sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Olhares que se emprestam



Da janela de minha casa vejo tudo. Vejo os carros que passam cruzando as ruas. Vejo pessoas que carregam vidas. Vejo cães a farejar os dias. Vejo uma pega, nervosa, das matas arredia, pousando nos arbustos urbanos pulverizados pelos tubos de escape. Vejo casas. Muitas casas. Com vidas dentro delas e com histórias de alegrias e tristezas, comemorando o passar dos anos mas também chorando as despedidas. Tudo acontece dentro das casas que vejo da minha janela. Não que eu as espreite mas porque as sinto próximas, como se estivesse no seu interior. Como se testemunhasse a sua construção. Como se lamentasse o seu declínio que o devir do tempo, tirano, vais esculpindo devagar.

Em pequeno, gostava de ver construir casas, acompanhar todo o processo, desde as fundações para os alicerces até aos acabamentos. Da janela da minha infância vivia o quotidiano das construções. O martelar compassado, o rodar engenhoso das betoneiras, o sobe e desce das gruas que tornam leves as cargas, o trabalho articulado, conjunto, hierarquizado mas harmonioso, a operacionalidade, o saber fazer a obra que nascia e crescia pouco a pouco. Adorava assistir ao frenesim ocupado dos dias em se “botavam” as placas e a mobilização dos homens que, unindo força e engenho, acrescentava, esculpia a obra. Nesses dias, enredava-me no trabalho das betoneiras que não paravam. Areia, cimento e água nas medidas certas. Mãos calejadas, certeiras, arremessavam a areia, depois o cimento e por fim a água. Os olhos fixavam-se no movimento hipnotizador, circular da boca da betoneira que girava, girava…

Transportava-me para a vida que estava por vir, tentando entender o fascínio que a evolução das construções exercia em mim. Não, não sou engenheiro. Ensinaram-me a construir conhecimento. Uso muitas ferramentas porque as obras que levo a cabo são muito exigentes. Exigem que me adapte, que me recicle e que contorne as contingências. Exigem que me organize. Que conheça as medidas certas da pedagogia e do conhecimento. Que saiba lidar com todos, respeitando os seus espaços e sabedoria. Ajudo a construir pessoas. Ensino-as a ler e dou-lhe uma ferramenta para toda a vida. Ensino-as a observar, a mexer, a partilhar, a respeitar e a ser. Com elas, construo-me. Juntos lemos, observamos, mexemos, partilhamos, respeitamos e somos. Juntos. Empresto-lhes o meu olhar. Aquele que via as casas crescer. Também vejo pelos olhos dos outros. É uma belíssima experiência usar o olhar alheio. Experimentar outras perspetivas. Por vezes, basta ver diferente para que a obra evolua. 

Há também o lado triste das casas que se desmoronam. As paredes que se empalidecem. Os muros que se fragilizam, desnudando os alicerces, debilitados também. Os telhados que ruem destapando interiores e segredos, expondo vícios privados. E quanto orgulho nas construções que se reclassificam! Estoicamente hirtas. Vigorosas. Renovadas. Aquelas que enganam o tempo. Dignas por tempo indeterminado! Sentimentos construídos de antagonismos. 

As longas horas que passei a ver construir casas, foram afinal a projeção do que viria mais à frente. Deve haver algum ramo do conhecimento que explique isto. Para mim são somente metáforas de vida. E já não é pouco.

RM

sábado, 3 de dezembro de 2016

O Presépio de lata


A cidade engalanou-se para mais uma quadra natalícia. Eu e o Perdido deixamos o velhinho 240 D estacionado no sítio de sempre e fomos ver as luzes de Natal. Diziam que estavam muito bonitas. Descemos a Almirante Reis. Havia muito gente. Na drogaria Luso não se cabia. Os pais juntavam os parcos tostões e compravam os brinquedos anunciados na televisão espanhola: carros, bonecas, naves espaciais, pistas de comboio…

Enquanto eu admirava a montra da Luso, o Perdido escapuliu-se para a porta do Talho Gino, a ver se lhe tocava um ossito. Atravessei a rua e vi a senhora velhinha que mora no 13. Tinha escrito os bilhetes-postais para toda a família desejando Um Santo Natal e um Próspero Ano Novo. Que bonitos eram! Comprara os postais aos balcões dos Correios, à Maria Cândida que parece que ainda era sua parenta. Perguntei-lhe se precisava de ajuda e ela percebendo que a minha intenção era outra, disse-me para passar lá por casa, tinha uma coisa para mim.

