sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

“ PEDRAS ELOQUENTES DE SILÊNCIO – ADEUS! ” *



No passado fim de semana, comemoraram-se os 552 anos de Bragança Cidade. Resumir nas palavras que cabem nesta crónica o apreço que tenho pela terra de minha mãe, dos meus avós e dos meus filhos não seria tarefa fácil. Faltar-me-iam as palavras e o engenho, já o amor e o entusiasmo, sobrar-me-iam, e estes, por vezes, traem a prosa qualificada. Resolvi então ir à procura. Seguir o instinto e rebuscar nas memórias dos que aguarelaram a minha infância e juventude e me serviram de exemplo.

Os olhos, as mãos e os dedos levaram-me até à “ Evocação Histórica na Domus Municipalis “ proferida em 1964 pelo diretor do Boletim Amigos de Bragança, Dr. Eduardo Carvalho, na sessão inaugural do V Centenário da Cidade de Bragança. Nessa evocação, o ilustre orador, distinto professor do Liceu Nacional de Bragança, faz uma resenha histórica do aparecimento do povoado, dos seus primeiros habitantes, da localização estratégica para a defesa nacional, do apreço que gozava nos corações dos reis afonsinos, das posteriores indefinições de serventia e governo, da projeção que viria a ter séculos mais tarde formando “um bragancismo, um corpo moral que procurou fundir e ligar no mesmo destino a terra de Bragança e a Casa de Bragança, a que o futuro reservaria honras e glórias sem par” até à data de 20 de Fevereiro de 1464, quando se dá a elevação de Bragança a cidade como consequência de requerimento pelo Duque D. Fernando ao Rei D. Afonso V. Na parte final da evocação, o ilustre professor pede ajuda às pedras, elas que testemunharam a efeméride e outros acontecimentos que marcaram estes cinco séculos de cidadania. São estas palavras que orgulhosamente transcrevo. Não encontro melhor homenagem para a Cidade de Bragança, homenageando em simultâneo, um dos seus mais dignos estudiosos:
“ Talvez estas pedras veneráveis, que ora nos servem de abrigo, pudessem dizer-nos do entusiasmo de então. Neste ambiente secular, de tanta austeridade, apetece falar não com os homens mas com as pedras que foram testemunhas dos acontecimentos de antanho. Apetece gritar-lhes, acordá-las do longo sono em que mergulharam para lhes ouvir contar a sua história.
- Pedras que me ouvis, volvei os olhos para a noite dos séculos e segredai-nos que presenciastes ao ouvir as palavras de vosso alcaide, do vosso senado, quando os arautos vos trouxeram palavras de apreço e de justiça do rei que vos fez cidade, fazendo mercê ao seu duque e ao seu povo. Vós, que então apenas ouvíeis as palavras lamentosas do povo sobrecarregado pelo fardo dos tributos a pagar a seus senhores; Vós, que ouvistes os murmúrios do vosso povo contra a prepotência dos vossos governadores, quando desleais como João Afonso Pimentel ou vorazes como D. Duarte, o senhor que antecedeu os vossos duques; Vós, que ouvistes os queixumes do povo contra a usura que o manietava, Vós, pedras benditas, ouvistes também palavras de alegria quando a notícia faustosa vos chegou. Sinto-vos estremecer entregues à fúria dos tempos, à insânia das épocas. Acordais, porque a voz do povo, que em vós encontrava abrigo e alívio, ressoa hoje festivamente como um eco do que então ouvistes! Aqui estamos hoje também como então, para recordar, com o coração a vossos pés, a legenda antiga das vossas tradições medievais.
Pedras veneráveis, cada um dos vossos modilhões poderia talvez contar uma história, uma anedota esclarecedora, cada uma das vossas fenestrações, por onde a luz e o ar vos beijam, podia ter sido testemunha de tantos acontecimentos notáveis de que o vosso povo foi parte enérgica e decisiva.
Largos séculos ficastes ao abandono, depois de bárbaro gesto ter desfeiado a vossa traça primitiva. O desleixo, a incúria, a indiferença, deixaram-vos a descoberto, ao assalto das tempestades, das geadas e dos ventos. Lembro-me ainda de vós como amontoado inestético nas vossas preciosas ruínas.
Alma de lírio vos encontrou e, reconhecendo em vós a nobreza popular do vosso múnus, trouxe-vos de novo à vida, dando-vos as feições da juventude, rodeando-vos das atenções da Ciência que então vos chamou JÓIA ÚNICA com requintes de namorada. Na elegância recobrada das vossas linhas, aí vos ergueis hoje para receberdes festivamente os que em vós reconhecem o valor das vossas tradições municipais. Guardai por séculos sem fim o eco dos vossos anais para que – cem, duzentos, quinhentos anos mais tarde, possais repetir palavras de saudade aos que vierem ver-nos e interrogar sobre este então passado longínquo.
Então podereis dizer, ó pedras sagradas, que na era de 1964 se procurou reviver com dignidade essa outra já passada de 1464, não faltando aqui, pela primeira vez, e para vos honrar, o sangue daqueles que tu honraste, o descendente dos teus antigos Duques, Senhores e Reis, e os descendentes do povo que os fizeram grandes com a sua modéstia, monumento histórico e transcendente que aguardastes por largos séculos.
Adeus, pedras generosas, que as gerações futuras vos amem como nós vos amamos, berço modesto das nossas gentes, das nossas liberdades municipais, das nossas garantias e privilégios de Cidade.
PEDRAS ELOQUENTES DE SILÊNCIO – ADEUS! “

