sábado, 28 de maio de 2016

Pedimos a Carta de Vinhos ou vai mesmo o da casa?



Um grupo de amigos vai jantar fora e na hora de escolher o vinho, alguns pedem a Carta de Vinhos e escolhem o vinho que entendem. Os restantes aceitam a proposta de vinho da casa, substancialmente mais em conta que o vinho de marca escolhido pelos primeiros. No final, na hora de pagar, os de gosto mais requintado, sugerem que se divida a conta em partes iguais.

Serve a situação corriqueira para introduzir o tema quente das últimas semanas: as alterações ao financiamento das escolas privadas com contratos de associação celebrados com o Ministério da Educação. A questão é sensível e facilmente caímos na demagogia barata ou na doutrina ideológica e por isso hesitei bastante em escrever sobre o assunto. Na verdade, 23 anos de escola pública, praticamente metade dos quais no exercício de funções de gestão e administração escolar, acarretam um conjunto de certezas que podem prejudicar um olhar mais assertivo. Não obstante, a vida ensinou-me que a verdade e a razão, seja qual for a matéria, nunca estão somente num dos lados. Vejamos, quando um conjunto de pais, aparentemente extremoso, se manifesta publicamente, exigindo a liberdade de escolha para escola dos seus filhos, envergando slogans com frases feitas, não inocentes, tipo - “ eu acredito, eu confio, eu escolho, eu matriculo o meu filho na escola com contrato de associação” – desconfio que a questão maior não seja uma preocupação sincera com futuro das crianças. Não se coloca sequer a hipótese de matricular os filhos em escolas privadas sem contrato de associação. Estranho. Para estes pais, a escola só é boa porque é privada e porque é financiada pelo Estado – “com os nossos impostos” como gostam de dizer. Sim, mas também, com os dos outros contribuintes. Não parecem equacionar a qualidade das restantes escolas, públicas ou privadas, não estão interessados em conhecer outros projetos educativos e exigem, porque sim. Não chega. Não chega porque parece haver uma atuação orquestrada na metodologia usada nas manifestações sincronizadas e metodicamente organizadas, naquilo que, lamentavelmente, se designou por quartas-feiras amarelas. Para ajudar à desconfiança, olha-se de soslaio para a isenção dos órgãos de comunicação social, nomeadamente das televisões, no tratamento dado a questão, havendo mesmo quem verificasse que os pivôs dos jornais televisivos, ultimamente, vestissem muito de amarelo. Na mesma lógica, ex detentores de cargos públicos, vieram em defesa da importância da manutenção dos contratos de associação. Parece aqui haver uma lógica que vai muito além da preocupação daqueles pais que pretendem o melhor para os seus filhos.