Não sabia do Perdido, decerto estava enfiado nalgum canto, entretido a roer o osso que o Gino lhe dera. Continuei a descer a rua. Em frente à Perfumaria Transmontana, parei. Gostava de parar por ali e sentir as essências emanadas pelos frasquinhos de vidro. Queria dar um daqueles à Rosa mas eram caros. 

Era quarta-feira e não vi a minha Rosa. Não foi ao cemitério chorar na campa do marido. Esperei toda a tarde à porta do cemitério e nada. Nem lhe pude dar uma flor. Não lhe dei a flor. Coloquei-a na campa do marido da Rosa. Ali jazia Francisco Silveira, morto em combate. Devia ser bom homem pois a Rosa chorava tanto por ele. Nessa tarde de 24 de Dezembro de 1980, não vi a Rosa. E por não ver a Rosa, o dia não estava completo. Uma semana inteira à espera de a ver…

No outro lado da rua, na Pensão Internacional, nas vidraças das janelas viam-se umas luzinhas a piscar e uns sininhos dourados, recortados em papel metalizado comprado na Popular, logo ali abaixo. Desço um pouco mais e uma velhinha de cabelo branco apanhado num crutcho muito perfeitinho parecia esperar por alguém. Estava à porta da Pensão Rucha. Aproximei-me e a velhinha estendeu-me um farnel muito bem aconchegado num pano branco. Porque me oferecia a mim? Para partilhar com alguém especial, que merecesse. Agradeci à velhinha que envolta nas suas vestes negras, subiu as escadas e desapareceu. Cheirei o embrulho. Pareciam rabanadas ou seriam filhós?

Continuei pela Almirante Reis até à Praça da Sé. Na loja dos Coelhos vendia-se de tudo. No Ricardo tiravam-se retratos a meninos muito bem penteadinhos, com coletes aos losangos e calções pelo joelho. A Rosa D`Ouro vendia brinquedos, canetas Parker e outros agrados para o senhor e para a senhora. No relógio da Sé, batiam as dezanove, anunciando o encerramento do comércio. Sentei-me nas escadas que servem de base ao Pelourinho. O Perdido chegou com os beiços untados pelos restos do osso e sentou-se ao meu lado. Ficamos os dois a olhar para o Cruzeiro. Lá dentro, o lustre esforçava-se por brilhar. As pessoas foram saindo dos cafés e dos comércios. As ruas esvaziavam-se de gente que ainda há pouco corria apressada com sacos de compras distribuídos pelos dedos das mãos. As últimas compras. Um bolo-rei e uma garrafa de vinho fino comprados no Vítor Abreu. O Espanhol fechava as portadas e não se vendiam mais peças de pano. Ou botões. O Pinçlas fechava a charcutaria e desaparecia pela Travessa do Zé Machado. Na Rua Direita, a livraria de portas verdes exibia nas montras as novidades e atendia os últimos clientes. Faziam-se embrulhos em papel fantasia, enlaçados com lacinhos feitos de fitas de várias cores. Em frente, o Chico Romão, fechava a porta e apressava-se a beber um tintinho no Nazaré. E a rua morria. E a rua morreu. 

Regressamos ao 240 D estacionado à porta do cemitério. Abri o farnel que a velhinha Rucha me oferecera para “ partilhar com alguém muito especial”. As filhós douradas, moldadas por mãos experientes, estavam lindas e apetitosas. Parti uma ao meio e ofereci uma das metades ao Perdido. 

- Feliz Natal, amigo.

As outras guardei. Eram para a Rosa. Liguei o rádio velhinho que sem pedir licença, debitava versos tristes:

Três estrelas de alumínio
A luzir num céu de querosene
Um bêbedo julgando-se César
Faz um discurso solene

Sombras chinesas nas ruas
Esmeram-se aranhas nas teias
Impacientam-se gazuas
Corre o cavalo nas veias

Há uma luz na barraca
Lá dentro uma sagrada família
À porta um velho pneu com terra
Onde cresce uma buganvília

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,

Oiçam um choro de criança
Será branca negra ou mulata
Toquem as trompas da esperança
E anotem bem qual a data

A lua leva a boa nova
Aos arrabaldes mais distantes
Avisa os pastores sem teto
Tristes reis magos errantes
E vem um sol de chapa fina
Subindo a anunciar o dia
Dois anjinhos de cartolina
Vão cantando aleluia

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,

Nasceu enfim o menino
Foi posto aqui à falsa fé
A mãe deixou-o sozinho
E o pai não se sabe quem é

É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells

(Carlos Tê / Rui Veloso)