Mãe Dolorosa
Vi-o doente, ouvi os seus gemidos;
Sinto a memória negra, ao recordá-lo!
A Mãe baixava os olhos doloridos
Sobre o Filho. E era a Dor a contemplá-lo!
Depois, nesses instantes esquecidos,
Ou lhe falava ou punha-se a beijá-lo...
Mas, retomando, súbito, os sentidos,
Estremecia toda em grande abalo!
Fugia de ao pé dele sufocada,
A sua escura trança desgrenhada,
Os seus olhos abertos de terror!
E então, num desespero, a Mãe chorava,
E, por entre gemidos, só gritava:
Amor! amor! amor! amor! amor!
Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'
A casa estava despida. Fria. Escura. O choro de criança já não era um choro de criança. Era o lamento enfraquecido de um pequeno corpo em sofrimento. Porque tardava o calor das mãos dela? Precisava do aconchego do seu peito donde brotava o leite quente que o saciava das fraquezas noturnas. Onde estava o batimento do coração que o embalava? Compassado e sereno, confortava-o nas sombras escuras da sua curta existência. Onde estavam os lábios que o beijavam? E o ombro que o amparava? E aquela palmadinha de amor que o ajudava a libertar-se do ar que lhe esticava as vísceras e o fazia gemer de dor? Onde estava ela? Sozinho, embrulhado no cobertor ofertado pela caridade, envolto nas sobras do seu corpo que lhe causavam dor e desconforto, gemia, distanciando-se cada vez mais, longínquo e débil. Já não se ouviam os gritos impulsionados pelos pulmões fortes com que nascera. Agora, só um murmúrio, quase impercetível, varria a casa, rasteiro, suplicante.
Ela. Mãe. Corpo dobrado sobre si própria, protegia-se do lamento que lhe perfurava os tímpanos fragilizados pelo zumbido do choro lamuriante que, empurrando o ar, se espalhava por toda a casa. Tinha desistido. Aguardava o momento. Tatuado no tempo, o momento chegaria. Que mais podia fazer? Todos os caminhos percorridos levaram-na sempre a becos sem saída ou a precipícios. Vivera uma vida sem sentido. Crescera no desamor. Nunca as ideias se lhe organizaram na cabeça. Apesar de tudo, fora compensada com uns olhos negros e rasgados, com um corpo delicado e um liso cabelo que esvoaçava ao vento quando as tormentas da vida ainda estavam para vir. Cedo se entregou, na crença de amores mentirosos que a enleavam em alcovas de promessas e contos de fadas. Sempre que de Espanha regressava depois de mais um prazer desmanchado, fechava-se no quarto, abandonada, fazendo juras de que nunca mais se entregaria a quem a não merecesse. Mas a solidão e sobretudo o amor que nunca tivera, tornavam-na vulnerável a predadores insensíveis que nada mais queriam que banquetear-se, lambuzar-se naquele corpo de bela mulher que, apesar de tudo, a vida moldara. Tivera uma existência medíocre, de parcos recursos, mas o que mais a dilacerava era o abandono dos seus. Tantas vicissitudes tinham afastado os que nunca foram verdadeiramente chegados. Também a medicação para as incertezas emocionais, degradava-lhe o corpo e os humores para enfrentar os demais. E por isso estava só. Longe ia o tempo em que, carente de afetos, provocava transeuntes estranhos, estimulando-se assim, chamando a atenção alheia. Bastavam-lhe os olhares gulosos para se sentir amada. Construía amores com débeis alicerces que desmoronavam às primeiras contrariedades. Foi numa dessas saídas que o conhecera.
