Uma vez, no Liceu, na aula de Literatura Portuguesa, no tampo de uma mesa apareceu a seguinte frase:
Todos me olham quando estou bêbado, ninguém me vê quando estou sóbrio!
Achei a frase interessante, ficaria bem na minha velha capa de couro onde transportava os livros, aconchegados por um elástico largo e devidamente guardados por Camilo Castelo Branco que, de perfil, estava gravado na capa. Por eu ter uma caligrafia desprezível, pedi a um colega com ar de Billy Idol que me escrevesse a frase na capa. O meu amigo Punk, nas aulas de Literatura, sobrevoava as prédicas do Dr. Mário da Conceição fazendo uns desenhos que só ele entendia. Escrevia também umas frases esteticamente interessantes e de conteúdo filosófico que me remetiam para estranhos mundos que eu escolhi não trilhar.
Anos passados, já possuidor de mais peças para montar esta coisa a que chamam vida, fui percebendo que num milhão de peças Lego, todas me parecem iguais, encaixando entre si na perfeição, construindo assim os nossos dias. Mas se uma aparece com defeito, uma só que tenha escapado ao controle de qualidade, toda a obra pode estar em causa.
Não raras vezes me senti uma peça com defeito. Outras houve em que me senti parede mestra. Numa e noutra condição, a nossa visibilidade entre pares é matéria complicada de abordar. Há por aí muita formiguinha laboriosa que ninguém vê. Já da cigarra cantante todos parecem gostar. De entre os invisíveis, em lugar cimeiro está o guarda-redes.
Na ressaca da epopeia futebolística, fuzilados que fomos com a excessiva cobertura mediática, apetece-me falar do guarda-redes, esse incompreendido e mal amado. Ele que desafia as leis da física e coloca a sua integridade na ponta das botas dos avançados e mesmo assim parece não merecer a consideração de ninguém. O injustiçado que nunca defende um penálti porque aos olhos de todos, o marcador é que falhou. A desfeita vai ao ponto de dizer que por onde ele pisa, nunca mais cresce a relva.
O texto que se segue, El Arquero, de Eduardo Galeano, retrata as angústias do homem que apesar de trazer nas costas o número 1, ninguém reconhece como primeiro. As palavras rudes de Galeano retratam o destino injustiçado do homem das luvas. Injustiçado mas herói cimeiro.
El arquero (por Eduardo Galeano)
También lo llaman portero, guardameta, golero, cancerbero o guardavallas, pero bien podría ser llamado mártir, paganini, penitente o payaso de las bofetadas. Dicen que donde él pisa, nunca más crece el césped. Es un solo. Está condenado a mirar el partido de lejos. Sin moverse de la meta aguarda a solas, entre los tres palos, su fusilamiento. Antes vestía de negro, como el árbitro. Ahora el árbitro ya no está disfrazado de cuervo y el arquero consuela su soledad con fantasías de colores.
Él no hace goles. Está allí para impedir que se hagan. El gol, fiesta del fútbol: el goleador hace alegrías y el guardameta, el aguafiestas, las deshace.
Lleva a la espalda el número uno. Primero en cobrar? Primero en pagar. El portero siempre tiene la culpa. Y si no la tiene, paga lo mismo. Cuando un jugador cualquiera comete un penal, el castigado es él: allí lo dejan, abandonado ante su verdugo, en la inmensidad de la valla vacía. Y cuando el equipo tiene una mala tarde, es él quien paga el pato, bajo una lluvia de pelotazos, expiando los pecados ajenos.
Los demás jugadores pueden equivocarse feo una vez o muchas veces, pero se redimen mediante una finta espectacular, un pase magistral, un disparo certero: él no. La multitud no perdona al arquero. Salió en falso? Hizo el sapo? Se le resbaló la pelota? Fueron de seda los dedos de acero? Con una sola pifia, el guardameta arruina un partido o pierde un campeonato, y entonces el público olvida súbitamente todas sus hazañas y lo condena a la desgracia eterna. Hasta el fin de sus días lo perseguirá la maldición.
in El fútbol a sol y sombra y outros escritos de Eduardo Galeano