Neste espaço, não cabem reflexões aprofundadas sobre as diferenças entre Escola Pública e Escola Privada, pretendo levantar um pouco o véu, ventilar algumas ideias e deixar as certezas para os decisores políticos, sempre tão certos e seguros das suas opções. Como ponto de partida, assumir que em qualquer civilização desenvolvida, plural e democrática, há espaço para as duas esferas: público e privado. A Educação, como trave mestra de qualquer sociedade, pode e deve fazer-se na perspetiva do Estado mas também com lógicas empresariais e liberais. A diversidade de abordagens, só pode enriquecer as sociedades. Falamos de complementaridade e não de exclusividade de nenhum dos setores. Esta visão globalizante da questão não faz de nós inocentes e obriga-nos a ter “ um olho no burro e outro no cigano”. Nem muitos dos colégios que agora viram o seu financiamento reduzido, podem clamar por mais justiça, nem os decisores políticos dos últimos 30 anos, - hoje em dia acolitados pelos diretores das unidades organizacionais, comprometidos, pendurados, subjugados e manietados por lógicas político-partidárias nacionais e locais – podem vitimizar-se, carpindo lágrimas de ataques externos, não fazendo a auto critica necessária. Especificando: os contratos de associação foram criados para dar resposta à massificação do acesso à escolarização que ocorreu a partir da década de 70. Durante décadas, o Estado foi incapaz de dar resposta à procura de escola na área da sua conveniência, a milhares de crianças e jovens. Socorreu-se do investimento privado, partilhando uma responsabilidade que, ao contrário do que se diz por aí, não é um exclusivo do Estado. Foi uma solução benéfica para todos os intervenientes, nomeadamente em zonas de grande densidade populacional mas também em territórios distantes da centralidade onde o Estado, ainda hoje, tarda em chegar. Nestas situações, analisando com objectividade caso a caso, o Estado deve manter-se como “pessoa” de bem e prolongar os contratos de associação. O mesmo já não deve acontecer nas situações de puro oportunismo que proliferaram a partir dos anos 80, com o beneplácito de alguns municípios e dos serviços centrais e regionais do Ministério da Educação. Seria importante que alguém averiguasse como foi possível autorizar a criação de novas turmas, financiadas pelo Estado, em colégios recém-criados, enquanto se colocavam entraves às escolas públicas com disponibilidade de instalações e recursos humanos. (Estes caminhos ímpios, foram bem explorados pelo jornalismo de investigação protagonizado pela jornalista Sandra Felgueiras no programa Sexta às 9, RTP 1, do passado dia 20 de maio, um jornalismo incolor e pouco dado a doutrinas.) Nestas situações, o Estado tem total legitimidade para cessar o financiamento a novas turmas. A questão é séria pois falamos de muitos postos de trabalho e da instabilidade gerada nas famílias, mas não há espaço para retrocessos. Nos últimos anos pediu-se aos cidadãos mais racionalidade no dispêndio de recursos públicos, como tal não pode o Governo intimidar-se com lógicas de poder, venham elas de onde vierem. Falamos de grupos financeiros, lógicas locais, corporativismo de classe e, não esquecer, a própria Igreja Católica.

Aos pais que exigem liberdade de escolha na escola dos seus filhos, dizer que os seus impostos não são suficientes para manter um esquema de financiamento aos contratos de associação e acrescentar que só alguns, poucos, têm acesso a tais condições. 

Terminando: só alguns provam do tal vinho de marca, o que pode não ser um problema já que há muito vinho da casa de grande qualidade, muitas vezes superior ao outro mais cheiroso e bem rotulado. Pobre do vinho da casa, com o qual ninguém parece verdadeiramente preocupar-se. Já passaram muitas quartas-feiras, de várias cores vestidas mas mantém-se que só uma cor é que é boa. E assim não vamos lá.

Rui Machado

sábado, 21 de maio de 2016

A sensatez da pobreza




Lentamente, a aldeia despertava. Aos primeiros raios de luz, já Diamantina arrastava os tamancos pelas pedras torpes da Rua do Povo. Não se fazia velha na cama, acordava com as galinhas e não merecia a pena estar ali a dar voltas à cabeça “ a pôr-se maluca”. A vida era aquilo. Nascera para servir. Não dera para os estudos. Aprendera a ler e a contar à custa das palmatoadas da professora Irene. Na altura chorava-as todas, hoje agradece-as. Foi graças à insistência da mestra-escola que hoje podia ler as cartas da Segurança Social e da madrinha, que todos os anos, lá pelo Natal, escrevia da América. De leituras, estamos conversados. De contas, vai exercitando todos os meses ao esticar a reforma para os medicamentos e outras precisões.

Nunca casara. Não se lhe amanhou a coisa. Achava sempre que os pretendentes a não mereciam, ou porque bebiam demais, ou porque gostavam pouco de trabalhar, ou porque se iam embora ou porque, e essa era a verdadeira razão, não tinha tempo para namoros. Ainda Diamantina era moça quando a professora Irene foi falar com o Arlindo e Benedita, pais da catraia. Diamantina era a mais nova duma irmandade de nove. Em casa, fome não havia mas fartura também não. Caldo de couves e um cibo de pão aconchegavam o estômago. Fartura só no tempo dos figos, a caminho da escola enchia-se a barriga. Por vezes, o pai Arlindo pescava uns peixitos no ribeiro e lá se fritavam num óleo já queimado e requeimado mas que sabiam pela vida. Também no tempo deles, na caruma dos pinheiros se apanhavam cogumelos, durante muitos anos foi o que mais parecido com carne se comeu. E foi por este cenário, nem rico nem pobre que a professora Irene falou com os pais da Diamantina:

- A rapariga não aprende e anda eslaraitada. Vai lá para casa. Alimento-a, visto-a e educo-a. 