Ele aparecera na sua vida como quem nada quer. Aparentemente distante foi-se insinuando com uma troca de olhares, sorrisos cúmplices e oportunas coincidências nos espaços partilhados e uma existência cada vez mais comum até ao envolvimento inevitável, saboreado em todos os momentos do dia. Viveram dias felizes. Poucos. A intensidade que ela vivia as relações, desgastava-as em pouco tempo. A sua entrega total nunca era recíproca. Havia sempre outras vidas que interferiam nos relacionamentos. Outros olhares, outros sorrisos causavam-lhe grandes angústias nas longas noites de ausência. Sentada na cama do seu quarto, lia romances de amores intermináveis e perfeitos. Assistia a novelas em que os maus nunca venciam. E assim se confortava. E assim imaginava a sua vida. Frágil, participava nos amores de ficção e entregava-se nos braços dos atores das novelas da noite. Quando ele aparecia, cada vez mais espaçadamente, tudo era perfeito. Ela entregava-se e tudo fazia para lhe agradar. Aos poucos, os silêncios foram sendo cada vez maiores. As desculpas cada vez mais ardilosas. Tudo se desmoronava. Os raios de luz deixaram de inundar o quarto onde tudo acontecia. As forças, escassas, e uma súbita falta de ânimo impeliam-na para estados dormentes, quase vegetativos. A alteração de humor cada vez mais acentuada distanciava-a de um mundo que lá fora, indiferente, continuava. Medicada, as palavras enrolavam-se na boca e as ideias confundiam-se e nada conseguia fazer. Não era dona de si. Manietada pelos químicos, perdera identidade e discernimento.
Foi neste quadro que soube da sua gravidez. Quando a médica lhe dera a notícia, dizendo-lhe que a sua debilidade física recomendava que a gestação fosse interrompida, ela, indiferente, encolheu os ombros e saiu do consultório, deambulando junto ao rio para onde sempre ia à procura de respostas. As águas correntes ter-lhe-ão dito que se deixasse estar. Talvez a vida ganhasse outro sentido. E assim foi. E bom que foi naquelas primeiras semanas. As visitas à médica. A escolha e compra das roupinhas e a preparação do quarto para a chegada do menino. Voltara a sorrir. A cuidar-se. A alimentar-se. A dormir. A ter a cabeça ocupada. A olhar embevecida para as ecografias que foi fazendo. Tudo se compunha aos poucos. As semanas fizeram-se meses e numa soalheira manhã de sábado, o menino nasceu. O parto complicara-se e ela fragilizara-se. A alegria da maternidade esfumara-se em poucos dias. Os momentos de comunhão entre mãe e filho transformaram-se em obrigação rotineira. Inexplicavelmente, a criança tornara-se numa obrigação enfadonha. Ela, Mãe, lutava para que assim não fosse. Tentava cumprir a sua parte. Empenhava-se em amamentá-lo, mesmo sofrendo horrores quando a sucção pelos pequenos lábios dilacerava os mamilos gretados e descuidados. O momento que devia ser de amor, era agora um murmúrio soluçado, salgado pelas lágrimas que lhe escorriam pelo rosto, pelo peito, alcançando mesmo os lábios do menino que de pronto reclamava do sustento. Aos poucos foi desistindo. Não queria, mas uma estranha força talhava-lhe o pensamento e entorpecia-lhe os movimentos. Deixara de comprar os cremes e fraldas para o conforto do menino. A pele do lactente degradava-se, desidratando-se, gretando-se, escamando-se. A mãe derrotada pelos barbitúricos e pelas noites mal dormidas desfalecia no leito sempre desfeito e descuidado. Só o choro incessante do pequeno ser a arrancava da cama, reclamando atenção e cuidados.
Alertada pelos lamentos permanentes e choros incessantes, a vizinhança, tantas vezes indiferente, participara a situação aos serviços sociais locais que depois de muitas reuniões e auscultações, pareceres e diligências, resolveram atuar. Quando lhe bateram à porta, a Mãe inerte, não se mexeu. No quarto escuro e fétido, aquela Mãe acolhia no seu colo o seu rebento. Frio. Empalidecido. Sofrido. Morto.
Depois de arrombada a porta, ainda foi possível ouvir os gritos da Mãe clamando pelo seu filho:
- Amor! Amor! Amor! Amor! Amor!