sexta-feira, 6 de maio de 2016

O Padre Telmo e outros assim (bons) como ele

Padre Telmo Batista Afonso (1929-2016)
Créditos - Unidade Pastoral Senhora da Saúde 


Vinha poucas vezes mas quando vinha trazia sempre consigo um sorriso que cativava. De modos simples e trato fácil, as conversas saíam com naturalidade. Gostava de o ouvir, sabia explicar-se e tinha um dom de lidar com as crianças como eu, de poucas falas e quase nenhuns sorrisos. Com ele sentia-me à vontade, não sentia aquelas barreiras que os adultos criam ao lidar com as crianças. Naturalmente, falava, cumprimentava. Como se nos conhecêssemos desde sempre. Depois era vê-lo, deambulando pela Livraria, pegando neste e naquele livro, dizendo sempre alguma coisa abonatória sobre o autor ou sobre o tema. Não gostando, nada dizia, não usava palavras amargas. Na hora de pagar, lamentava-se:
- Estão caros os livros! – Percebia-se que o comentário não viria da avareza do comprador mas antes da vida desprendida que terá levado e provavelmente das muitas almas que terá ajudado, não só lhes alimentando o espírito mas dando-lhes o outro pão, aquele que os pobres também agradecem. E saía. No ar, além do cheiro a papel velho e tintas, livros e revistas, pairava um ambiente desanuviado, aquele grau zero de começo de dia. O Padre Telmo, foi um daqueles que passam pelas nossas vidas, enriquecendo-as. Adicionando-as, nunca subtraindo.

Ao longo da vida, cruzei-me com outros ministros de Deus. Lembro-me do Padre Manuel, ainda tio por afinidade. No seu carocha preto, corria as estradas sinuosas até Fiães lá no Alto Minho. Parava sempre em Cavaleiros, onde eu passava as férias de verão na casa dos meus tios de Melgaço. De pele rosada, um pouco anafado, encostado ao muro e com a ajuda da navalha, comia duas ou três maçãs enquanto falava connosco. Sempre em tom clerical, ia-nos dando conselhos e fazendo perguntas sobre os nossos hábitos religiosos, censurando alguma falta. Sem nos olhar nos olhos mas fazendo notar que falava connosco. Gostava de o ouvir. O seu tom grave e sério cativava a minha atenção. Os seus olhos claros veiculavam preocupações com o seu rebanho e com as derivas do mundo.

Por esses dias, aos domingos, assistia à missa do Padre Adelino. Na altura, não andava zangado com estas coisas da fé, pelo contrário, gostava de assistir à Missa Jovem dinamizada com diapositivos, músicas e muitos cânticos. Sentia-me próximo…nesses domingos. Se bem me lembro, aquelas dinâmicas de juventude, não agradaram aos pares e à hierarquia. A Missa Jovem acabou. Perdeu-se um praticante.

Por alturas de 1997, talvez 98, o país crispava-se num debate em torno do referendo sobre o aborto. A Igreja posicionava-se e os seus pastores passavam a mensagem. Numa atividade da escola, que sendo laica, vai interagindo com a Igreja Católica, levei os meus alunos à Comunhão Pascal celebrada pelo pároco da aldeia onde à época dava aulas. Aproveitando o assunto da ordem do dia, mandatado, o Sr. Padre Cura, de dedo em riste, defendia a postura da Igreja. Não se estranhou o posicionamento, antes a pertinência de o fazer naquele tom crispado para crianças de seis, nove anos. A mensagem seria para os pais presentes mas na verdade, talvez e só talvez, os meninos assustados, sentiram o desconforto e o medo perante uma mensagem que não era para eles. Não tendo contactos privilegiados, algo me diz que nesse dia, ELE também ficou descontente com o desempenho do seu pastor.

No resto da vida, cruzei-me com vários padres, quase sempre por razões profissionais. Lembro-me especialmente de um, lá para os lados da Terra Quente. Disse-me um dia:
- Professor, não se desvie do seu caminho. A Escola ensina. A Escola alimenta. A Escola acarinha. A Escola acolhe. A Escola é Amor. – Por aqueles dias, a escola era notícia de jornal pelas piores razões ( a Escola só é notícia pelas piores razões) e naquele contexto conturbado onde nós próprios nos colocávamos em questão, aquelas palavras do sacerdote foram a mão certeira do pastor no seu rebanho em risco de tresmalhar. Homem de grande sensatez, condutor de jovens rejeitados, foi um grande exemplo. Ensinou-me a priorizar as aflições. 

Nesta viagem cabe a lembrança da Irmã Estela. Durante algum tempo trabalhei na instituição por ela dirigida. De mão firme mas de coração de manteiga, zelava pela vida de dezenas de raparigas institucionalizadas. Quando nos apresentamos, disse-me:
- Não imagina a sorte que tem em vir trabalhar connosco! 
Perante a responsabilidade, desagravando a austeridade, acrescentei: - Pois Irmã, a sorte para a Instituição é na mesma proporção da minha.
Há personalidades que se encaixam. Admirei aquela religiosa desde os primeiros contactos. A versatilidade com que lidava com as jovens, tanto reprimindo-as nos comportamentos errados, como distribuindo mimos em forma de beijos e abraços ou até comprando-lhe saias e sapatos de salto alto quando, mais espigadotas, começavam a olhar para o espelho. Um dia, depois de jantar, vi-a no recreio, aos pulinhos, atirando pedrinhas ao ar e batendo palmas ao mesmo tempo. Percebi que se pode ser feliz servindo os outros.

Claro que me cruzei com outros menos interessantes. Esses não cabem nesta crónica. Desses não me lembro o nome. Lembro-me do Padre Telmo do Zoio. Deixou-nos. Por esta altura já terá entrado noutras livrarias, como entrava na minha e sorrindo, sem dizer nada, dirá tudo.

RM

2 comentários:

  1. V.escreve bem! A sua escrita é profunda e acertiva.Gostei de o ouvir sobre o padre Telmo:homem excelente,sábio,bom...Bem haja!

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  2. O p. Telmo, homem bom e sabio,é inesquecível há de, por certo, ter entrado no céu e, de lá, continuar a dizer como muitas vezes o fez- que Deus te ajude! Continuo a confiar que, agora mais perto do criador, o P. Telmo ajuda no que pode e como sempre o fez.
    Obrigado Sr. Padre Telmo
    Luís

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