sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O mergulho no Poço do Inferno e a afronta aos espanhóis


A vida quando quer pode ser bem prazenteira. Quando os maus pensamentos nos assolam devemos pensar naquilo que nos dá real prazer, funciona sempre. Há um punhado de pensamentos que me reconstroem o estado de espírito.

Comecemos lá atrás, nos meus 8 ou 9 anos. Nessa altura, eu e mais uma dezena de gandins, lá no Alto Minho, mais propriamente em Melgaço, nos dias de calor de Julho, rumávamos até às margens do Rio Minho para nos refrescarmos nas suas águas torrentes e caudalosas. Para lá chegar era necessário percorrer um longo caminho. Passávamos por pequenos cursos de água que devido ao relevo acidentado formavam regatos. Havia um, o Poço do Inferno, que pela nomenclatura e profundidade nos atraía mais do que os outros. Era um ligeiro abismo entre dois grandes penedos, de águas cristalinas e geladas. Fazíamos concursos de mergulho, o que não era nada fácil porque tínhamos de, em pleno voo, fazer uma ligeira curvatura para não abraçar as rochas polidas pelas águas libertadoras. Era uma verdadeira aventura e um grito de liberdade genuína. Depois das carnes enrijecidas pela água fria, temperávamos o corpo na do Rio Minho, mais aprazível. E aí, não poucas vezes, protagonizávamos uma cena Felliniana: do outro lado do rio, já em território espanhol, passava o comboio expresso com rumo a Vigo. Ao aproximar-se do local, o gigante ferroviário fazia-se ouvir pelo seu silvo sonoro e prolongado. Alertados pela aproximação corríamos todos para a margem do rio e alinhavamo-nos com o traseiro virado para Espanha. Mal o comboio passava, baixávamos os calções e mostrávamos o lado B aos espanhóis. O Maquinista, não sei se em forma de defesa ou de protesto, apitava incessantemente até o perdermos de vista. Zangava-se o espanhol. Estava vingada a ocupação Filipina.

O relato trivial da infância faz-nos perceber que a vida vale a pena ser vivida. Mas há mais. Outro prazer que muito prezo é o cheiro da terra molhada depois de uma quarentena de calor. Ou o riso de um bebé. Ou o olhar expectante da minha cadela tipo “ o que queres que faça agora?”. Ou a brisa que nos varre a face ao fim da tarde. Ou o sumo de laranjas acabadas de espremer que nos desperta olfato e paladar e que nos purifica o corpo. O som das nozes a quebrar. O pardal que no beiral da janela nos visita e nos desafia para o acompanharmos nos voos sem destino partilhando connosco os dias de sol. O correr do leopardo, elegante e poderoso. O atleta vitorioso que chora quando ouve o hino. A lágrima que nos escorre ao ouvirmos aquela música… O beijo que damos àqueles que amamos. O reconforto, o abrigo nos seios daquela com quem partilhamos o ar do quarto. O canto lírico que nos arrepia a epiderme. A guitarra elétrica que sola um grito de desespero. O silêncio entre as notas musicais. A estrada sinuosa que nos leva de passeio. A elegância do cavalo de Dressage. As letras que se conjugam em palavras que nos soam certo, em harmonia. O sorriso dos nossos ou dos que desconhecemos. O livro que nos faz esquecer que amanhã é dia de trabalho. O crepitar na lareira da casca do pinheiro. A mão que nos acaricia o corpo. O sofá lá de casa. O cheiro da casca dos citrinos. A água que nos mata a sede. A música que nos embala num dia de chuva. A tecnologia que nos completa. O cão que nos olha e nos lambe a mão. As memórias das férias de praia. O doce que subtraímos à escapula da mesa posta de Natal. O ruído bom de uma conversa de amigos. A gargalhada à roda de uma mesa de memórias. O filho, que cresce mas continua nosso… O prazer solitário, motorizado ao conquistar km no asfalto. A viagem que nos alarga o horizonte. O silêncio, ah o silêncio, cada vez mais difícil de ouvir. E também as ideias despojadas da Maria Filomena Mónica. As memórias breves e possíveis de Saramago. O Pessoa pulverizado. O Lobo Antunes e as suas fadigas pós traumáticas mais as estranhas vidas das personagens do José Luís Peixoto. 

Tanta coisa boa nestas nossas vidinhas. Tudo bem, admito, também há os comentadores faroleiros, os saltos altos da vizinha a pisarem-nos o cérebro, as tardes das derrotas do Benfica, as dores nas cruzes, a conta bancária que encolhe e o estômago que dilata, o cabelo que escasseia, o valor alterado das análises… 

Pois escutai: O mergulho no Poço do Inferno e a afronta aos espanhóis ninguém me tira.

