sábado, 28 de janeiro de 2017

Aspi e os outros


Aspi é diferente

Como sempre, Aspi refugia-se no canto do recreio. O mais distante da normalidade dos outros. Aqueles que brincam e jogam. Aqueles outros que namoram e se tocam. Ao toque de regressar à sala de aula, uns mais depressa que os outros, todos regressam. Todos menos Aspi. O silêncio que domina permite-lhe usufruir do bem-estar de querer ser só. De poder olhar a tília a partir da sua base, vendo o seu tronco e copa numa perspetiva interna, da árvore fazendo parte. Calma, silêncio que não procura, mas só nesse estado se apazigua. Ele não perceciona o mundo como os outros. Escuta todos os sons no seu volume máximo. Vê todos os detalhes à sua volta com nitidez microscópica. Sem filtros. Natureza pura na sua verdade cósmica. Prova o sabor sensorial que o stressa e esgota. Aspi não olha nos olhos. Olhar nos olhos é como cair num poço sem fundo. Angústia que evita escondendo-se em si mesmo. A sensação exacerbada é também fonte de prazer. Vê a beleza do mundo até aos mínimos detalhes. O mundo que se reflete no vidro duma garrafa. A casa em movimento no cromado polido daquele carro em andamento. O reflexo que lhe serve de casa, de abrigo e de escudo protetor. Na solidão do recreio, enquanto não dão pela sua ausência, Aspi alinha pedrinhas em sequências. Organiza folhas secas numa ordem singular. Movimenta-se em círculos, gesticulando em coreografias repetidas vezes sem conta. Procura assegurar a imutabilidade das coisas.

Aspi não gosta da escola

Notada a sua ausência, é levado para a sala de aula. Não quer e por isso grita. Porque grita? Porque é assim que comunica. Aspi tem oito anos e não diz uma palavra. Vive numa enorme solidão separado dos outros por paredes de vidro que ele quer contornar, correndo, ziguezagueando. Já na sala de aula, coloca-se num canto com as mãos nas orelhas, repetindo a atitude de todos os dias, se alguém se aproxima, grita. Não suporta ninguém por perto e muito menos que lhe toquem. 

Mais à frente, há-de querer brincar com os outros mas todos o recusam. Nas suas memórias não há brincadeiras de grupo. Se alguém, a muito custo, consegue comunicar com Aspi e diz alguma coisa interessante, abana as mãos em movimentos frenéticos. Quanto mais interessante, mais abana as mãos. Mas o que interessa a Aspi? O que causa brechas na sua redoma? Ele não mente. É racional e lógico. Tudo que seja mentir, enganar ou errar é secundário. É fugir à regra e a regra é fundamental. Ele gosta de se refugiar no campo da sua obsessão, no seu campo específico, um mundo onde tudo está em ordem, onde tudo é previsível, um mundo que se conhece muito bem. Ao contrário, o mundo real que lhe querem ensinar nos bancos da escola é sinónimo de caos, de mudanças permanentes e imprevisíveis.

Aspi procura os outros

Aspi quer aproximar-se dos outros mas não consegue. Todos estão acompanhados e Aspi está só. Não consegue integrar-se no grupo que se defende e repele a aproximação de quem é diferente, julgando-o. É a natureza humana dos normais, neurotípicos. Por vezes, a aproximação resulta em agressão. Os outros têm uma imaginação inacreditável para inventar torturas e levá-las à prática. Torturas físicas, humilhações físicas insuportáveis. Aspi não gosta de recordar aquelas agressões cruéis e perversas, insultos e provocações diárias, que por serem recorrentes, lhe pareciam normais. Mas não são. Aspi só quer viver a sua vida, com os seus cadernos e com os seus lápis. Cobardes agressores, gente sem luz.

Aspi cresce e procura o amor

- Tenho vinte e dois anos e nunca beijei uma rapariga. Acha isso normal Dr.? Porque não tenho o direito de me apaixonar?
O Dr. que procura ajudar Aspi a descodificar o mundo dito normal, responde:
- Não tens somente o direito… É uma necessidade. É necessário apaixonarmo-nos para construirmos, para avançarmos.

Aspi encontra o outro

Durante toda a sua vida, Aspi, recorrentemente, tinha um pesadelo que um dia contou: 

“ Eu sou um pequeno coelho parado no meio da autoestrada num dia de final de férias. Os carros vêm e vão e eu imóvel, apavorado, a ver os faróis dos carros a vir contra mim... Tem sido assim a vida toda.”

O destino reservou para Aspi alguém que cortasse o trânsito na autoestrada, lhe desse a mão e caminhassem juntos. Coincidiu com alguém também diferente, mas cujas diferenças não se manifestaram de igual forma. Onde ele tem dificuldade, ela é forte. Onde ela tem dificuldade, ele é forte. Se ele cai, ela levanta-o. Se ela cai, ele levanta-a. Apaixonaram-se. 

