No passado fim de semana,
comemoraram-se os 552 anos de Bragança Cidade. Resumir nas palavras que cabem
nesta crónica o apreço que tenho pela terra de minha mãe, dos meus avós e dos
meus filhos não seria tarefa fácil. Faltar-me-iam as palavras e o engenho, já o
amor e o entusiasmo, sobrar-me-iam, e estes, por vezes, traem a prosa
qualificada. Resolvi então ir à procura. Seguir o instinto e rebuscar nas
memórias dos que aguarelaram a minha
infância e juventude e me serviram de exemplo.
Os olhos, as mãos e os dedos
levaram-me até à “ Evocação Histórica na Domus Municipalis “ proferida em 1964
pelo diretor do Boletim Amigos de Bragança, Dr. Eduardo Carvalho, na sessão
inaugural do V Centenário da Cidade de Bragança. Nessa evocação, o ilustre
orador, distinto professor do Liceu Nacional de Bragança, faz uma resenha
histórica do aparecimento do povoado, dos seus primeiros habitantes, da
localização estratégica para a defesa nacional, do apreço que gozava nos corações
dos reis afonsinos, das posteriores indefinições de serventia e governo, da
projeção que viria a ter séculos mais tarde formando “um bragancismo, um corpo
moral que procurou fundir e ligar no mesmo destino a terra de Bragança e a Casa
de Bragança, a que o futuro reservaria honras e glórias sem par” até à data de
20 de Fevereiro de 1464, quando se dá a elevação de Bragança a cidade como
consequência de requerimento pelo Duque D. Fernando ao Rei D. Afonso V. Na
parte final da evocação, o ilustre professor pede ajuda às pedras, elas que
testemunharam a efeméride e outros acontecimentos que marcaram estes cinco
séculos de cidadania. São estas palavras que orgulhosamente transcrevo. Não
encontro melhor homenagem para a Cidade de Bragança, homenageando em simultâneo,
um dos seus mais dignos estudiosos:
“ Talvez estas pedras veneráveis,
que ora nos servem de abrigo, pudessem dizer-nos do entusiasmo de então. Neste
ambiente secular, de tanta austeridade, apetece falar não com os homens mas com
as pedras que foram testemunhas dos acontecimentos de antanho. Apetece
gritar-lhes, acordá-las do longo sono em que mergulharam para lhes ouvir contar
a sua história.
- Pedras que me
ouvis, volvei os olhos para a noite dos séculos e segredai-nos que
presenciastes ao ouvir as palavras de vosso alcaide, do vosso senado, quando os
arautos vos trouxeram palavras de apreço e de justiça do rei que vos fez
cidade, fazendo mercê ao seu duque e ao seu povo. Vós, que então apenas ouvíeis
as palavras lamentosas do povo sobrecarregado pelo fardo dos tributos a pagar a
seus senhores; Vós, que ouvistes os murmúrios do vosso povo contra a
prepotência dos vossos governadores, quando desleais como João Afonso Pimentel
ou vorazes como D. Duarte, o senhor que antecedeu os vossos duques; Vós, que
ouvistes os queixumes do povo contra a usura que o manietava, Vós, pedras
benditas, ouvistes também palavras de alegria quando a notícia faustosa vos
chegou. Sinto-vos estremecer entregues à fúria dos tempos, à insânia das
épocas. Acordais, porque a voz do povo, que em vós encontrava abrigo e alívio,
ressoa hoje festivamente como um eco do que então ouvistes! Aqui estamos hoje
também como então, para recordar, com o coração a vossos pés, a legenda antiga
das vossas tradições medievais.
Pedras
veneráveis, cada um dos vossos modilhões poderia talvez contar uma história,
uma anedota esclarecedora, cada uma das vossas fenestrações, por onde a luz e o
ar vos beijam, podia ter sido testemunha de tantos acontecimentos notáveis de
que o vosso povo foi parte enérgica e decisiva.
Largos séculos
ficastes ao abandono, depois de bárbaro gesto ter desfeiado a vossa traça
primitiva. O desleixo, a incúria, a indiferença, deixaram-vos a descoberto, ao
assalto das tempestades, das geadas e dos ventos. Lembro-me ainda de vós como
amontoado inestético nas vossas preciosas ruínas.
Alma de lírio
vos encontrou e, reconhecendo em vós a nobreza popular do vosso múnus,
trouxe-vos de novo à vida, dando-vos as feições da juventude, rodeando-vos das
atenções da Ciência que então vos chamou JÓIA ÚNICA com requintes de namorada.
Na elegância recobrada das vossas linhas, aí vos ergueis hoje para receberdes
festivamente os que em vós reconhecem o valor das vossas tradições municipais.
Guardai por séculos sem fim o eco dos vossos anais para que – cem, duzentos,
quinhentos anos mais tarde, possais repetir palavras de saudade aos que vierem
ver-nos e interrogar sobre este então passado longínquo.
Então podereis
dizer, ó pedras sagradas, que na era de 1964 se procurou reviver com dignidade
essa outra já passada de 1464, não faltando aqui, pela primeira vez, e para vos
honrar, o sangue daqueles que tu honraste, o descendente dos teus antigos
Duques, Senhores e Reis, e os descendentes do povo que os fizeram grandes com a
sua modéstia, monumento histórico e transcendente que aguardastes por largos
séculos.
Adeus, pedras
generosas, que as gerações futuras vos amem como nós vos amamos, berço modesto
das nossas gentes, das nossas liberdades municipais, das nossas garantias e
privilégios de Cidade.
PEDRAS
ELOQUENTES DE SILÊNCIO – ADEUS! “
O ADEUS só
poderia ser material. As palavras de Eduardo Carvalho e de tantos outros que
amaram a nossa cidade ecoam por esses montes fora, testemunhadas pelas eternas
pedras que, sobrepostas umas nas outras, constroem um amor sem fim.
Rui Machado