sábado, 28 de janeiro de 2017

Aspi e os outros


Aspi é diferente

Como sempre, Aspi refugia-se no canto do recreio. O mais distante da normalidade dos outros. Aqueles que brincam e jogam. Aqueles outros que namoram e se tocam. Ao toque de regressar à sala de aula, uns mais depressa que os outros, todos regressam. Todos menos Aspi. O silêncio que domina permite-lhe usufruir do bem-estar de querer ser só. De poder olhar a tília a partir da sua base, vendo o seu tronco e copa numa perspetiva interna, da árvore fazendo parte. Calma, silêncio que não procura, mas só nesse estado se apazigua. Ele não perceciona o mundo como os outros. Escuta todos os sons no seu volume máximo. Vê todos os detalhes à sua volta com nitidez microscópica. Sem filtros. Natureza pura na sua verdade cósmica. Prova o sabor sensorial que o stressa e esgota. Aspi não olha nos olhos. Olhar nos olhos é como cair num poço sem fundo. Angústia que evita escondendo-se em si mesmo. A sensação exacerbada é também fonte de prazer. Vê a beleza do mundo até aos mínimos detalhes. O mundo que se reflete no vidro duma garrafa. A casa em movimento no cromado polido daquele carro em andamento. O reflexo que lhe serve de casa, de abrigo e de escudo protetor. Na solidão do recreio, enquanto não dão pela sua ausência, Aspi alinha pedrinhas em sequências. Organiza folhas secas numa ordem singular. Movimenta-se em círculos, gesticulando em coreografias repetidas vezes sem conta. Procura assegurar a imutabilidade das coisas.

Aspi não gosta da escola

Notada a sua ausência, é levado para a sala de aula. Não quer e por isso grita. Porque grita? Porque é assim que comunica. Aspi tem oito anos e não diz uma palavra. Vive numa enorme solidão separado dos outros por paredes de vidro que ele quer contornar, correndo, ziguezagueando. Já na sala de aula, coloca-se num canto com as mãos nas orelhas, repetindo a atitude de todos os dias, se alguém se aproxima, grita. Não suporta ninguém por perto e muito menos que lhe toquem. 

Mais à frente, há-de querer brincar com os outros mas todos o recusam. Nas suas memórias não há brincadeiras de grupo. Se alguém, a muito custo, consegue comunicar com Aspi e diz alguma coisa interessante, abana as mãos em movimentos frenéticos. Quanto mais interessante, mais abana as mãos. Mas o que interessa a Aspi? O que causa brechas na sua redoma? Ele não mente. É racional e lógico. Tudo que seja mentir, enganar ou errar é secundário. É fugir à regra e a regra é fundamental. Ele gosta de se refugiar no campo da sua obsessão, no seu campo específico, um mundo onde tudo está em ordem, onde tudo é previsível, um mundo que se conhece muito bem. Ao contrário, o mundo real que lhe querem ensinar nos bancos da escola é sinónimo de caos, de mudanças permanentes e imprevisíveis.

Aspi procura os outros

Aspi quer aproximar-se dos outros mas não consegue. Todos estão acompanhados e Aspi está só. Não consegue integrar-se no grupo que se defende e repele a aproximação de quem é diferente, julgando-o. É a natureza humana dos normais, neurotípicos. Por vezes, a aproximação resulta em agressão. Os outros têm uma imaginação inacreditável para inventar torturas e levá-las à prática. Torturas físicas, humilhações físicas insuportáveis. Aspi não gosta de recordar aquelas agressões cruéis e perversas, insultos e provocações diárias, que por serem recorrentes, lhe pareciam normais. Mas não são. Aspi só quer viver a sua vida, com os seus cadernos e com os seus lápis. Cobardes agressores, gente sem luz.

Aspi cresce e procura o amor

- Tenho vinte e dois anos e nunca beijei uma rapariga. Acha isso normal Dr.? Porque não tenho o direito de me apaixonar?
O Dr. que procura ajudar Aspi a descodificar o mundo dito normal, responde:
- Não tens somente o direito… É uma necessidade. É necessário apaixonarmo-nos para construirmos, para avançarmos.

Aspi encontra o outro

Durante toda a sua vida, Aspi, recorrentemente, tinha um pesadelo que um dia contou: 

“ Eu sou um pequeno coelho parado no meio da autoestrada num dia de final de férias. Os carros vêm e vão e eu imóvel, apavorado, a ver os faróis dos carros a vir contra mim... Tem sido assim a vida toda.”

O destino reservou para Aspi alguém que cortasse o trânsito na autoestrada, lhe desse a mão e caminhassem juntos. Coincidiu com alguém também diferente, mas cujas diferenças não se manifestaram de igual forma. Onde ele tem dificuldade, ela é forte. Onde ela tem dificuldade, ele é forte. Se ele cai, ela levanta-o. Se ela cai, ele levanta-a. Apaixonaram-se. 

Aspi é bom no que faz

Ninguém pense que Aspi é um pobre de espírito, na verdade é dotado de uma inteligência fenomenal e sensibilidade artística impressionantes. Aspi foi o físico mais importante do Século XX (Albert Einstein), fez carreira como realizador, guionista e produtor de cinema (Steven Spielberg), descreveu a Lei da Gravitação Universal (Isaac Newton), fundou a Microsoft (Bill Gates), brilhou em vários desportos (Marcelo Rios, Roger Alston e Clay Marzo), promoveu o nascimento da eletricidade comercial (Nikola Tesla), criou os Pokémon (Satoshi Tajiri), cantou e tocou divinalmente (Susan Boyle e Glenn Gould), foi um brilhante programador informático (Bram Cohen) e recebeu o Nobel da Economia (Vemon Smith).
Aspi é um ser admirável.