Aspi é bom no que faz

Ninguém pense que Aspi é um pobre de espírito, na verdade é dotado de uma inteligência fenomenal e sensibilidade artística impressionantes. Aspi foi o físico mais importante do Século XX (Albert Einstein), fez carreira como realizador, guionista e produtor de cinema (Steven Spielberg), descreveu a Lei da Gravitação Universal (Isaac Newton), fundou a Microsoft (Bill Gates), brilhou em vários desportos (Marcelo Rios, Roger Alston e Clay Marzo), promoveu o nascimento da eletricidade comercial (Nikola Tesla), criou os Pokémon (Satoshi Tajiri), cantou e tocou divinalmente (Susan Boyle e Glenn Gould), foi um brilhante programador informático (Bram Cohen) e recebeu o Nobel da Economia (Vemon Smith).
Aspi é um ser admirável.

RM


sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O Postigo da Noite


Terminavam as aulas. Os autocarros abalavam pelas estradas barrosãs para distribuir as poucas crianças que restavam. Na paragem da escola, ainda há pouco se ouvia o rebuliço efervescente dos jovens de mochilas às costas. No meio do bruaá, vozes estridentes forçavam-se por sobressair, numa postura de confronto e exibicionismo, perdoável a quem procura o seu lugar entre os seus semelhantes. No meio da balbúrdia havia sempre um ou outro mais ensimesmado, aparentemente distante da algazarra hormonal que libertava as tensões dos bancos da escola espartilhadas pelos regulamentos. 

No meio dos empurrões libertários, o professor afastava-se lentamente, deixando para trás a gritaria insana e os movimentos intempestivos dos gestos exagerados. Atravessava a rua sem olhar para trás, apressando mesmo o passo para se libertar daquele ruído que lhe agravava o zumbido nos ouvidos que o atormentava quando o silêncio se instalava. Saídos os autocarros, o silêncio dominava a rua da escola. De repente, ninguém. Só um ou outro cão vadio à procura de um resto de pão que ficasse esquecido na rua granítica e fria.

Corria Janeiro. As manhãs despontavam gélidas e não ajudavam ao humor dos poucos habitantes que se iam libertando das casas de estética duvidosa, construidas com o dinheiro da emigração. Os corpos dos homens destilavam o vinho martelado bebido na noite anterior nas tabernas, esquivando-se à realidade do desemprego e às vidas desalentadas. As mulheres renhiam e davam voz à má sorte dos casamentos, lamentando não ter ouvido os paizinhos que tantos avisos tinham feito sobre a conduta dos pretendentes, mas o amor, ah o amor! Amor que no princípio é só impulso, tudo consegue, tudo cria, tudo promete mas que tudo pode destruir…

O professor, homem cinzento, de poucas falas, passava indiferente. Por educação, respondia às boas horas que lhe endereçavam e continuava no seu passo desleixado. Deslocado e longe dos seus, motivado apenas em conseguir o seu sustento, vagueava pelos dias que se sucediam numa contagem decrescente que só terminava no regresso a casa. No final das aulas, todos os dias regressava a casa. Deixava para trás o ambiente amotinado de todas as liberdades e permissões. Ia para uma casa que não era sua, que não sentia sua. A porta de entrada rangia, queixando-se e pedindo óleo que lhe facilitasse a função. As lâmpadas de poucas velas, tornavam o ambiente fosco e frio. Um pouco por toda a casa nos móveis empoeirados, jaziam molduras com retratos de desconhecidos. O professor questionava-se sobre que vidas estariam por trás daqueles rostos, que comemorariam naqueles trajes de festa? Eles, com aqueles penteados de risca ao lado e bigodes farfalhudos. Elas, com permanentes muito bem armadas pela laca comprada nos chineses, envoltas em vestidos berrantes. Comunhões e casamentos certamente. As poses denunciavam os preparos do retratista a dizer olha o passarinho… No ar do quarto respirava-se o pó das alcatifas. Não se abriam as janelas porque o senhorio não gostava. Não se mexia nos cortinados porque se podiam estragar. Não se arranjava o candeeiro porque o senhorio não estava, tinha ido à cidade passar dois ou três dias com a filha. O professor sentava-se na cama fitando o olhar na cómoda das três gavetas. No tampo da cómoda, um monte de papéis guarda as composições dos alunos. Já deviam estar corrigidas mas não estavam. As poucas linhas que leu não o motivaram a continuar. Ali ficaram até que uma réstia de ânimo surgisse. E surgia. Sempre surgia naquelas horas de trabalho solitário que ninguém vê. Erguer-se e continuar. Mas não naquele dia. Manter-se-ia dormente e contemplativo. Tinha saudades do que estava para trás e aquele silêncio, aquele maldito silêncio! Onde estariam todos? Eram estes os compromissos dos homens? Era esta a vida do cidadão contribuinte? Era. 