A mãe concordou logo, era menos uma boca, menos uma ralação. O pai custou-lhe mais. Era apegado à rapaza. Gostava dela. Era respondona e alegrava os serões lá de casa. Mas a mulher que decidisse. Encolheu os ombros e foi-se para a taberna jogar às cartas. E assim se traçou o destino da Diamantina. Passou a viver em casa da professora Irene que nunca tinha casado, não por falta de vontade mas porque não arranjara homens de rendimentos semelhantes, como exigia o Regime. Funcionários não os havia e lavradores ricos, muito menos. A aldeia era pobre, riqueza só de fragas. Os homens novos estavam todos para as franças. Os anos foram passando e Irene foi perdendo a ideia, foi ficando rude de modos e desmazelando o corpo e as vestes. Vivia para a escola. Todos os finais de tarde levava para casa quatro ou cinco alunos, os mais atrasados na cartilha. Os exames da 4.ª classe não tardavam e era necessário prepará-los. Para Diamantina, a escola durava todo o dia… precisasse ou não precisasse. Depois, ao fim do dia, esfalfava-se na lida da casa. A caridade da professora terminava quando era necessário limpar a casa, ir à água, esfregar o soalho, fabricar a horta e outras tarefas. Não restava tempo. Ao final do dia, enquanto a celibatária se deliciava com as radionovelas da telefonia, Diamantina fazia os trabalhos de casa ou estudava para a catequese. Os dias eram sempre iguais, as noites intermináveis. Uma vez por mês, a biblioteca itinerante trazia livros. Às escondidas da tutora e com a conivência do funcionário da Gulbenkian requisitava os romances de Corín Tellado, amores de cordel, cheios de peripécias e que tornavam as noites longas e frias, um pouco mais aprazíveis. Só em sonhos viveria histórias parecidas. Os benefícios do amor não estavam guardados para a Diamantina. Feita a 4.ª classe, ainda se pôs a possibilidade de continuar os estudos na vila. Ninguém fez grande questão, por ali continuou a servir.

A vida era o que era. Não era do seu timbre lamentar-se. Feitas as contas e relevando os modos de vida de antanho, tinha aquele poucochinho de suficiente. Vivia ao ritmo das necessidades da tutora, aposentada entretanto. Além de criada, era uma espécie de dama de companhia. A velha mestra gostava de ouvir histórias de livros antigos que Diamantina lia repetidamente. Histórias de outros tempos, tempos de respeito como gostava de frisar a jubilada. Diamantina nem sempre concordava com as ideias conservadoras da professora Irene mas tinha de dizer que sim senhora, que tinha toda a razão. Diamantina, com a sua maneira servil, foi conquistando as boas graças da proprietária de muitos e bons prédios da aldeia de Pedreiral. Por esta altura, já estava habilitada como herdeira. Por vontade da tutora, a menina moça criada, herdaria o seu património que, não sendo de monta, lhe traria algum conforto pela vida fora. Assim estava previsto. Acontece que um dia, o Dr. Teodósio, Solicitador com escritório montado, tinha estado à conversa durante mais tempo que o habitual. Entrara em casa da professora afogueado e sairia mais abatido do que o habitual, recusando mesmo os bolinhos de coco e o porto licoroso que Diamantina oferecera. A professora ficara sozinha, ouvindo-se um choro soluçado e um renhir entre dentes quase impercetível. Diamantina não sabia o que se passara, mas coisa boa não seria pois nos dias seguintes, a patroa mantivera-se fechada no quarto não querendo sair, abrindo exceção para o terço radiofónico. Pouco tempo passado, morreu. Como todos os dias, às seis da tarde, ouvia o terço na Rádio Renascença. Finou-se com o rosário nas mãos.