O ADEUS só poderia ser material. As palavras de Eduardo Carvalho e de tantos outros que amaram a nossa cidade ecoam por esses montes fora, testemunhadas pelas eternas pedras que, sobrepostas umas nas outras, constroem um amor sem fim.

Rui Machado


* Ver Eduardo Carvalho, Bragançanismo, Tentativas históricas e literárias, Bragança, Edição A Voz do Nordeste, 1995, pp. 52-57

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

A miséria das irmãs sexagenárias e o despesismo eurocrata


“ São três irmãs todas cegas de nascença, Maria, a mais velha, tem 69 anos. Conceição, 65, e Ana, 62. Vivem juntas desde sempre em Covas do Rio, S. Pedro do Sul, onde não têm mais familiares.” Jornal de Notícias, 12/2/2016

Ao ler a notícia no JN, a primeira reação foi de incredulidade por um excesso de zelo, cego, frio e calculista por parte duma instituição que tem na sua génese a proteção social a quem precisa. Pormenorizemos, façamos o enquadramento da notícia: A direção do Centro Social e Paroquial de S. Martinho das Moitas, instituição financiada pela Segurança Social, presta apoio a 36 utentes carenciados. Acontece que o protocolo de financiamento só prevê o apoio a trinta beneficiários. Pelo não cumprimento do estabelecido, o Centro Social foi multado em 3600€. A direção da IPSS defende-se com a necessidade de dar resposta aos utentes necessitados que lhe batem à porta. Na verdade, três dos beneficiários, são três irmãs cegas de nascença, sexagenárias a quem se fornecem refeições diárias e limpeza semanal. Vivem sozinhas desde 2005, ano do falecimento da mãe.

Concordando que os apoios do Estado são regulamentados e devidamente enquadrados, não consigo, melhor, não quero perceber como foi possível penalizar alguém que se limitou ajudar quem precisa de apoio como de pão para a boca, aliás, o apoio era o próprio pão. Mais absurdo se torna isto tudo porque o que aconteceu não acresceu à despesa, com o mesmo dinheiro, alimentavam-se mais seis utentes. Não podiam, só podiam dar resposta a trinta.

Sendo verdade que à guisa de apoios, engordamos alguns que mais não fazem do que movimentar tascas e emperrar tribunais; Que servimos o prato a muitos que podiam e deviam trabalhar para o precaver; Que potenciamos a preguiça nuns tantos, capazes de, pelo menos, procurarem trabalho, mostrando-se disponíveis para produzir algo em troca do apoio que recebem; Sim, o apoio social talvez tenha falhado ao subsidiar quem, precisando, se acomodou ao cheque mensal da Segurança Social. Mas será que ajudar três sexagenárias cegas, sozinhas e sem familiares, sem qualquer autonomia, é desperdício de dinheiros públicos? Não é meus senhores. Não pode ser! Para o raio que os parta, Regulamento e Protocolo! Mas não foi possível verificar a necessidade destes carenciados? Mas não foi possível ir ao terreno e verificar a precisão da manutenção do apoio? Foi mais fácil multar, cumprir o maldito Regulamento. Se bem conheço o funcionamento destas coisas, enquanto não estiver resolvida a questão da coima, as próximas transferências pecuniárias para o Centro Social estarão comprometidas assim como o auxílio a todos os beneficiários.