Depois do jantar, o tempo crescia, alongava-se, permitindo as leituras que afastavam as manias depressivas e os lamentos injustificados. O sono não vinha. Nunca vinha e ainda bem. Só a ausência de sono permitiu ao professor tropeçar nas palavras de éter do Postigo da Noite. Na telefonia da mesinha de cabeceira, saíam as palavras que o professor queria ouvir. O formato radiofónico era simples: os ouvintes ligavam para a rádio e faziam-se companhia uns aos outros. Fernando Alves, o príncipe das palavras que merecem ser ditas, moderava as conversas. Foi nessas noites que ouviu as feridas dos combatentes, as saudades dos camionistas de longo curso, os dias difíceis da mãe que perdera o filho, o pedido de ajuda envergonhado de quem passava privações ou de quem sofria nas mãos tiranas de homens malignos. O Fernando sabia ouvir, dar os tempos certos e os empurrões necessários para que a conversa fluísse. Enriquecia as ideias com contributos de palavras sábias, umas vezes próprias, outras emprestadas, bebidas na literatura. Interrompia se a conversa tomasse um rumo que pusesse em causa a serenidade daquelas noites. De quando em vez, ouviam-se silêncios soluçados, denunciando dor ou solidão. No fundo, todos padecíamos das mesmas maleitas. Na companhia improvável encontrávamos a serenidade que talvez nos devolvesse o sono. 

À uma da madrugada, fechava-se o postigo. A TSF noticiava os males do mundo que, incomodando, não calavam tão fundo como as inquietações dos ouvintes do Postigo da Noite. 

Nunca liguei para o programa. Se o tivesse feito, a intervenção seria breve: Obrigado!

RM

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Olhares que se emprestam



Da janela de minha casa vejo tudo. Vejo os carros que passam cruzando as ruas. Vejo pessoas que carregam vidas. Vejo cães a farejar os dias. Vejo uma pega, nervosa, das matas arredia, pousando nos arbustos urbanos pulverizados pelos tubos de escape. Vejo casas. Muitas casas. Com vidas dentro delas e com histórias de alegrias e tristezas, comemorando o passar dos anos mas também chorando as despedidas. Tudo acontece dentro das casas que vejo da minha janela. Não que eu as espreite mas porque as sinto próximas, como se estivesse no seu interior. Como se testemunhasse a sua construção. Como se lamentasse o seu declínio que o devir do tempo, tirano, vais esculpindo devagar.

Em pequeno, gostava de ver construir casas, acompanhar todo o processo, desde as fundações para os alicerces até aos acabamentos. Da janela da minha infância vivia o quotidiano das construções. O martelar compassado, o rodar engenhoso das betoneiras, o sobe e desce das gruas que tornam leves as cargas, o trabalho articulado, conjunto, hierarquizado mas harmonioso, a operacionalidade, o saber fazer a obra que nascia e crescia pouco a pouco. Adorava assistir ao frenesim ocupado dos dias em se “botavam” as placas e a mobilização dos homens que, unindo força e engenho, acrescentava, esculpia a obra. Nesses dias, enredava-me no trabalho das betoneiras que não paravam. Areia, cimento e água nas medidas certas. Mãos calejadas, certeiras, arremessavam a areia, depois o cimento e por fim a água. Os olhos fixavam-se no movimento hipnotizador, circular da boca da betoneira que girava, girava…

Transportava-me para a vida que estava por vir, tentando entender o fascínio que a evolução das construções exercia em mim. Não, não sou engenheiro. Ensinaram-me a construir conhecimento. Uso muitas ferramentas porque as obras que levo a cabo são muito exigentes. Exigem que me adapte, que me recicle e que contorne as contingências. Exigem que me organize. Que conheça as medidas certas da pedagogia e do conhecimento. Que saiba lidar com todos, respeitando os seus espaços e sabedoria. Ajudo a construir pessoas. Ensino-as a ler e dou-lhe uma ferramenta para toda a vida. Ensino-as a observar, a mexer, a partilhar, a respeitar e a ser. Com elas, construo-me. Juntos lemos, observamos, mexemos, partilhamos, respeitamos e somos. Juntos. Empresto-lhes o meu olhar. Aquele que via as casas crescer. Também vejo pelos olhos dos outros. É uma belíssima experiência usar o olhar alheio. Experimentar outras perspetivas. Por vezes, basta ver diferente para que a obra evolua. 

Há também o lado triste das casas que se desmoronam. As paredes que se empalidecem. Os muros que se fragilizam, desnudando os alicerces, debilitados também. Os telhados que ruem destapando interiores e segredos, expondo vícios privados. E quanto orgulho nas construções que se reclassificam! Estoicamente hirtas. Vigorosas. Renovadas. Aquelas que enganam o tempo. Dignas por tempo indeterminado! Sentimentos construídos de antagonismos. 

As longas horas que passei a ver construir casas, foram afinal a projeção do que viria mais à frente. Deve haver algum ramo do conhecimento que explique isto. Para mim são somente metáforas de vida. E já não é pouco.