Diamantina chorou a morte da tutora. A dor não era profunda pois sentia que as benfeitorias da professora Irene tinham sido pagas com a força do trabalho de longos anos. No dia seguinte, acordou proprietária. Antes de abrir os olhos, naquele lento voltar, pensou como seria o acordar dos ricos. Deixou-se ficar por uns momentos para perceber a diferença. Estranhamente, não sentiu especial alteração. Doíam-lhe na mesma as cruzes, as mãos adormeceram-lhe durante a noite e continuava pitosga pois, sem o auxílio dos óculos de massa, não vislumbrava as horas no despertador.

- Talvez não seja assim tão diferente ser rico! – Pensou.

Levantou-se. Não teve de aquecer água para o banho da senhora, nem esfregar-lhe as costas, nem cortar-lhe as unhas dos pés. Fazia-o por inerência de funções mas estava farta das rotinas de muitos anos. Estava cansada dos monólogos cheios de razão da patroa, das ideias conservadoras, dos tiques autoritários, das visitas de conveniência e da obrigação das orações. E também do trabalho dos campos, sempre às ordens da patroa e aos mandiletes do caseiro. Hoje a Diamantina proprietária não tinha de se preocupar com essas rotinas. Hoje seria ela a dar as ordens. Havia só um pequeno senão, não tinha a quem ordens dar. Para resolver a limitação do exercício do poder, mandou chamar uma das irmãs que casara com um contrabandista, ausente quase sempre e muito fugidiço por causa da Guarda. Não tinham filhos, dizia-se na aldeia que o homem era machorro e por isso a ausência de cria, muito conveniente para Diamantina. Depois de proprietária era agora patroa. À irmã, agora sua criada, destinou-lhe os seus antigos aposentos:

- Ficas bem aqui!

- Falavas tão mal do quarto, dizias que era frio e húmido. – Alvitrou a irmã.

- Impressão tua, abres as janelas e arejas isto todos os dias. Ficas bem. – Atirou a Diamantina patroa.

A irmã, agora criada, encolheu os ombros, e com pouca convicção acenou a cabeça em concordância.

Dadas as ordens do dia, sentou-se na poltrona da antiga patroa. Sentiu-se bem. Mandou vir um chá de hipericão e deitou uma olhadela à correspondência. Da meia dúzia de cartas, uma do Fonsecas & Burnay, chamou-lhe a atenção. Foi nessa que pegou. Abriu-a. Leu-a:

“ Informa-se Vossa Ex.ª de que fomos contactados pelo Senhor Alberto Santos, residente no Brasil, apresentando este, certidão de nascimento, certificando ser filho da falecida D. Irene Santos e de pai incógnito. Pela presente, fica Vossa Ex.ª desabilitada a poder movimentar as contas de D. Irene Santos.

Com os melhores cumprimentos

Cosme Vilarinho

(gerente) “

Dobrou de novo a carta e meteu-a no envelope. Levantou-se, dirigiu-se à cozinha e disse à irmã, efémera criada:

-Deixa estar, eu faço o chá.


RM

sábado, 14 de maio de 2016

Gavetas onde se guardam pedaços de vida (recordando a Livraria Mário Péricles - Bragança)


Mário Péricles da Cruz
Mário Péricles da Cruz




Dele, pouco ou nada me lembro. Ao longo da vida trabalhei uma memória que de tanto voltar a ela, tornei-a verdadeira. Teria eu três ou quatro anos. Ao seu colo, passeava pelo jardim da sua casa no Bairro da Estação. Nas minhas pequenas mãos, um raio de Sol fazia cintilar uma moeda que ele me tinha dado. Foi desse gesto, do colo e da moeda, que estará lá por casa numa daquelas gavetas onde se guardam pedaços de vida, foi desse gesto que alimentei a tal memória. Da segurança dos seus braços, pude ver as primeiras cerejas de cerdeiro de cima e sentir o ar enroseirado que pairava no seu jardim. Do meu avô Mário Péricles, lembro-me que trazia chapéu e que me falava baixinho sempre que eu apontava para os pardais que nos queriam comer as cerejas. O meu avô Mário Péricles, em 1938 abriu uma Livraria em Bragança que esteve aberta 66 anos. 

