domingo, 17 de julho de 2016

Ninguém olha para o guarda-redes

Uma vez, no Liceu, na aula de Literatura Portuguesa, no tampo de uma mesa apareceu a seguinte frase:

Todos me olham quando estou bêbado, ninguém me vê quando estou sóbrio!

Achei a frase interessante, ficaria bem na minha velha capa de couro onde transportava os livros, aconchegados por um elástico largo e devidamente guardados por Camilo Castelo Branco que, de perfil, estava gravado na capa. Por eu ter uma caligrafia desprezível, pedi a um colega com ar de Billy Idol que me escrevesse a frase na capa. O meu amigo Punk, nas aulas de Literatura, sobrevoava as prédicas do Dr. Mário da Conceição fazendo uns desenhos que só ele entendia. Escrevia também umas frases esteticamente interessantes e de conteúdo filosófico que me remetiam para estranhos mundos que eu escolhi não trilhar.

Anos passados, já possuidor de mais peças para montar esta coisa a que chamam vida, fui percebendo que num milhão de peças Lego, todas me parecem iguais, encaixando entre si na perfeição, construindo assim os nossos dias. Mas se uma aparece com defeito, uma só que tenha escapado ao controle de qualidade, toda a obra pode estar em causa. 

Não raras vezes me senti uma peça com defeito. Outras houve em que me senti parede mestra. Numa e noutra condição, a nossa visibilidade entre pares é matéria complicada de abordar. Há por aí muita formiguinha laboriosa que ninguém vê. Já da cigarra cantante todos parecem gostar. De entre os invisíveis, em lugar cimeiro está o guarda-redes.

Na ressaca da epopeia futebolística, fuzilados que fomos com a excessiva cobertura mediática, apetece-me falar do guarda-redes, esse incompreendido e mal amado. Ele que desafia as leis da física e coloca a sua integridade na ponta das botas dos avançados e mesmo assim parece não merecer a consideração de ninguém. O injustiçado que nunca defende um penálti porque aos olhos de todos, o marcador é que falhou. A desfeita vai ao ponto de dizer que por onde ele pisa, nunca mais cresce a relva.

O texto que se segue, El Arquero, de Eduardo Galeano, retrata as angústias do homem que apesar de trazer nas costas o número 1, ninguém reconhece como primeiro. As palavras rudes de Galeano retratam o destino injustiçado do homem das luvas. Injustiçado mas herói cimeiro.


El arquero (por Eduardo Galeano)

También lo llaman portero, guardameta, golero, cancerbero o guardavallas, pero bien podría ser llamado mártir, paganini, penitente o payaso de las bofetadas. Dicen que donde él pisa, nunca más crece el césped. Es un solo. Está condenado a mirar el partido de lejos. Sin moverse de la meta aguarda a solas, entre los tres palos, su fusilamiento. Antes vestía de negro, como el árbitro. Ahora el árbitro ya no está disfrazado de cuervo y el arquero consuela su soledad con fantasías de colores.

Él no hace goles. Está allí para impedir que se hagan. El gol, fiesta del fútbol: el goleador hace alegrías y el guardameta, el aguafiestas, las deshace.

Lleva a la espalda el número uno. Primero en cobrar? Primero en pagar. El portero siempre tiene la culpa. Y si no la tiene, paga lo mismo. Cuando un jugador cualquiera comete un penal, el castigado es él: allí lo dejan, abandonado ante su verdugo, en la inmensidad de la valla vacía. Y cuando el equipo tiene una mala tarde, es él quien paga el pato, bajo una lluvia de pelotazos, expiando los pecados ajenos.