RM

sábado, 3 de dezembro de 2016

O Presépio de lata


A cidade engalanou-se para mais uma quadra natalícia. Eu e o Perdido deixamos o velhinho 240 D estacionado no sítio de sempre e fomos ver as luzes de Natal. Diziam que estavam muito bonitas. Descemos a Almirante Reis. Havia muito gente. Na drogaria Luso não se cabia. Os pais juntavam os parcos tostões e compravam os brinquedos anunciados na televisão espanhola: carros, bonecas, naves espaciais, pistas de comboio…

Enquanto eu admirava a montra da Luso, o Perdido escapuliu-se para a porta do Talho Gino, a ver se lhe tocava um ossito. Atravessei a rua e vi a senhora velhinha que mora no 13. Tinha escrito os bilhetes-postais para toda a família desejando Um Santo Natal e um Próspero Ano Novo. Que bonitos eram! Comprara os postais aos balcões dos Correios, à Maria Cândida que parece que ainda era sua parenta. Perguntei-lhe se precisava de ajuda e ela percebendo que a minha intenção era outra, disse-me para passar lá por casa, tinha uma coisa para mim.

Não sabia do Perdido, decerto estava enfiado nalgum canto, entretido a roer o osso que o Gino lhe dera. Continuei a descer a rua. Em frente à Perfumaria Transmontana, parei. Gostava de parar por ali e sentir as essências emanadas pelos frasquinhos de vidro. Queria dar um daqueles à Rosa mas eram caros. 

Era quarta-feira e não vi a minha Rosa. Não foi ao cemitério chorar na campa do marido. Esperei toda a tarde à porta do cemitério e nada. Nem lhe pude dar uma flor. Não lhe dei a flor. Coloquei-a na campa do marido da Rosa. Ali jazia Francisco Silveira, morto em combate. Devia ser bom homem pois a Rosa chorava tanto por ele. Nessa tarde de 24 de Dezembro de 1980, não vi a Rosa. E por não ver a Rosa, o dia não estava completo. Uma semana inteira à espera de a ver…

No outro lado da rua, na Pensão Internacional, nas vidraças das janelas viam-se umas luzinhas a piscar e uns sininhos dourados, recortados em papel metalizado comprado na Popular, logo ali abaixo. Desço um pouco mais e uma velhinha de cabelo branco apanhado num crutcho muito perfeitinho parecia esperar por alguém. Estava à porta da Pensão Rucha. Aproximei-me e a velhinha estendeu-me um farnel muito bem aconchegado num pano branco. Porque me oferecia a mim? Para partilhar com alguém especial, que merecesse. Agradeci à velhinha que envolta nas suas vestes negras, subiu as escadas e desapareceu. Cheirei o embrulho. Pareciam rabanadas ou seriam filhós?

Continuei pela Almirante Reis até à Praça da Sé. Na loja dos Coelhos vendia-se de tudo. No Ricardo tiravam-se retratos a meninos muito bem penteadinhos, com coletes aos losangos e calções pelo joelho. A Rosa D`Ouro vendia brinquedos, canetas Parker e outros agrados para o senhor e para a senhora. No relógio da Sé, batiam as dezanove, anunciando o encerramento do comércio. Sentei-me nas escadas que servem de base ao Pelourinho. O Perdido chegou com os beiços untados pelos restos do osso e sentou-se ao meu lado. Ficamos os dois a olhar para o Cruzeiro. Lá dentro, o lustre esforçava-se por brilhar. As pessoas foram saindo dos cafés e dos comércios. As ruas esvaziavam-se de gente que ainda há pouco corria apressada com sacos de compras distribuídos pelos dedos das mãos. As últimas compras. Um bolo-rei e uma garrafa de vinho fino comprados no Vítor Abreu. O Espanhol fechava as portadas e não se vendiam mais peças de pano. Ou botões. O Pinçlas fechava a charcutaria e desaparecia pela Travessa do Zé Machado. Na Rua Direita, a livraria de portas verdes exibia nas montras as novidades e atendia os últimos clientes. Faziam-se embrulhos em papel fantasia, enlaçados com lacinhos feitos de fitas de várias cores. Em frente, o Chico Romão, fechava a porta e apressava-se a beber um tintinho no Nazaré. E a rua morria. E a rua morreu. 

Regressamos ao 240 D estacionado à porta do cemitério. Abri o farnel que a velhinha Rucha me oferecera para “ partilhar com alguém muito especial”. As filhós douradas, moldadas por mãos experientes, estavam lindas e apetitosas. Parti uma ao meio e ofereci uma das metades ao Perdido. 

- Feliz Natal, amigo.