O resto da memória construiu-se ao longo dos anos. Em muitos dias, tantos que foram anos, que foram décadas. Nos dias em que fazia da Rua Direita o meu recreio de brincar. Nos dias em que ouvia as conversas dos mais velhos nas tertúlias de fim de tarde lá na Livraria. Nos dias à volta da mesa de família quando uma das suas filhas, minha mãe, falava do meu avô Péricles com aquele carinho que só os filhos sentem. Naqueles outros dias, tantos, em que o Sr. Vasconcelos me dizia vezes sem conta que o meu avô era um bom homem, como já não havia, dizia ele. Nos dias em que correndo o nosso mundo transmontano, ouvi testemunhos que realçavam a importância do voto de confiança naqueles que procuravam Bragança para estudar permitindo que se pagasse quando fosse possível: quando se vendesse a castanha, a azeitona ou a amêndoa. Era o tempo das relações de confiança na nobre gente de parcos recursos mas de enormes qualidades. Foi assim de 1938 até 2004. Poderia dizer que foram muitos, mas não digo, porque não foram. Deveriam ter sido mais. Passaram 12 anos desde o seu encerramento. Tem sido um luto difícil. Durante vários anos guardei essa memória numa das tais gavetas, onde se guardam os pedaços de vida. Hoje tudo é tão efémero e volátil que me conforta abrir algumas gavetas de saudade. Desde sempre me lembro de entrar na Livraria e sentir aquele cheiro característico a papel velho, impresso. Ao transpor as velhas portas verdes, entrava-se numa espécie de Babilónia, numa confusão com sentido, mas também se entrava numa espécie de “Porta de Deus” no sentido que ali se encontravam mundos novos, todos os mundos e muita gente boa, a que estava mas sobretudo, a que entrava. Na boa senda do comércio tradicional, recebia-se com gosto e sabia-se o nome de toda a gente. Os métodos de venda não eram os mais agressivos e na verdade muita da clientela procurava apenas dois dedos de conversa.

Quem ali entrava perdia-se numa imensidão de lombadas alinhadas verticalmente, num suave caos que convidava à descoberta. Os livros, aos milhares, aguardavam que um olhar mais atento se fixasse nos seus títulos ou nas suas capas mais ou menos atrativas. Sem nada poderem fazer, aguardavam a sua vez de poderem ser folheados, de se entregarem nas mãos do leitor que os elegera.

O resto era vida. Era o chegar das encomendas muito bem embrulhadas em papel ferro. Era o carteiro de muitos anos que se justificava se não houvesse correspondência para entregar. Era a cabeleireira mais afoita a perguntar se já tinha vindo a Crónica Feminina, a Maria ou, pelo Natal, a Eva. Era o estudante menos empenhado à procura dos auxiliares das obras obrigatórias. Era a professora primária que considerava a sugestão da D. Celeste. Era o senhor da agência que comprava o papel azul de 25 linhas, o papel e os valores selados, numa lógica muito certinha de fazer as coisas. Era o cabo da GNR que vinha levantar a encomenda do economato. Era um corrupio de gente de todos os quadrantes e credos.

