingou-se nas contínuas do corredor:
- Toca a levantar esses rabos. O Ministério não vos
paga para fazer renda.
Voltando aos três fugitivos. Depois da fuga bem
sucedida dirigimo-nos para os carrinhos de choque. O Serafim, pote de grelos,
era o do dinheiro. O pai era médico, não lhe faltava nada.
- Anda, vai lá comprar fichas para nós. - sugeriu o
Berto.
- Deixa o rapaz, eu tenho aqui dinheiro.
Salvei-o mais uma vez. Valia-lhe sempre e ainda
mais quando os outros gozavam com o Serafim. Tinha pena dele. Ajudava-o nas
aulas de física, a de correr, não a das fórmulas, e escolhia-o sempre para a
minha equipa na altura da escolha dos parceiros. Ninguém queria o Serafim. Era
anafado e tinha pouco jeito para a bola. Ia para a baliza e ficava todo
contente.
Serafim não
quis andar, preferiu ir comprar farturas. O Berto e eu, metemo-nos num carrinho
vermelho e mal tocou a buzina, desatamos aos encontrões e espetanços.
- Olha ali, olha ali, àquelas duas - gritava o
Berto.
Eu conduzia, como mais velho, cabia-me a missão de
passar tangentes ao carro das duas raparigas, bem engraçadas, por sinal. A
experiência com o trator lá em Coelhoso, ajudava, não era bem a mesma coisa,
mas ajudava. Das colunas da instalação sonora, saía o êxito do vencedor do
Festival de São Remo: Lasciatemi Cantare, com la chitarra in mano, lasciatemi
cantare, sono l`italiano…
- Eh pá! O Toto Cutugno! Elas é que gostam disto.
Ainda outro dia, no Baile de Finalistas do Liceu, a dançar com a Amélia, até
pingava o teto, uma maravilha!
- Só dizes asneiras. A Amélia não é para o teu
bico. Merece melhor…
- É para o teu, queres ver? Já cá canta.
Não gostei do que ouvi mas não valorizei, o Berto
não passava dum bazofias.
No embalo do Toto Cutugno, lá metemos conversa com
as duas raparigas. A Rosa e a Adélia. Eram de Rossas e tinham faltado às aulas
para irem à Feira das Cantarinhas.
- Calha bem, nós também!
Repentinamente entusiasmado, o Berto insinuava-se.
O Toto das colunas insistia que o deixassem cantar.
- Canta para aí italiano dum raio, ninguém te tapa
a boca!
Riram todos e seguiram Av. João da Cruz abaixo. O
Berto com a Rosa, mais desinibida e eu com a Adélia, envergonhada, sem dizer nada.
De repente, lembrei-me do Serafim. Ao longe, ainda o avistei na barraca das
farturas. Vivia oprimido pelo pai que queria que ele fosse médico, seguisse a
tradição familiar há várias gerações. Ele não queria, detestava. A atenção dele
virava-se toda para os desenhos que fazia no decorrer das aulas. Vivia
angustiado pelas boas notas que era obrigado a tirar… Aliviava-se na comida,
isolando-se.
Lá seguimos entre alguidares e ferragachos de
cobre, alfaias para amanhar a terra, flores e outras plantas, toalhas, roupas e
brinquedos. Não faltavam os tremoços da Celeste e o Sr. Leal a vender sorvetes
ao pé do Florida. A Rua Direita cheia de couves, cebolo e tomates para plantar.
Na Praça da Sé, um vendedor da banha da cobra, vendia um apetrecho para
espremer o sumo das laranjas. Espetava aquilo nas laranjas e nunca mais parava
de sair sumo. Depois da demonstração era um ver se te avias a despachar a
engenhoca, notas de vinte, de cinquenta e até de cem escudos. Um regalo! Também
na Praça da Sé, junto à Casa dos Acessórios, havia um homenzinho que gravava o
nome das pessoas em copos. Encostado ao Pelourinho, um velhote gritava:
- Olha o Seringador, o verdadeiro! Comprem,
comprem. Navalhas e chocalhos, comprem, comprem!
Em redor, havia um pouco de tudo. As Cantarinhas de
Pinela já tinham acabado, só havia das outras, mais industriais que parece que
vinham de Barcelos. Havia também os Pretinhos fálicos, com a protuberância
rosada que fazia corar as raparigas. E havia aqueles pucarinhos que se enchiam
de água e imitavam o som dos passarinhos. E havia cães de louça que parece que
seguiam a gente com o olhar. E havia tudo. Havia sobretudo muita gente que
nesse dia abalava das aldeias rumo à cidade. As autoridades vigilantes aos
amigos do alheio que se aproveitavam dos mais incautos. E havia os comerciantes
que se zangavam porque os feirantes lhes tapavam as montras. E havia os fiscais
de blocos na mão…
Pelo caminho, perdemos as raparigas. Tinham ficado
na barraca dos ciganos a ver cuecas. Com o entusiasmo, nem demos por elas.
As ruas estavam cheias de gente, subimos a
Almirante Reis a custo. No largo dos Correios encontramos o Serafim sentado num
banco, comia as primeiras cerejas do ano, entrançadas numa varinha.
- Ainda estão verdes, não prestam - reclamou o
Berto.
- Não comas, ninguém te ofereceu - atirou de
imediato o Serafim. - E devíamos voltar para a escola, já é hora. O Soneca já
deu pela nossa falta.
Os amigos concordaram:
- Já deu e já chamou o Cabeças. Duns calduços do
Eng.º Veigas, não nos livramos.
Ao contrário da vinda, os passos eram agora lentos.
Os degraus foram pisados um por um, com paragens pelo meio, suspirando, adivinhando
as mãos ásperas do diretor a puxar-lhes as orelhas e sabe-se lá que mais. O
Berto ainda quis fumar um cigarro mas não tinha lume. O Serafim ainda papou uns
rebuçados. Eu, eu já estava farto da situação. Peguei nas pernas e fui
direitinho ao gabinete do diretor. Bati à porta e pedi licença.
- Entra! - Resmungou o Sr. Eng.º Veigas, que não
gostava de ser incomodado.
Enchi-me de coragem e lá fui dizendo que a culpa
era minha, tinha sido eu a desafiá-los. Ao Berto chamara-lhe cagão e ao Serafim
falei-lhe das farturas. Assim tinha sido. Depois de algum silêncio, demasiado
silencioso, ouviram-se estaladas que ecoavam pelos corredores do bloco C.
Doeram. O Serafim chorava e o Berto estava capaz de subir ao gabinete para
socorrer o amigo.
- Deixa! Não te metas. - era o Cabeças que segurava
o Berto. - O vosso amigo é dos valentes.
Eu trato dele, ide para a aula.
E foram. Cabisbaixos percorreram o corredor
interminável do Bloco C.
Nas paredes, o Acácio amava a Soraia e um coração
flechado unia os amores do Serafim com a Rosa. O Sonecas disse que a aula
terminara. Os alunos saíram direitinhos. O Sr. Eng.º Veigas, incomodara-se mas
continuara a ler decretos e a assinar papeis. E o Cabeças…lamentava a sua sorte
mas no fundo sabia que não era homem para reprimir os seus lafraus. Afinal de
contas, tinha sido um bom gandim e os pardais querem-se a voar.
Rui Machado