As outras guardei. Eram para a Rosa. Liguei o rádio velhinho que sem pedir licença, debitava versos tristes:

Três estrelas de alumínio
A luzir num céu de querosene
Um bêbedo julgando-se César
Faz um discurso solene

Sombras chinesas nas ruas
Esmeram-se aranhas nas teias
Impacientam-se gazuas
Corre o cavalo nas veias

Há uma luz na barraca
Lá dentro uma sagrada família
À porta um velho pneu com terra
Onde cresce uma buganvília

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,

Oiçam um choro de criança
Será branca negra ou mulata
Toquem as trompas da esperança
E anotem bem qual a data

A lua leva a boa nova
Aos arrabaldes mais distantes
Avisa os pastores sem teto
Tristes reis magos errantes
E vem um sol de chapa fina
Subindo a anunciar o dia
Dois anjinhos de cartolina
Vão cantando aleluia

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,

Nasceu enfim o menino
Foi posto aqui à falsa fé
A mãe deixou-o sozinho
E o pai não se sabe quem é

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells

(Carlos Tê / Rui Veloso)


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Soldado Milhões

Aníbal Augusto Milhais

A lenha crepitava no lume aceso daquele serão transmontano. O silêncio era interrompido pelos bocejos dos mais velhos e pelas brincadeiras do gato de trazer lá por casa.

- Avô, conta-me histórias da tua guerra.

O velho Milhões dormitava. Acordando, lamentava-se da chuva que não deixava fazer nada no campo.

- Já parava esta chuva, atrasa-se-me tudo…

O neto insistia:

- Conta, conta daquela vez que tu, sozinho, lutaste com mil alemães…

Aníbal Augusto Milhais dificilmente falava da guerra. Dizia que aquele tempo foi um tempo de tristeza e o que lhe valeu foi a fé que sempre teve na Nossa Senhora do Vale de Veigas. Quando alguém puxava o assunto da guerra, ele mudava de conversa. Acedendo, lamentava muito a morte do camarada “ Malha-vacas” que viu morrer ao seu lado, despedaçado por um morteiro:

- No dia 8, saí eu das linhas e sonhei com a Santa da minha terra. Disse aos meus amigos que estava contente com o sonho que tivera. Sonhara com a Santa que me sorrira muito. Estava eu a tomar o café quando rebentou o combate. Lá fomos para a frente. Pus a metralhadora às costas e fiz-me ao caminho. Só o “Malha-vacas” me acompanhou. Disse-lhe que o nosso Batalhão já tinha ido todo embora. Que ele também tinha de ir. Em Lacouture, escondemo-nos atrás de uma casa que estava a arder. Estava tudo a arder. Preparou-se o “Malha-vacas” para fugir… Coitadito, pouco correu. Correu para aí uns dez metros. Veio uma granada, bateu nele, esmigalhou-o. Eu nem vi nada dele. Mesmo na minha frente, mas eu não vi nada dele. Eu corri sempre…

As memórias do cenário de guerra embaciavam-lhe os olhos, rasos de lágrimas, mantinha no entanto a lucidez necessária para relatar como tudo começou:

- Os alemães progrediam rapidamente. Os primeiros combates do Batalhão de Infantaria 15, ocorreram na zona de Haute Maison. Perante a pressão alemã, um misto de tropas portuguesas e escocesas, retirou para La Fosse. Eu e o “Malha-vacas” ficamos para trás para dar apoio à retirada dos portugueses. Fiquei sozinho depois da morte do meu camarada…

Aníbal fixava os olhos no lume que ardia lentamente e pausava a memória. Triste.

- E depois avô? O que aconteceu?

- Entrei para um abrigo. Não vi ninguém. Só via fogo em roda de mim. Caíram granadas em cima do abrigo, voavam por todo o lado. Mais tarde, os alemães começaram então a avançar no campo de Lacouture. Vi esse campo coberto de gente. Os da fila da frente, vinham vestidos à portuguesa. Pouco depois, percebi que eram alemães que tinham tirado as fardas aos nossos mortos e prisioneiros. Avançavam em cima de motociclos, com capacetes altos. Foi então que vi que eram alemães. Abri fogo e essa invasão caiu toda. Passado algum tempo veio outra invasão. Tombou também. Uma metralhadora faz muito fogo. A última invasão já não era tamanha mas eu… “cortei-a” também. Não tornei a ver alemães. 

Do alto de Lacouture, o praça Milhais, sozinho, metralhou três invasões de soldados alemães. 

Apesar dos feitos heróicos, sofrido e quase ausente, continuava:

- No regresso, em direção a Saint Venant, “cortei” mais uns tantos. Punham-se de pé e logo caiam. Libertei soldados portugueses e escoceses, aflitos, cercados pelos alemães…

Naquele serão, não disse mais nada. Levantou-se e foi-se à cama. Já deitado, ouviu os morteiros e as granadas rebentar, viu corpos despedaçados, fogos, trincheiras e morte. Muita morte.