RM


sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O Postigo da Noite


Terminavam as aulas. Os autocarros abalavam pelas estradas barrosãs para distribuir as poucas crianças que restavam. Na paragem da escola, ainda há pouco se ouvia o rebuliço efervescente dos jovens de mochilas às costas. No meio do bruaá, vozes estridentes forçavam-se por sobressair, numa postura de confronto e exibicionismo, perdoável a quem procura o seu lugar entre os seus semelhantes. No meio da balbúrdia havia sempre um ou outro mais ensimesmado, aparentemente distante da algazarra hormonal que libertava as tensões dos bancos da escola espartilhadas pelos regulamentos. 

No meio dos empurrões libertários, o professor afastava-se lentamente, deixando para trás a gritaria insana e os movimentos intempestivos dos gestos exagerados. Atravessava a rua sem olhar para trás, apressando mesmo o passo para se libertar daquele ruído que lhe agravava o zumbido nos ouvidos que o atormentava quando o silêncio se instalava. Saídos os autocarros, o silêncio dominava a rua da escola. De repente, ninguém. Só um ou outro cão vadio à procura de um resto de pão que ficasse esquecido na rua granítica e fria.

Corria Janeiro. As manhãs despontavam gélidas e não ajudavam ao humor dos poucos habitantes que se iam libertando das casas de estética duvidosa, construidas com o dinheiro da emigração. Os corpos dos homens destilavam o vinho martelado bebido na noite anterior nas tabernas, esquivando-se à realidade do desemprego e às vidas desalentadas. As mulheres renhiam e davam voz à má sorte dos casamentos, lamentando não ter ouvido os paizinhos que tantos avisos tinham feito sobre a conduta dos pretendentes, mas o amor, ah o amor! Amor que no princípio é só impulso, tudo consegue, tudo cria, tudo promete mas que tudo pode destruir…

O professor, homem cinzento, de poucas falas, passava indiferente. Por educação, respondia às boas horas que lhe endereçavam e continuava no seu passo desleixado. Deslocado e longe dos seus, motivado apenas em conseguir o seu sustento, vagueava pelos dias que se sucediam numa contagem decrescente que só terminava no regresso a casa. No final das aulas, todos os dias regressava a casa. Deixava para trás o ambiente amotinado de todas as liberdades e permissões. Ia para uma casa que não era sua, que não sentia sua. A porta de entrada rangia, queixando-se e pedindo óleo que lhe facilitasse a função. As lâmpadas de poucas velas, tornavam o ambiente fosco e frio. Um pouco por toda a casa nos móveis empoeirados, jaziam molduras com retratos de desconhecidos. O professor questionava-se sobre que vidas estariam por trás daqueles rostos, que comemorariam naqueles trajes de festa? Eles, com aqueles penteados de risca ao lado e bigodes farfalhudos. Elas, com permanentes muito bem armadas pela laca comprada nos chineses, envoltas em vestidos berrantes. Comunhões e casamentos certamente. As poses denunciavam os preparos do retratista a dizer olha o passarinho… No ar do quarto respirava-se o pó das alcatifas. Não se abriam as janelas porque o senhorio não gostava. Não se mexia nos cortinados porque se podiam estragar. Não se arranjava o candeeiro porque o senhorio não estava, tinha ido à cidade passar dois ou três dias com a filha. O professor sentava-se na cama fitando o olhar na cómoda das três gavetas. No tampo da cómoda, um monte de papéis guarda as composições dos alunos. Já deviam estar corrigidas mas não estavam. As poucas linhas que leu não o motivaram a continuar. Ali ficaram até que uma réstia de ânimo surgisse. E surgia. Sempre surgia naquelas horas de trabalho solitário que ninguém vê. Erguer-se e continuar. Mas não naquele dia. Manter-se-ia dormente e contemplativo. Tinha saudades do que estava para trás e aquele silêncio, aquele maldito silêncio! Onde estariam todos? Eram estes os compromissos dos homens? Era esta a vida do cidadão contribuinte? Era. 

Depois do jantar, o tempo crescia, alongava-se, permitindo as leituras que afastavam as manias depressivas e os lamentos injustificados. O sono não vinha. Nunca vinha e ainda bem. Só a ausência de sono permitiu ao professor tropeçar nas palavras de éter do Postigo da Noite. Na telefonia da mesinha de cabeceira, saíam as palavras que o professor queria ouvir. O formato radiofónico era simples: os ouvintes ligavam para a rádio e faziam-se companhia uns aos outros. Fernando Alves, o príncipe das palavras que merecem ser ditas, moderava as conversas. Foi nessas noites que ouviu as feridas dos combatentes, as saudades dos camionistas de longo curso, os dias difíceis da mãe que perdera o filho, o pedido de ajuda envergonhado de quem passava privações ou de quem sofria nas mãos tiranas de homens malignos. O Fernando sabia ouvir, dar os tempos certos e os empurrões necessários para que a conversa fluísse. Enriquecia as ideias com contributos de palavras sábias, umas vezes próprias, outras emprestadas, bebidas na literatura. Interrompia se a conversa tomasse um rumo que pusesse em causa a serenidade daquelas noites. De quando em vez, ouviam-se silêncios soluçados, denunciando dor ou solidão. No fundo, todos padecíamos das mesmas maleitas. Na companhia improvável encontrávamos a serenidade que talvez nos devolvesse o sono. 

À uma da madrugada, fechava-se o postigo. A TSF noticiava os males do mundo que, incomodando, não calavam tão fundo como as inquietações dos ouvintes do Postigo da Noite. 

Nunca liguei para o programa. Se o tivesse feito, a intervenção seria breve: Obrigado!

RM