Este excesso de zelo desmedido dá que pensar. Em sentido oposto e lendo o último livro de Maria Filomena Mónica – A Minha Europa, no seu capítulo A União Europeia, Bruxelas*, percebi a agilidade com que se desbaratam dinheiros públicos. Partilho convosco: 

- “O Directorate-General for Translation, localizado em Bruxelas e no Luxemburgo, emprega 1750 tradutores permanentes. Em 2010, o custo total dos serviços de tradução foi de 130 Milhões de euros”;

-“ Inaugurado em 1969, o edifício principal da Comissão Europeia em Bruxelas, sofreu obras de remodelação por nele se ter detetado amianto. O restauro demorou 13 anos e o seu custo foi sete vezes mais elevado do que o previsto”;

- “O número de funcionários da Comissão Europeia ascende a 32,949 distribuídos por 60 edifícios”.

Em nota de rodapé da obra citada, Filomena Mónica, dá-nos a conhecer os nada modestos honorários dos deputados europeus e eurocratas:

“ A revelação dos salários recebidos por comissários, deputados e funcionários tem de ser arrancada a ferros, sendo o seu cálculo demasiado complicado para que um cidadão entenda quanto ganham. Muitos não recebem uma soma global, mas sim verbas incluídas em diversas rubricas, que se acrescentam aos seus salários. Os números apresentados têm variado, o que, se pensarmos que Bruxelas não os quer divulgar, não admira. Apesar de tudo, aqui vai um cálculo de quanto ganharão por mês um eurodeputado e um eurocrata, incluindo alguns – mas não todos – os subsídios que lhes são atribuídos: 

Um deputado ganha cerca de 17,500€ e um eurocrata no topo da carreira 16,919€. A maior parte deste dinheiro está livre de impostos (apenas o salário propriamente dito paga uma pequena taxa ao fisco).”

Refiram-se mais algumas preocupantes curiosidades:

- “Em 2010, enquanto os países-membros lutavam contra a crise económica, o Parlamento Europeu aprovou uma soma elevadíssima (154 Milhões de euros) para a construção de um Museu, A Casa da História Europeia”;

- “O resultado da maquinaria eurocrata está contido em 150 mil páginas de diretivas, cujos Estados-membros são obrigados a aplicar. Na internet, existe uma base de dados, o Euro-Lex, com a legislação – 1,4 Milhões de documentos, emanada de Bruxelas. A despesa com essa atividade legislativa raramente é mencionada (…). Há alguns anos, o Comissário Verheugen arriscou um número: 600 Biliões de euros por ano, ou seja, uma soma equivalente ao PIB da Holanda”. Em Portugal no ano de 2014, o PIB estimou-se em cerca de 173,5 Biliões.

Para alguns, acabo de fazer um exercício simplista e populista. Mas não é de dinheiros públicos que estamos a falar? Quem contribui para o apoio social das carenciadas de Covas do Rio? Quem suporta parte das mordomias da União Europeia?

Resposta: O cidadão contribuinte.

Lembram-se da última crónica que partilhei convosco? Perdemos a face da humanidade e pior de tudo é que não nos apercebemos. Ou lidamos bem com isso. O que é pior.

Termino roubando as palavras ao cronista da TSF, Fernando Alves: - “ escoou-se a fé na deriva dos dias e no desconcerto do Mundo.”

* A informação referida sobre a União Europeia recolheu-se na obra de Maria Filomena Mónica, A Minha Europa, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2015, pp.295-339.


Rui Machado

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Como o rock progressivo me ajudou a compreender algumas coisas da vida



Para começar, devo confessar que ao ouvir uma música nem sempre me fixo nas palavras. Durante décadas fui (e sou) um melómano de trazer por casa. Sempre retirei imenso prazer na simples audição sem aprofundar a análise à música e letra dos temas que ouvia (e ouço) repetidamente, de preferência na horizontal, com pouca ou nenhuma luz e com os da minha espécie a uma distância considerável. Estranhamente, retirava o prazer necessário ouvindo as melodias, obviamente, mas também jogando com a sonoridade das palavras, mesmo sem as perceber. Naturalmente, a posteriori, analisava as palavras e conjeturava sobre as intenções de quem as escrevera. Estranho hábito este de querer esventrar as palavras dos poetas… De qualquer forma, para mim, as palavras são importantes. Mesmo que não sejam as minhas palavras, sobretudo quando não são as minhas palavras. 