Mas o sangue da Livraria jorrava dos seus clientes leitores. Era ali que se oxigenavam lendo a Coleção Vampiro e os casos complexos de Agatha Christie dos Livros do Brasil; As obras de Eça, de Virgílio Ferreira, de Camilo Castelo Branco, de Fernando Pessoa, de Sophia de Mello Breyner Andressen, de Florbela Espanca, de Miguel Torga; Todos os poetas da Assírio & Alvim; A Banda Desenhada da Meribérica; Os vinte e tal volumes da Luso Brasileira da Verbo Editora; A nossa história contada por Oliveira Marques ou José Mattoso; A coleção toda do nosso Saramago, Prémio Nobel; Aqueles que não gostávamos de vender como as entrevistas ao ditador, a cartilha ideológica do nazi sanguinário e ainda o Grande Livro de S. Cipriano que alguns compravam para fazer mal ao vizinho ou à amante do marido; Os romances de cordel de Corín Tellado e aquela Coleção Azul da Romano Torres para as aspirantes a nubentes, ofegantes e desejosas…

Numa outra gaveta, há também espaço para recordar os viajantes que traziam as novidades e sotaques de outras paragens e que faziam centenas de quilómetros em estradas cheias de curvas e sem túneis só para fornecerem a Mário Péricles de Bragança. Traziam no mostruário as últimas levadas à estampa da Dom Quixote, das Publicações Europa-América, da Verbo, das Edições 70, dos Livros do Brasil, da Almedina de Coimbra e da Figueirinhas ou dos Livros Horizonte. Traziam Pessoa da Ática Editora. Traziam Florbela Espanca da Bertrand Editora.

Nas estantes da Livraria Mário Péricles também havia as letras de outras línguas, de outros olhares e pensares. Havia Isabel Allende, Hemingway, Kafka, Milan Kundera, Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marquez, Umberto Eco…

Havia tudo. Quase tudo. Se não houvesse, o Sr. Luís escrevia um bilhete postal com uma letra pequenina, letra de poeta, para pedir à editora. Mais tarde dizia-se ao cliente:

- Chega para a semana; Deve estar para chegar ou penso que esteja esgotado. – Mas chegava, sempre chegava.

Os anos passaram e a história da Livraria fez o seu caminho marcando várias gerações, banhando-as de letras, muitas letras. A sua maior marca não será mensurável, essa estará gravada de forma indelével no carácter daqueles que beberam na sua nascente, não o precioso líquido indispensável à vida, mas a não menos dispensável sabedoria que se colhe nas relações humanas de quem gosta, compra e lê um bom livro.


Livraria Mário Péricles (1938-2004)


RM

sexta-feira, 6 de maio de 2016

O Padre Telmo e outros assim (bons) como ele

Padre Telmo Batista Afonso (1929-2016)
Créditos - Unidade Pastoral Senhora da Saúde 


Vinha poucas vezes mas quando vinha trazia sempre consigo um sorriso que cativava. De modos simples e trato fácil, as conversas saíam com naturalidade. Gostava de o ouvir, sabia explicar-se e tinha um dom de lidar com as crianças como eu, de poucas falas e quase nenhuns sorrisos. Com ele sentia-me à vontade, não sentia aquelas barreiras que os adultos criam ao lidar com as crianças. Naturalmente, falava, cumprimentava. Como se nos conhecêssemos desde sempre. Depois era vê-lo, deambulando pela Livraria, pegando neste e naquele livro, dizendo sempre alguma coisa abonatória sobre o autor ou sobre o tema. Não gostando, nada dizia, não usava palavras amargas. Na hora de pagar, lamentava-se:
- Estão caros os livros! – Percebia-se que o comentário não viria da avareza do comprador mas antes da vida desprendida que terá levado e provavelmente das muitas almas que terá ajudado, não só lhes alimentando o espírito mas dando-lhes o outro pão, aquele que os pobres também agradecem. E saía. No ar, além do cheiro a papel velho e tintas, livros e revistas, pairava um ambiente desanuviado, aquele grau zero de começo de dia. O Padre Telmo, foi um daqueles que passam pelas nossas vidas, enriquecendo-as. Adicionando-as, nunca subtraindo.