No escano, em frente à lareira, um dos filhos completava a história. Faltava dizer que antes de reencontrar os camaradas do Corpo Expedicionário Português, o avô, o soldado Milhais, ainda teve tempo de salvar uma criança abandonada ao seu destino e um oficial escocês que lutava contra a morte, prestes a afogar-se num pântano. Foi esse oficial que relatou as façanhas do valente soldado, escrevendo uma longa carta que deu origem ao relatório pormenorizado sobre as suas ações na batalha de La Lys, no dia 9 de Abril de 1918. Pelos seus atos, recebeu a Ordem Militar de Torre e Espada, Lealdade e Mérito. Foi depois de receber a condecoração que o seu nome mudou de Milhais para Milhões. No dia da condecoração, perante quinze mil soldados portugueses, o Marechal Gomes da Costa bateu-lhe a continência. À noite, ao jantar, Ferreira do Amaral, seu comandante no BI 15, questionou-o acerca do seu verdadeiro nome, respondeu:

- Aníbal Augusto Milhais.

- És Milhais, mas vales Milhões!

E Milhões ficou para o que resta de História.

Soldado Milhões



NOTA: Ficção baseada em factos reais retirados do testemunho na primeira pessoa do Soldado Milhões, em gravação áudio. 

A madrugada de 9 de Abril de 1918, nas trincheiras da Grande Guerra, no Norte de França, marcou um dos maiores desastres da história militar portuguesa. Atacada por forças alemãs muito superiores em número, a 2.ª divisão do Corpo Expedicionário Português (CEP), com 20 000 homens, foi facilmente derrotada. O desastre ficou, porém, marcado por uma história heróica: o soldado transmontano Aníbal Augusto Milhais, natural do Concelho de Murça, sozinho com a sua metralhadora, continuou a disparar, travando o avanço alemão, passando à História como o “ Soldado Milhões”.

in Almanaque Republicano, arepublicano.blogspot.pt

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Balcão de Agradecimento


Desorientado, percorria o corredor da ala de Medicina-Homens parando em cada porta. Com toda a calma, trocava os óculos de ver ao longe pelos de ver ao perto e lia os letreiros, sem pressa, no vagar próprio de quem já há muito encontrou o ritmo certo dos seus dias. O segurança pediu-lhe que seguisse, que não interrompesse o corredor. Tomeno, imperturbável, continuava a sua procura. Tinha ideia que era do lado direito, sim, era, via-se até o heliporto e a azáfama das chegadas e partidas dos doentes urgentes.

BALCÃO DE ATENDIMENTO

Era ali! Feliz com a descoberta, dirigiu-se ao balcão onde uma senhora com ar enfadado, espreitava por cima dos óculos, lamentando-se do sistema informático que estava outra vez em baixo e dos calores inesperados, próprios de transições a que ninguém escapa. Indiferente ao mal-estar da senhora, Tomeno preparava-se para falar quando, bruscamente, foi impedido. Que esperasse pela sua vez. Que já lá tinha estado de manhã. Qual era a dúvida?

- É para combinar as coisas bem combinadinhas… São dois ou três dias? Hoje de manhã, ao chegar a casa fiquei com essa dúvida.

Que esperasse, que tinha gente à frente, que isto e mais aquilo. O Tomeno só queria saber quanto tempo ia ficar internado. Dois, três dias? Estaria preocupado com o seu estado de saúde? Andava com uma pontada ali, no lado esquerdo. E outros sinais que nem queria valorizar. Também andava esquecido, não punha sentido nas coisas, não ouvia bem, as digestões sobressaltavam-lhe as tardes, andava com dores de cabeça, cegavam-no as cataratas, fraquejavam-lhe as pernas, tinha dificuldades em respirar… Tudo a desandar! Um corpo que falia lentamente.

Seria de esperar que andasse preocupado com a sua saúde. Naturalmente, lamentava a vida que lhe fugia. Interiormente, queixava-se da sua condição fragilizada. Mas quase inexplicavelmente, a sua urgência era outra. A sua angústia não se devia à lenta falência do seu velho corpo. A sua preocupação não passava pelo seu bem estar…

Quando finalmente pôde falar, pausadamente foi dizendo que precisava saber quantos dias seriam de internamento. Tinha de ser tudo muito bem combinadinho. Tinha de ter certezas. Não podiam restar dúvidas. Dois dias seria diferente do que se fossem três. A Matilde aguentava uma semana se fosse necessário, olha logo essa que não lhe ligava nenhuma. Quando andava na vida dela, não passava cartão a ninguém. Às vezes descuidava-se e lá vinha ninhada para o Tomeno cuidar e era um problema minha senhora, ninguém queria gatos. O problema era outro, e bem mais grave. Estava muito ralado com aquilo. O melhor era adiar a cirurgia, talvez falando com o Sr. Dr., nem era urgente, até já estava a sentir-se melhor.

- A Belinha não aguenta mais que três dias…

A Sr.ª dos óculos na ponta do nariz, atrapalhada com os calores das tais transições, fartinha de mas mas e ses e ses, atirou:

- Mas que diz você homem de Deus, quem é a Matilde?

- É uma gata.

- E a Belinha?