Há um tema, uma música, que ilustra bem o que acabo de dizer: Wish You Were Here de Pink Floyd. Esta é uma das bandas da minha vida. Desde muito novo, influenciado por irmãos e primos mais velhos, no martirizado gira-discos, ouvia Pink Floyd, Procol Harum, Deep Purple, Supertramp e Led Zeppelin. Todos de origem britânica. A segunda metade da década de 60 e grande parte da de 70, deram ao mundo música de grande qualidade. De todos, Pink Floyd era um caso à parte. Em vinil e até no velho leitor de cartuchos do Citroen GS Club do Sr. Machado, ouvia-se Pink Floyd com o seu rock progressivo e psicadélico. Da minha parte, pouco captava das letras filosóficas. Atraíam-me sobretudo os ambientes sonoros criados nos seus longos temas. A produção musical, à época, era o complemento perfeito para os cenários do quotidiano, uma acompanhante permanente para as incidências da vida. Assim aconteceu com Wish You Were Here. Era só mais um sucesso. Talvez as pessoas que o ouviram desde sempre não tenham percebido o seu alcance. O seu refrão, se ouvido de forma isolada e pouco atenta, remete para uma canção romântica já que nele se repete o desejo da presença de alguém ausente. Porém, talvez não seja bem assim. Ou melhor, podemos interpretar as palavras metafóricas da dupla Roger Waters e David Gilmour como uma alienação. Vejamos: A banda britânica vivia o seu auge após o lançamento do álbum The Dark Side of The Moon em 1973. Batiam recordes de vendas, encimavam as tabelas de referência e tocavam em todas as rádios. Tamanha exposição terá transfigurado os elementos da banda, tanto sucesso terá relegado para a prateleira o lado humano dos seus elementos criativos. Era necessário recuperar a identidade dos tempos fundadores. Foi essa a linha orientadora do álbum Wish You Were Here, editado em 1975.

Logo nos primeiros versos do tema que dá nome ao álbum, infere-se o tom crítico relativamente a uma sociedade cega que já não sabia distinguir o bem do mal, condição que fragilizava os homens dominados pelos ditames da sociedade capitalista e opressiva. O homem, lato sensu, desaprendera de distinguir as belezas da natureza privilegiando os progressos do desenvolvimento material. Já não se valorizava o sorriso ocultado por um véu opaco que diminuía horizontes. As palavras continuam, espraiam-se questionando o Homem de como foi possível trocar as dádivas da natureza, da vida, por bens materiais e comerciais. Como foi possível ceder ao conformismo renegando um papel ativo na procura da humanidade perdida? Dentro da sua própria mente, o Homem estava aprisionado numa cela opressora e castrante. Depois, o tal refrão: “ How i wish, how i wish you were here” é o desejo do regresso do lado humano perdido. É a terrível assunção do imobilismo das duas faces humanas: a que se havia perdido e aquela em que nos havíamos tornado. Dois “ninguéns” dentro da sociedade que nos aprisiona, como peixes em aquário, tempo após tempo, fazendo repetidamente as mesmas coisas, sempre da mesma forma. E para quê? O que encontramos ao cabo de tudo? Os mesmos velhos receios de sempre.

Foi esta uma interpretação das palavras, por sinal bem atual. Passados 40 anos poderiam ter sido escritas por estes dias e servir de suporte às reuniões dos poderosos (o Dr. Costa vai à madrinha alemã pedir a bênção) obrigando os cidadãos a perder a face humana que os líderes europeus já há muito perderam.

No final de contas, quando não me influenciavam as palavras, apenas a sua musicalidade, talvez o outro de quem suspirávamos pela sua presença, constituísse bálsamo suficiente para uma vivência despreocupada, que hoje, infelizmente, não podemos ter.

Aqui fica a letra na íntegra, na sua originalidade para que dela possamos fazer as interpretações mais ou menos conformistas, mais ou menos românticas ou então, como eu fazia à época, simplesmente saborear a sua musicalidade e não o seu significado. Como entenderem.

Rui Machado



Wish You Were Here de Pink Floyd

(Roger Waters, David Gilmour)

So, so you think you can tell
Heaven from Hell,
Blue skys from pain.
Can you tell a green field
From a cold steel rail?
A smile from a veil?
Do you think you can tell?

And did they get you to trade
Your heros for ghosts?
Hot ashes for trees?
Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
And did you exchange
A walk on part in the war
For a lead role in a cage?

How I wish, how I wish you were here.
We're just two lost souls
Swimming in a fish bowl,
Year after year,
Running over the same old ground.
What have we found?
The same old fears.
Wish you were here.