Rui Machado

sábado, 12 de dezembro de 2015

Matéria e outros elementos ou talvez o monólogo que queria ser diálogo

Fogo

Não há um dia que não me lembre de ti. Um único dia. Se à noite acordo, penso em ti. No banho penso em ti. Quando olho, mesmo não vendo, penso em ti. Quando rio, penso em ti. Em ti, sempre em ti. Tenho saudades de quando me chamavas vagabundo porque chegava tarde à noite. Tenho saudades de quando me pedias beijos e eu, furtivo, fingia que não queria. Tenho saudades de quando me punhas a mão na testa e me dizias que tinha febre. Tenho saudades de quando me penteavas e me chamavas nomes bonitos. Tenho saudades do teu comer, aldrabado como dizias. Tenho saudades de quando me chamavas troulas porque andava descamisado. Tenho saudades de te sentir por perto, existente, matéria. 

Ar

Aprecio esse teu lado sonhador, crente na boa vontade dos homens. Identifico-me com essa tua necessidade de atenção, mesmo dando ideia de que tens toda a força, mesmo quando não tens. Gosto de te ouvir, de te ler, mesmo que te pareça distante. Eu estou lá, contigo. Não me esqueço de quando me pegavas ao colo nas ruas íngremes. Vejo-te ainda na praia lendo o jornal no meio dos penedos, deitando um olho para quem passava e o outro para as letras do mundo, nem sempre boas de ler. Sigo o teu lado otimista, de que melhores dias virão e que tudo tem solução. Inspiro-me na tua resiliência, no teu já longo caminho. Reinventas-te e eu sigo-te.

Água

Gosto de te chamar mãe coragem. Tanto caminho trilhado, tantas vezes sozinha. Como te entregas aos teus e cuidas dos dos outros. Como tornas a diferença em igualdade. Como te manténs jovem e enérgica. Como te despes toda para que nada falte aos frutos do teu ventre. Lembras-te quando me levavas ( que remédio tinhas ) aos encontros com o teu namorado e eu dizia: Não gosto dele! Lembras-te? Por onde passas, as flores ficam mais belas.

Terra

Não me lembro ao certo da primeira vez que te vi. Sei que foi há muitos anos e no entanto foi há pouco, há poucochinho. Foi agora mesmo. Mas lembro-me da fragilidade que aparentavas e que cedo me nomeaste o teu fiel escudeiro. Ainda hoje, por graça, me chamas o teu segurança. E sou. Há muitos anos que seguro a tua mão no nosso destino comum. Desde o teu primeiro olhar que deixei de me sentir estranho, que os teus olhos me veem e não me sinto observado. Na verdade, sofro sempre que me não vês. Foi nessa tal fragilidade que captei o teu encanto e construi este amor antigo. E quem resiste ao teu sorriso? Viciado que estou em ti, ressaco sempre que não te tenho. Choro sempre que tu choras. Carrego-me nessa força que me empurra. Conforto-me em ti, na tua pele, no teu calor. Foste, és e serás sempre luz, fonte e alimento.

Fruto

Sabes, eu sempre quis ser pai. Tinha essa ideia, essa vontade. Para que serve a semente se não germinar um dia? Lembras-te do primeiro banho que te dei? Consegues ter memória desse momento? Mais do que memória, és a minha carne, a minha pele e não caibo em mim quando dizem que és meu, que não enganas. Lembras-te das nossas insónias? Quando juntos preenchíamos as noites más tornando-as mais suportáveis. Recordas o super-herói que um dia te dei? Para o infinito e mais além! Muito mais além, num lugar onde estaremos sempre juntos, aconteça o que acontecer. Talvez não tenha o direito mas quero que saibas que em ti, vejo-me em mim, em versão melhorada.

Flor

Escuta minha princesa, eu sei que às vezes sou um elefante e que tu és uma porcelana. Eu sei que nem sempre caibo no teu mundo de fantasia e sensibilidade. Que nem sempre estou presente e que não pareço atento. Quero que saibas que estou sempre a ver-te, que olho em todas as direções e que protejo o teu castelo encantado. Compenso-te em abraços, os meus, são os melhores do mundo.


Rui Machado

domingo, 6 de dezembro de 2015

Que força é esta?