Endireitando as costas, corrigindo a postura, salivou a boca e do mais fundo da sua gratidão, disse enternecido: 

- É uma cadelinha que lá tenho.


Rui Machado


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Sai dessa noite fria




Pela noite dentro, envolta no nevoeiro, a Lua já ia alta. As folhas velhas de outono estalavam sob o corpo arrastado de Sebastião. Num andar dez e dez à Charlie Chaplin, arrastava os pés um depois do outro. As solas dos sapatos já gastas, mostravam um andar cansado e insinuavam umas meias encardidas pelo tempo que tudo leva, gasta e cansa. Sebastião regressava a casa. Gastara a noite na sala de espera da estação rodoviária. Sentia-se bem por lá, varrendo o chão com o seu andar arrastado, de um lado para o outro, vigiando as chegadas e as partidas dos autocarros.

Na vida de Sebastião houve muitas chegadas e partidas. Queimara as forças da juventude carregando mercadorias nos vagões da CP. Em 75 regressara de Angola onde fizera uma guerra que diziam também ser sua, lutando pela soberania duma metrópole que ele não conhecia. Lembrava-se das lições dos livros da escola primária e das palmatoadas da professora Perpétua. Ensinamentos que duram até hoje, gravados nas palmas das mãos. Só conheceu Lisboa quando foi para a guerra e quando dela voltou. No regresso, andou uns dias perdido em Belém, junto ao Tejo, em labirintos de caixotes de madeira. Procurava uma vida que tinha deixado em África, terra de todos os cheiros e de mulheres de pele de ébano, de curvas generosas, submissas e de sorrisos autênticos. Passou uns meses numa pensão paga pelo IARN, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais. Não resolveu a vida pela capital. Regressou à terra, ele e mais 16 000 almas que regressados a Bragança, constituíam 10% da população residente desse distrito longínquo e esquecido.

Passaram quarenta anos, corria novembro dum outono interminável. A noite continuava fria e as poucas folhas das árvores anunciavam a proximidade do inverno e das noites longas. Regressava a casa deixando o quente da sala de espera da rodoviária. Chegando a casa, a rotina diária: como sempre, penduraria no bengaleiro da entrada o casaco de lã, têxtil grosso n.º 2, azul petróleo. Descalçaria os sapatos, conferiria a evolução dos joanetes e calçaria os chinelos de chambre comprados em Calabor. Não gostava das noites passadas em casa. Noutros tempos, seria altura de provar o vinho novo e comer castanhas numa qualquer taberna da cidade, dando sempre primazia à do João Francês, na Rua do Norte. Sempre que o Francês se altercava com a mulher ou abusava das provas com os fregueses, a taberna não abria. Nessas noites, Sebastião rumava às tabernas da Estação de Caminhos de Ferro. Não gostava. A Estação dos Comboios trazia-lhe memórias de outros tempos que não gostava de revisitar. 

Foi numa dessas noites que conheceu Batilde. A solidão de muitos anos e um corpo que de quando em vez, ainda pedia atenções, fizeram-no sorrir a Batilde. A vida tornara-o um homem amargo marcado pela guerra de África e pelo fim dos comboios. Era um solitário. Não se lhe conheciam amigos e de familiares não havia notícia. As portas da taberna do judeu já estavam fechadas. Sebastião e mais um par de bêbados, bebiam as últimas taças de tinto. O grau forte do tinto das Arcas dera-lhe a destreza necessária para sorrir a Batilde. Aparentemente, Sebastião não se importou com a condição de Batilde, mulher da vida que tentava enganar os ébrios atoleimados nas noites longas de desvario. Batilde era um resto de civilização. Pobre, feia e mal amanhada, sobrevivia prestando favores aos que, tal como ela, jaziam pelas cercanias da estação, esquecidos por todos e convenientemente ignorados pelas famílias. Ela não sabia contar a sua história de vida. Não conhecia as palavras necessárias para o relato. A sua destreza intelectual só dava para arranjar maneira de conseguir a malga de caldo que lhe aconchegava o estômago cansado de reclamar. O seu ciclo intelectual recomeçava na última colher de sopa, pensando de imediato quando comeria a próxima… Uns dizem que Batilde viera servir para a cidade em casa de gente rica mas que o patrão a tinha prenhado, desvario que a levou à expulsão da condição de criada de servir da fidalguia. Outros dizem que não resistiu aos avanços persistentes de um marçano que vendia tecidos na retrosaria Confiança. Dizia-se que durante dez dias, fugiram os dois para Espanha onde, em pouco tempo, sacrificaram as economias do marçano. Viveram de expedientes mas não tardaram a ser escorraçados de volta, devidamente escoltados pela Guardia. Duas noites dormidas no Governo Civil e uns favores a crédito ao oficial de justiça,devolveram Batilde à rua, donde não mais saiu.