Los demás jugadores pueden equivocarse feo una vez o muchas veces, pero se redimen mediante una finta espectacular, un pase magistral, un disparo certero: él no. La multitud no perdona al arquero. Salió en falso? Hizo el sapo? Se le resbaló la pelota? Fueron de seda los dedos de acero? Con una sola pifia, el guardameta arruina un partido o pierde un campeonato, y entonces el público olvida súbitamente todas sus hazañas y lo condena a la desgracia eterna. Hasta el fin de sus días lo perseguirá la maldición.

in El fútbol a sol y sombra y outros escritos de Eduardo Galeano

sábado, 2 de julho de 2016

A Praça do nosso contentamento



A Praça Camões estava repleta de gente focada no grande ecrã ali montado para ver a bola. Um silêncio de cemitério, preenchia o ambiente, enquanto olhares expectantes tentam distrair o polaco que se preparava para marcar a grande penalidade. Emparedado entre o Cinema Camões e o Liceu, na magia do tempo, fugiu-se-me a lembrança para outras noites…

Debaixo das arcadas, o Cachimbo Xixeiro afiava a faca, pronta a cortar com mestria a peça de vitela que pendurada no gancho, aguardava pela sua vez. A Tia Aurora que ganhava a vida a vender leguminosas, maltratava uma cliente burguesa que se atrevera a desdizer dos seus feijões. O Sr. Zé Espada, estacionava com dificuldade a camioneta Bedford, série “J”, o primeiro modelo a ser produzido, em 1963, na General Motors da Azambuja. O Milhão vendia vasos e outros cacos, cães de louça e flores artificiais. A Rebordonas vendia casqueiro e grelos. O Peixeiro sacudia as moscas. O Chefe Maurício agarrava o cinto das calças e cofiava o bigode, esticando os beiços, numa manifestação de autoridade não fosse ter de correr atrás de algum meliante. Os namorados aproveitavam a distração dos pais e fugiam, à socapa, para o Jardim António José de Almeida e acobertados pela proteção frondosa das tílias, trocavam os beijos possíveis.
O Chico Naireco, guardador do Jardim, tomava conta dos pimpões que a pequenada alimentava, na pequena taça que já não repuxava. Migalhas de pão alimentavam os pardais, nervosos e irrequietos. Nas latrinas, o Elvis fazia mais uma viagem nas fumaças e ácidos, sobras dos meninos ricos da cidade. No Floresta saía mais uma tosta mista das mãos sisudas do Sr. Teixeira. A D. Alice, Santa Alice, aturava os estudantes enfrascados de subarus e charabanadas. Na esplanada fermentavam amores proibidos, fechados em armários que o tempo demorava em abrir. Olhares furtivos, de sinalética codificada, congeminavam transações de outras vidas, daquelas que nunca se encaixam e se auto destroem. Nos buracos dos muros do jardim, rebentavam bombas de Carnaval, compradas às escondidas na Tabacaria do Jesuíno. O Coreto enquadrava as verbenas e parece que ainda se ouvem melodias de outros tempos. Ouve-se também o cantar dos números do Bingo do GDB: o 1, sozinho, o pilinhas; o 88, as maminhas da Amália…

As lembranças desorganizam-se e vejo agora o Polis, pelo meio, o Fervença, limoso, flui sozinho, enfraquecido pelo decorrer do estio. Os peões, à falta de velocípedes, ocupam a ciclovia e refilam às modernices da juventude e dos que teimam em ser elegantes.

De volta ao Mercado, o Cachimbo desfez a peça de vitela. O Peixeiro vendeu os carapaus aos pobres e a pescada chilena ao Dr. Nalguinhas. A Tia Aurora vendeu o melhor feijão manteiga da temporada. O Milhão tratou mal a canalhada que lhe roubou um par de fisgas. O Chefe Maurício adormeceu de tédio.

No grande ecrã, o Quaresma selou o 5-3 final, depois do Patrício defender o quarto remate dos polacos, um tal de Blasczkowski. No empedrado, ouve-se a borracha dos pneus da Bedford do Zé Espada, o motor 220 Diesel de 3614 c. c., queixava-se da vida que levava.

Acabado o jogo, o povo voltava para casa sem pensar no Brexit ou nas hipotéticas sanções da União Europeia. Que Diabo! Estávamos nas meias-finais.

Como dizia o último ébrio que saía do Floresta: Que se f… o mundo! 

RM