Ao longo da vida, cruzei-me com outros ministros de Deus. Lembro-me do Padre Manuel, ainda tio por afinidade. No seu carocha preto, corria as estradas sinuosas até Fiães lá no Alto Minho. Parava sempre em Cavaleiros, onde eu passava as férias de verão na casa dos meus tios de Melgaço. De pele rosada, um pouco anafado, encostado ao muro e com a ajuda da navalha, comia duas ou três maçãs enquanto falava connosco. Sempre em tom clerical, ia-nos dando conselhos e fazendo perguntas sobre os nossos hábitos religiosos, censurando alguma falta. Sem nos olhar nos olhos mas fazendo notar que falava connosco. Gostava de o ouvir. O seu tom grave e sério cativava a minha atenção. Os seus olhos claros veiculavam preocupações com o seu rebanho e com as derivas do mundo.

Por esses dias, aos domingos, assistia à missa do Padre Adelino. Na altura, não andava zangado com estas coisas da fé, pelo contrário, gostava de assistir à Missa Jovem dinamizada com diapositivos, músicas e muitos cânticos. Sentia-me próximo…nesses domingos. Se bem me lembro, aquelas dinâmicas de juventude, não agradaram aos pares e à hierarquia. A Missa Jovem acabou. Perdeu-se um praticante.

Por alturas de 1997, talvez 98, o país crispava-se num debate em torno do referendo sobre o aborto. A Igreja posicionava-se e os seus pastores passavam a mensagem. Numa atividade da escola, que sendo laica, vai interagindo com a Igreja Católica, levei os meus alunos à Comunhão Pascal celebrada pelo pároco da aldeia onde à época dava aulas. Aproveitando o assunto da ordem do dia, mandatado, o Sr. Padre Cura, de dedo em riste, defendia a postura da Igreja. Não se estranhou o posicionamento, antes a pertinência de o fazer naquele tom crispado para crianças de seis, nove anos. A mensagem seria para os pais presentes mas na verdade, talvez e só talvez, os meninos assustados, sentiram o desconforto e o medo perante uma mensagem que não era para eles. Não tendo contactos privilegiados, algo me diz que nesse dia, ELE também ficou descontente com o desempenho do seu pastor.

No resto da vida, cruzei-me com vários padres, quase sempre por razões profissionais. Lembro-me especialmente de um, lá para os lados da Terra Quente. Disse-me um dia:
- Professor, não se desvie do seu caminho. A Escola ensina. A Escola alimenta. A Escola acarinha. A Escola acolhe. A Escola é Amor. – Por aqueles dias, a escola era notícia de jornal pelas piores razões ( a Escola só é notícia pelas piores razões) e naquele contexto conturbado onde nós próprios nos colocávamos em questão, aquelas palavras do sacerdote foram a mão certeira do pastor no seu rebanho em risco de tresmalhar. Homem de grande sensatez, condutor de jovens rejeitados, foi um grande exemplo. Ensinou-me a priorizar as aflições. 

Nesta viagem cabe a lembrança da Irmã Estela. Durante algum tempo trabalhei na instituição por ela dirigida. De mão firme mas de coração de manteiga, zelava pela vida de dezenas de raparigas institucionalizadas. Quando nos apresentamos, disse-me:
- Não imagina a sorte que tem em vir trabalhar connosco! 
Perante a responsabilidade, desagravando a austeridade, acrescentei: - Pois Irmã, a sorte para a Instituição é na mesma proporção da minha.
Há personalidades que se encaixam. Admirei aquela religiosa desde os primeiros contactos. A versatilidade com que lidava com as jovens, tanto reprimindo-as nos comportamentos errados, como distribuindo mimos em forma de beijos e abraços ou até comprando-lhe saias e sapatos de salto alto quando, mais espigadotas, começavam a olhar para o espelho. Um dia, depois de jantar, vi-a no recreio, aos pulinhos, atirando pedrinhas ao ar e batendo palmas ao mesmo tempo. Percebi que se pode ser feliz servindo os outros.

Claro que me cruzei com outros menos interessantes. Esses não cabem nesta crónica. Desses não me lembro o nome. Lembro-me do Padre Telmo do Zoio. Deixou-nos. Por esta altura já terá entrado noutras livrarias, como entrava na minha e sorrindo, sem dizer nada, dirá tudo.

RM