Naquela noite, Batilde sorriu o seu melhor sorriso a Sebastião, apesar da dentição descuidada, fazia promessas de atenção e insinuava um iminente conforto nos seios abalados, desgraçados pelos ossos do ofício e pelo uso excessivo. Sebastião achou-a bonita. Apreciava a generosidade das carnes há muito curadas. Sem falar, dirigiu-se à mesa do canto e ofereceu um copo de tinto a Batilde. Ela não se fez rogada e de um só trago bebeu o vinho martelado, feito com as águas do ribeiro e com os pós para o vinho comprados no boticário da avenida. Ao beber, fez um esgar de desconforto, alisando a proeminência abdominal, reclamando a ausência de sustento. Percebendo a intenção, Sebastião pediu ao judeu um pedaço de carne gorda e já agora, porque era dia de festa, um cesto de pão e azeitonas. Enquanto Batilde comia, Sebastião olhava-a enternecido. Satisfeitas as necessidades alimentares, as horas tardias aconselhavam o regresso a casa. Sem dizer nada, Sebastião pegou na mão de Batilde e levou-a consigo. Ela não oferecera resistência nem dissera nada. Pelo caminho, dois seres errantes, varriam as folhas da rua, arrastando os pés, ela mancando, ele com os pés de lado. Quem apreciasse o quadro à distância, veria o vapor que saía das suas bocas ofegantes. No caminho, ele à frente, a dez metros atrás, ela. 

E foi assim que Sebastião conheceu Batilde. E foi assim que Batilde resolveu o problema da próxima malga de caldo. Naquela noite, chegados a casa, Sebastião mostrou o quarto a Batilde. Rotinada na sua função, preparava-se para atender as necessidades de Sebastião. Com um simples gesto de mão, o velho negou os preparos.

- Não é preciso, descansa e dorme. Primeiro temos de nos conhecer, de nos aproximar. 

A mulher incrédula, aproveitou as tréguas e esticou o corpo na humilde enxerga. Depois de tantas privações, dias, anos de desconforto, pareceu-lhe um aposento Real. Batilde dormiu doze horas seguidas. Quando acordou não sabia bem onde estava. Passou a flanela dos lençóis pela face e julgou-se no paraíso. Abraçou a almofada de sumaúma e espreguiçou-se mais uma vez. Fora tão bom poder dormir numa cama só para ela sem ter de a partilhar com bêbados mal cheirosos ou outras colegas da vida. Tantas noites mal dormidas ao relento, nos bancos do jardim, sem dinheiro para pagar o quarto lúgubre e bafiento. Levantou-se, os ossos reclamaram mais descanso. Contrariados, lá se encaixaram e sustentaram um corpo abalado e dormente. Chinelando pelo quarto, deparou com a sua triste figura. Olhando para o espelho, vislumbrou a sua triste condição: velha, suja, um trapo, andrajosa, torpe. Feia. No silêncio do quarto, chorou. Sem rumo e sem forças, sentou-se de novo na cama, escondendo a face com ambas as mãos. Soluçando. Sofrendo com o seu destino. O conforto das horas bem dormidas, desapareceu num ápice. Esfumou-se. Por breves momentos, quase se sentiu normal. Com vida. Com objetivos. Com memórias. Com sonhos. Tudo efémero. A dureza dos traços da sua face devolveu-a à realidade. A crueldade que o espelho refletia não dava esperança. Pareceu-lhe durante a noite ter sonhado com uma vida ao lado de Sebastião. Parecia um bom homem. Meigo. Calmo. Podia, talvez, ter uma vida. Não pedia muito. Paz e um pouco de calor nas longas noites de frio. E uma côdea a horas certas. E poder tomar banho de água quente. Em poucos minutos pensou em tanta coisa, quase conseguiu arrumar algumas ideias. Não era habitual. Para não sofrer, desistira de pensar. Sobrevoava os dias com fome, miséria e solidão.

Sebastião bateu levemente na porta do quarto, entreabriu-a e deparou-se com Batilde a chorar, dobrada sobre si, reduzida, mínima.

- Anda! Vem! Não chores. Sai dessa noite fria. Está um dia bonito lá fora. Vamos passear. Preparei-te umas roupas e um banho quente.

No quarto de banho, Batilde desfez-se dos andrajos e mergulhou o corpo em água quente. Deixou-se estar por breves momentos. Estranhou aquele bem-estar repentino, suavemente o corpo foi relaxando. Recostada, fechou os olhos e percorreu o corpo com as suas mãos, radiografando as marcas de uma vida de sofrimento. Cada mazela tinha um nome, um momento… No seu corpo havia vestígios de muitos homens, restos de abusos, detritos de vidas desnorteadas. Massajou o pescoço e os ombros. Sentiu os seios intumescidos, resultado de prazeres há muito esquecidos. Tocou-se. As entranhas queixaram-se, retraindo-se, desabituadas que estavam de toques delicados. 

Naquela água suja, ficariam os resíduos de vidas passadas.

novembro de 2016

Rui Machado