Acordam as manhãs geladas, chegou finalmente o frio. Metemos os corpos quentes na roupa fria, um arrepio e estamos prontos para mais um dia. São 7 da manhã. No limite 7 horas e 9 segundos, o segundo tem de ser ímpar, sempre. Empurramos o corpo pela casa que ainda dorme, indiferente aos horários dos homens. Saímos. Outrora, os percursos até ao Liceu feitos a pé davam outro sentido às manhãs. O frio dos invernos de antanho envergonhava os sentidos que, um após o outro, despertavam lentamente. Agora, os caminhos são outros. Mais distantes e difíceis de alcançar. Mais solitários também.

Eu amo estes montes, estas invernias transmontanas. O cheiro das lareiras. Será carvalho, freixo, talvez carrasco, nobre lenha que nos aquece o corpo e ainda mais a alma. Mas a vida é difícil. Haverá vidas fáceis? O que será melhor, percorrer estradas geladas ou atravessar o rio para a outra margem na grande metrópole, lá onde tudo fica longe e as pessoas não se olham nos olhos? Mas lá, onde os carros invadiram os espaços das árvores e das pessoas, dizem-me que há muitas oportunidades. Que há cinema. Teatro. Muita gente. Talvez haja tudo isso. Mas não há horizonte. Não há alimento para os sentidos. Que seria de mim sem os horizontes curvilíneos dos montes onde o Sol se encaixa para dormir e depois, com tempo, se mostra devagar, vaidoso? Aqui, por detrás dos montes, o Sol lança a sua melhor energia para ajudar os homens no amanho da terra, tantas vezes ingrata e rude. Vida marcada nas rugas vincadas dos rostos parados no tempo a olhá-lo, ele que corre quieto, dia após dia ao ritmo das estações, ao ritmo das tarefas do campo.

Que horizonte é esse que me enraíza e me imobiliza? Que linguajar é esse, tão emocional e sentido? Que lindas as nossas mulheres! As nossas crianças! Que genuínas, que verdadeiras! Que força é esta que trago no peito e não quero sentir esmorecer? Força que me impede da procura da cidade que acorda quando o Sol ainda dorme deitado em pedaços de cartão debaixo de um qualquer viaduto. Mas essa força fraqueja. Devagarinho, qual doença invisível, impercetível nos meios de diagnóstico. Mas a Terra geme baixinho, nós não a queremos ouvir, ela lamenta-se… Onde estão as crianças que corriam alegremente para a escola? O que é feito das pessoas que enchiam os adros das igrejas? Onde param as tertúlias dos amenos fins de tarde que à soleira do café resolviam os problemas do mundo? Alguém viu o amolador de facas e tesouras? Aquele que arranjava os guarda chuvas estragados pelas inclemências do tempo. Ainda ouço aquele chamamento… Onde está o vendedor da banha da cobra? Aquele que dizia nos dias de feira “ chá sul africano para todas as maleitas, acorda de manhã…”, repetindo até à exaustão os benefícios da infusão milagrosa de proveniência duvidosa. O que é feito das pessoas que enchiam os comércios? As drogarias. As retrosarias. Os alfaiates e modistas. Os barbeiros. O chapeleiro. O armazém de vinhos finos. Os sapateiros. Os Tem-Tudo, desde as tripas de porco para o fumeiro até às sementes da couve penca. O armazém da Cooperativa na Rua Direita onde comprávamos o bacalhau de cura amarela onde um velho (sempre velho) embrulhava a peça inteira numa bela e forte folha de papel ferro. E os caixeiros viajantes que municiavam os comércios. Traziam malas muito grandes, muito bem arrumadas, alinhadas nas carrinhas Peujeot e tapadas com mantas. Quando abriam os mostruários era todo um novo mundo que se mostrava. As novidades que saíam das malas arregalavam as meninas dos olhos dos compradores: “ ponha-me uma dúzia destes, aqueles não que se vendem mal”.

As cidades e aldeias que morrem aos poucos. Tantas janelas fechados nas ruas que nos levam ao castelo. Triste, muito triste. Muitas perguntas para as quais nós sabemos a resposta: foram--se embora, fecharam, demoliram-se, morreram…

Mas talvez, haja uma esperança. Por estes dias, as ruas enchem-se de vozes, ainda que saídas de pequenas colunas espalhadas pela cidade. Talvez outras vozes se juntem, saiam de casa, regressem, acordem dum sono profundo e interminável. Talvez as crianças se multipliquem e alegremente, deslizem no gelo, indiferentes aos horários e obrigações. Talvez os presépios induzam uma fertilidade nas gentes desiludidas e conformadas.

Talvez. Talvez sim. Eu gostava. Eu gostava que aqueles que partiram, voltassem. Estamos prontos para os receber.

Rui Machado